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COLUNAS

Quinta-feira, 9/6/2011
Diário da Guerra do Corpo
Vicente Escudero
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+ 2 Comentário(s)


Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo


Na varanda da casa, separada da rua pela grade alta do portão que impõe os limites das cadeiras de rodas e andadores, sentada em uma carteira escolar, a menina com seus sete anos de idade desenha com a ajuda mãe a imagem que guarda da família quando moravam na mesma casa, acompanhadas da avó. Os traços inseguros transportam as memórias recentes para o papel, observados pela angústia silenciosa da pessoa que havia deixado a companhia da artista involuntariamente. Imóvel, a avó esticou lentamente o pescoço de tartaruga para alcançar o desenho nas mãos da neta, depois de ajustar o foco da vista através do óculos e para além da mesa da filha. "Tá bonito...", "Fica pra você, vó...". O braço da velha esticou-se todo até alcançar o papel enquanto o outro segurava firme na alça da cadeira de rodas. "Vamos embora, filha. O papai já saiu do trabalho". A mãe levou a filha pequena pelo braço enquanto ela se despedia acenando para a avó. Acabou-se o dia de visita. A velha ficou ali por mais meia hora.

Asilos são depósitos dos fracassos da juventude. Num lugar onde a maioria das pessoas está presa pelo desejo dos filhos de viver uma vida mais tranquila, longe das responsabilidades exigidas pelos cuidados com uma pessoa frágil, velha e, quase sempre, cheia de opiniões, a maioria parece insatisfeita. Alguns gostariam de poder caminhar por aí sem as limitações do Alzheimer ou da osteoporose, outros gostariam mesmo é de poder se livrar da prole que lhes retirou a liberdade depois de anos de esforço criando o próprio algoz. Não importa o motivo, todos parecem tristes atrás das grades do asilo, exceto aqueles com hora certa para sair.

Ali ninguém espera surpresas. Até a morte tem hora marcada. Os hóspedes com doenças debilitantes ou em estado terminal são submetidos a tratamentos intensivos e medicação constante, vivendo como zumbis alimentados pela química que também garante aos jovens a segurança de não morrerem com um simples resfriado, causado por meia hora a mais no banho de sol de um dia com muito vento. A juventude vale-se dos limites impostos pelos seus excessos para se livrar daquilo que a impede de consumir mais. A presença constante da velhice, neste caso, é uma grande placa de contramão, indicando que não importa quanto esforço é investido na manutenção do presente, o futuro sempre será limitado. E não há moda que consiga rejuvenescer um velho de 60 anos a ponto de parecer com um moleque de dezessete; nem mesmo a camisa com um brasão enorme acompanhada de um bermudão tira a sobriedade de um mar de preocupação, formado por ondas de rugas empurradas pelo vento do tempo na cara de quem já viu estilos demais. O tempo no asilo é sempre o passado, o presente é a ideia da fuga. O futuro, pertence a quem está fora.

E se todos velhos fossem mortos? Haveria paz na cultura da manutenção da juventude através da eliminação da velhice? Esta solução extrema só parece fazer sentido se transportada para o campo da literatura, pelas ideias de um autor capaz de transformá-la num mundo ficcional fantástico, habitado por velhos -e extraordinários- observadores vivendo os últimos dias de suas vidas numa época qualquer, na cidade que um dia acolheu seus anciãos e foi conhecida pela cultura da tolerância. Essa é a Buenos Aires da primeira metade do século XX, recriada pelo escritor argentino Adolfo Bioy Casares em A Guerra do Porco, romance de 1969, publicado em 2010 pela CosacNaify e traduzido por José Geraldo Couto.

Bioy Casares prossegue na exploração dos sentimentos e esperanças humanas mais uma vez, através da análise precisa da condição frágil de homens idosos que são perseguidos e mortos pelos jovens de uma Buenos Aires que decidiu exterminar todos os velhos, num impulso fascista sem registro de início ou fim. O narrador em terceira pessoa conta, distante, a história de Isidro Vidal e seus amigos, velhos que passam o dia jogando cartas e conversando nos bares sobre o passado e as limitações impostas pela idade, compartilhando momentos de solidão.

Cercados pela soberba da juventude, o grupo formado por Vidal, Néstor, Jimi, Arévalo e Dante encara com estoicismo a possibilidade de serem mortos a qualquer momento em um lugar qualquer, numa Buenos Aires sombria, repleta de porões, túneis e corredores escuros que parecem ter se rendido ao repúdio à velhice. A uniformidade do ambiente da cidade é a mesma da falta de matizes da completa ausência de individualidades entre os jovens, retratados como um conjunto de animais que se reúnem de repente e partem para o ataque contra os velhos, obedecendo a condutas esquematizadas, quase mecanicamente. A única exceção é o filho do protagonista, retratado de forma um pouco mais humana, mas sempre do ponto de vista de seu pai.

Neste ponto cabe a reflexão de Isidro, muitas vezes assumindo a culpa dos assassinatos pelo caráter decadente do corpo velho e gasto, facilmente substituível perante a pujança da juventude. Diante destas dificuldades, o remédio contra a depressão nasce das constantes ironias. Um dos amigos responde a Vidal: "Agasalhe-se, que as coroas fúnebres estão caras." E também da resistência, encontrada na união inseparável entre os amigos, mesmo nos momentos tristes.

Néstor é morto da forma mais bárbara possível. Nas palavras de um dos personagens que acompanha o seu velório, o fato aconteceu antes de uma partida de futebol, enquanto assistia da arquibancada... "O jogo não começava, as pessoas estavam se irritando e alguém propôs: Vamos jogar um velho? O segundo velho que jogaram foi o senhor Néstor."

A narrativa crua e imparcial do narrador assusta e serve de elemento de ligação entre a violência sem sentido praticada pelos jovens e as vozes reflexivas dos personagens idosos, sempre resistindo contra as tentativas sorrateiras e covardes de assassinato. Isidro e seus amigos experimentam uma vida plena, baseada na experiência, limitada apenas por fatores biológicos como a impotência, incontinência urinária e dores na coluna, encarados sempre com a ironia destilada durante décadas de vida "Na velhice, tudo é triste e ridículo: até a morte". A sabedoria antecipa o destino dos jovens "Há um momento na vida em que o cansaço não serve para dormir e o sonho não serve para descansar". Os jovens rendem-se aos impulsos malignos do presente, mas acabam injetando vida nos velhos, forçados a se defender levando em conta os limites impostos pelo corpo, prevalecendo-se da experiência.

Definido como romance de antecipação, A Guerra do Porco de Bioy Casares previu o ambiente político e civil da Argentina e do mundo no início da década de 70, com as ditaduras de esquerda e direita lutando pela hegemonia no poder. Além do contexto político e social, a intolerância deliberada contra a velhice em A Guerra do Porco pode ser considerada um espelho da soberba da juventude presente nos dias de hoje. Diante de pressões de consumo e comportamento cada vez maiores e cada vez mais mutantes, parece não fazer sentido valorizar a experiência acumulada durante a velhice. É necessário manter-se jovem e viver bem. Mas o corpo insiste em desrespeitar essa linha. Por mais que a juventude saia jogando as velhinhas do trem ou tranque seus antecessores no asilo, no final, lembra Casares, ela sempre perde.

Para ir além



Vicente Escudero
Campinas, 9/6/2011

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
12/6/2011
01h21min
Velho dá trabalho, custa caro, não tem futuro, mas é gente! A civilização se caracteriza exatamente pela forma que cuida dos idosos. Na natureza não há velhos, eles são comidos pelos predadores. Você é homem ou animal? Onde estão seus idosos?
[Leia outros Comentários de José Frid]
12/6/2011
17h14min
Sou velha. Oitenta anos. Sempre, desde menina, os cemitérios abalavam minha serenidade. Por quê? Nao saberia dizer. Então um dia um pensamento transformou-se em livro. Fiquei um ano escrevendo. Publiquei, os livros estao todos no armário. Dei muitos. Mas parece, ninguém entendeu, ou não expliquei direito. Para mim, a energia, independente de idade, é o fator que faz a inteligência superar os obstáculos. Então imaginei, os humanos, tendo um começo diferente, bonito, gostoso, bom de se viver, só destruído porque os acidentes naturais impediram. Ninguém ficava velho, a energia era dada pelo sol e conservada por máquinas idealizadas pelos mais inteligentes. Um acidente impede a volta ou a busca de um lugar ideal. Aqui ficaram e sem suas maquinas, tornaram-se os homens que hoje conhecemos. Por que a vida não pode ser bonita e ter um fim bonito? Com certeza o futuro dirá. Minha "utopia" não acredito seja tão impossível.
[Leia outros Comentários de Maria Anna Machado]
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