Há um excesso de mesas e cadeiras e uma falta deliberada de espaço, um bar projetado para anões, talvez. Um certo prazer em viver amontoado, em cultivar lugares espremidos, em respirar ares viciados, em fumar a fumaça alheia, provavelmente compensação noturna ao espírito arredio, solitário, intratável do curitibano. Aqui se obrigam ao esbarrão, às cotoveladas, aos encontros involuntários à proximidade inevitável com a desculpa do pouco espaço. Sinto uma felicidade de artifício no ambiente, que explode em risadas excessivas, loquacidade, chope derramado, arrastar de cadeiras e aqui e ali um rosto trágico, envolto num estudado sopro de fumaça.
Uma conclusão filosófica. Em Curitiba, minha doce Curitiba, todos querem falar e todos se arrependem de falar.
Cristovão Tezza
Os trechos acima, retirados do livro Trapo de Cristovão Tezza, são descrições precisas e reconhecidas do ambiente social curitibano. É do senso comum a impressão de que o clima gélido e chuvoso da cidade exerce alguma influência sobre o humor dos locais. Mesmo assim a cidade nos deu uma banda de funk-carioca-indie (Bonde do Rolê) uma banda de pop-dancante-indie (com nome de praia carioca - Copacabana Club) e agora a polêmica hippie-indie A Banda Mais Bonita da Cidade.
Ambiente com alguns pontos de contato com o de Curitiba é o da internet. Pra quem vê de fora, parece uma festa, mas a rede esconde um feroz ecossistema em que os egos disputam a sobrevivência (e leitores/seguidores) com seus teclados ferinos e a produção em escala indústrial de conteúdo (massivamente apoiado nos memes - que nada tem a ver com a verdadeira definição de meme - O meme da internet é o bordão da TV).
Ao escutar outras músicas da "A Banda Mais Bonita da Cidade" - produção que banda não é tão grande - destacam-se croniquetas do cotidiano musicadas, pode ser o fim de um relacionamento, uma bebedeira ou a espera pelo parceiro que está fazendo compras no Mercadorama. tudo em um tom MPB moderninha com toques de rock alternativo (com direito a uma guitarrinha roubada de Radiohead em "Canção para não voltar") sempre apoiados na interpretação da vocalista Uyara, que é atriz e transporta uma certa teatralidade para as músicas. Uma banda que sim, poderia se esperar de Curitiba.
Inclusive na inspiração do nome - o conto A Mulher Mais Linda da Cidade de Charles Bukovski - que alguns meses atrás soaria irônico e agora é percebido só como ridículo mesmo.
Mas eis que surge "Oração", apelo neo-hippie-universitário, letra fofinha (e só refrão), elenco gigante, confete, serpentina, roupas brechó-chique. enfim todos os ingredientes de ame-ou-odeie e que viralizou com requintes de pandemia pela internet. É quase impossível não ter sido exposto ao vídeo do dia 17 de maio para cá. Mas qual a explicação para tamanho fenômeno?
Em determinada passagem de Alucinações Musicais, livro do neurologista Oliver Sacks, o autor tenta compreender o que ele chama de earworm/brainworm aquela música que não sai da sua cabeça, que tem muito mais a ver com os memes que as trollfaces da vida e é a categoria exata na qual Oração se encaixa. E a que conclusões chega Dr Sacks? Os brainworms costumam ser estereotipados e invariáveis. Tendem a ter certa expectativa de vida, atuando a todo vapor durante horas ou dias e depois desaparecendo, com exceção de alguns 'espasmos' residuais. no entanto, mesmo quando parecem ter sumido, tendem a manter-se à espreita: permanece uma sensibilidade exacerbada, de modo que um ruído, uma associação, uma referência a eles pode tornar a desencadeá-los, às vezes anos depois. e são quase sempre fragmentários. Todas essas qualidades são familiares para muitos epileptologistas, pois elas lembram acentuadamente o comportamento epileptogênico de inicio súbito que irrompe, convulsiona-se e por fim se aquieta, mas fica sempre pronto para reanimar-se. o autor identifica como características principais dos earworms a repetição (somos atraídos pela repetição, mesmo quando adultos; queremos o estímulo e a recompensa várias vezes, e a música nos dá.) e a simplicidade. Aí é que está o segredo de Oração a repetição da letra que é só refrão em uma música que vai agregando elementos a cada novo loop. Mas não é só isso, ainda há o plano sequência do clipe (que sempre impressiona e eu diria que é responsável por grande parte do sucesso da música) e o elemento fofura que é sempre citado de forma pejorativa pelos detratores do clipe, mas que é algo realmente contagiante. As milhões de visualizações no YouTube não são a toa - muito menos as recombinações e paródias que pululam internet a fora até mesmo agora, passados mais de um mês da publicação do vídeo.
Mas o sucesso não se faz apenas de um meme, e Oração realmente é solitária na produção da Banda. Veremos nos próximos meses se A Banda Mais Bonita da Cidade consegue administrar a exposição. A performance do grupo no site de financiamento colaborativo Catarse da a entender alguma sobrevida.