Já ouvi e li muita gente culpando a internet pelo surgimento de uma horda iletrada com aspirações literárias. Quanta injustiça! A internet apenas deu maior visibilidade ao fenômeno. Há décadas, escritores se cansam de batalhar pelo reconhecimento das editoras e decidem tirar dinheiro dos próprios bolsos para financiar seus livros. Alguns, excepcionalmente bons e/ou sortudos, fazem relativo sucesso e conseguem chamar a atenção de grandes editoras. A maioria dos escritores independentes, no entanto, fica feliz por autografar para os amigos.
Com o surgimento dos blogs, ótimos escritores se destacaram, mas também ficou mais barato brincar de escritor. Os blogs formam uma espécie de rede de elogios mútuos que mantém qualquer ego satisfeito. Não importa seu mérito, elogie e será elogiado.
Diante dessa situação, posso concluir que o despreparo vencerá ou pensar que a internet serve, também, como laboratório para quem quer aprimorar-se. Como acredito na segunda opção, resolvi fazer minha parte para ajudar. Vou responder à pergunta mais absurda e abrangente que muitos "escritores" me fazem: "Como faço para ter ideia de uma história para escrever?"
A resposta curta, que qualquer professor daria a fim de se livrar da pergunta, é "Leia!"
Nossas escolas, especializadas em diplomar analfabetos funcionais, até conseguem formar alguns leitores, mas leitores da mesmice. Os próprios professores raramente leem e, quando o fazem, optam pela autoajuda. Resultado? "Escritores" sem bagagem literária, que se inspiram em telenovelas, filmes, seriados e quadrinhos. Sem familiaridade com a palavra escrita, acreditam que a literatura deve se restringir a uma história surpreendente, cheia de cenas de ação. Não lhes passaria pela cabeça que a história tem menos importância do que a maneira de contá-la.
Jamais acreditariam, também, que os conflitos geradores de histórias são bem poucos, uns vinte. O resto são variações. Filmes de ação, por exemplo, raramente passam de uma corrida de obstáculos para obter ou realizar algo. Nos filmes românticos, a corrida de obstáculos tem como objetivo a conquista amorosa. As telenovelas repetem à exaustão temas como triângulo amoroso, identidade falsa ou trocada, a conquista do poder, a investigação do crime ou mistério, a busca da justiça, a descoberta da própria identidade, traição, rivalidade entre irmãos.
Os espectadores que reclamam de falta de criatividade acreditam que o problema esteja na história. Engano. Desde a pior telenovela até Roque Santeiro, uma das obras-primas do gênero, os temas são os mesmos. Acontece que a história é somente um dos componentes da obra. O trabalho do autor lembra o dos malabaristas, que determinam o movimento aéreo de muitas bolinhas ao mesmo tempo. O autor lida com vários elementos: história, sequência narrativa, cruzamentos de tramas, apresentação e desenvolvimento de personagens, linguagem... Precisa manipular todos os fatores em sincronia, para criar um espetáculo. Depender apenas da história é querer dar um show manipulando uma bolinha só.
A supervalorização da história acontece porque o leitor/espectador não analisa o produto cultural que consome. Ele atribui à história o efeito causado pelo todo. Isso facilita o trabalho da indústria de entretenimento, que "cria" de acordo com moldes e modas. O produto, que se diz novo, permanece igual. Isso é reconfortante. Ninguém se desaponta com a qualidade de algo conhecido.
Mas, quando um leitor/espectador da mesmice resolve ser escritor, percebe que não consegue imaginar histórias. Recorre a professores, que lhe recomendam leitura. A pergunta seguinte é "Ler o quê?" A resposta nociva é "Leia o que você preferir, o que mais gostar". Errado. Ler só o que se prefere garante a formação de leitores satisfeitos, que podem ficar marcando passo pelo resto da vida, num mesmo gênero literário. O escritor é um superleitor. Lê obras de diferentes gêneros, lê muito e lê criticamente.
Quem ainda quer saber o que ler para ativar o gerador de histórias em sua mente precisa entender que criatividade é transbordamento. Alimente seu cérebro com muitas histórias contadas de maneiras diferentes. Tente perceber o que histórias diferentes têm em comum. Tente prever os desfechos e imaginar desfechos alternativos. Uma bela hora, suas próprias combinações de conflitos e soluções começarão a emergir.
Que tal começar as leituras pelas mitologias e contos populares de alguns povos? As mitologias grega, nórdica, afro-brasileira e judaico-cristã são básicas. As mil e uma noites também vem a calhar. É isso... para começar.
Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blogAlgo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/
Como sempre, ótimo texto, inspirador e motivador.
Eu acreditava que meus hábitos de leitura eram diversificados, mas agora vejo que tenho que diversificar ainda mais!