"Ah, como armar no ar uma figura, dura, forte, que só de eu a pensar, me desfigura?" (Dante - Inferno)
Gargólios é a nova peça de Gerald Thomas, agora com a sua London Dry Opera Company. Talvez seja também os escombros da consciência de um artista que começa a pensar o mundo a partir do momento em que, primeiro, assistiu de perto à destruição das torres gêmeas em Nova York, quando, no dia 11 de setembro de 2001 o World Trade Center sofreu um atentado terrorista, levando centenas de pessoas à morte, e depois, como na Ghost Sonata, de Strindberg, descobre que nesse mundo nada do que vemos tem relação verdadeira com o que acreditamos ver.
Na abertura da peça já somos impactados pela presença dramática de uma mulher nua, pendurada no centro do palco, com sangue escorrendo de seu corpo sobre a imagem dos escombros do Word Trade Centrer. Gerald improvisa no contrabaixo, sobre a trilha de John Paul Jones, sob luzes difusas como num concerto de Rock, anunciando o tom da peça que vai se desenrolar frente aos olhos dos espectadores.
O diretor trabalhou como voluntário no resgate das vítimas do atentado em Nova York. Com certeza, deve ter visto coisas que nem o inferno de Dante catalogou, como corpos mutilados (sapatos com os pés dentro, mas sem o resto do corpo junto, como já relatou), e amontoados gigantescos de concreto e ferro contorcidos entres restos humanos, massacrados pela violência do desabamento. Por isso, sua peça não deixa de partir desse evento traumático, mostrando destroços de ferro, cimento, carne, sangue, falas enlouquecidas. Um banquete do inferno.
Gerald Thomas passou por uma experiência limite que, com certeza, deixou sua consciência em frangalhos (foi sua Guernica mental). Em seguida, percebe o lado espectral do atentado, quando a possibilidade do envolvimento da família Bush (indústria armamentista e petróleo) pode ser a ponta do iceberg para a explicação do ato terrorista.
A peça que trouxe ao Brasil e que tem sido apresentada no SESC Vila Mariana, em São Paulo, é o resultado do estupor e reflexão (e catarse) do diretor diante do mundo pós-atentado e destruição do World Trade Center e seus significados posteriores.
Gerald não faz história com os fatos, prefere a narrativa poética e delirante que funde gesto, música e a performance dos atores, com suas falas e gestos apopléticos. Da incapacidade de dar razão aos fatos do mundo, o teatro se faz desconcerto de vozes e sentidos, onde o grotesco, o trágico e o cômico se fundem numa ausência total de entendimento fácil ou possibilidade de explicação coerente.
"Uma mulher morta está sangrando sobre nós, nos mandando sinais. Que sinais? Somos muito rasos para entender", diz um dos atores da peça. Outros, vestidos em suas capas de super-heróis fracassados, revelam a impotência dos sonhos heróicos (dos americanos, principalmente). Com personagens em crise com suas identidades, esses heróis travam um diálogo com um Dr. Freud que transita pela peça usando um sapato feminino de salto alto vermelho (de puta de luxo, suponho) e que declara ser John Malcovitch. Quem entenderá quem, se todos não sabem mais quem são?
A dinâmica da peça se dá de forma alucinada, quase surreal, entre as luzes, músicas, sirenes, gestos desconexos e falas transtornadas, num tom que começa trágico, mas que passa do dramático ao cômico, como que brincando com nossas referências, desterritorializando-as e nos deixando sem chão interpretativo.
Parece que o objetivo do diretor também é o de se colocar em crise, criando falas que são imediatamente ridicularizadas pelos atores, numa espécie de filosofia que ri de si mesma, como ensinava Nietzsche. Não deixa, no entanto, de despejar sua bílis contra um mundo vazio, encouraçado, impossibilitado de sentir e viciado em tecnologias suspeitas, com seus Ipods, Ipads, IPhones, que criam vidas vazias e insensiveis às guerras inúteis, à miséria socio-existencial e aos terrorismos auto-destrutivos. Todos envolvidos numa espécie de adoração cega a Thanatos.
Não deixa de também criticar o Rio de Janeiro/Brasil retrógrado (que o censurou quando exibiu a bunda para parte do público que o vaiou?) ao fazer suas atrizes perfomatizarem um vômito ao cantar Girl from Ipanema. Ou seria uma crítica à alienação feliz do Brasil em relação ao drama doloroso que se passa em seu território e mundo afora? Profetiza a destruição dos prédios chiques de São Paulo. Ainda teremos nosso Word Trade Center? Não se furta de deflagrar sua ira aos demagogos burgueses adormecidos em seu sonho de poder e destruição cósmica aqui e acolá.
Da crítica aos poderosos absolutos do mercado/política e sua criação de mundos reais/artificiais (com suas tecnologias virtuais e guerras assassinas) ao próprio repúdio a eles, tudo na peça parece desestimular um discurso da verdade. Através da impotência de se entender e a potência de se aceitar essa mesma impotência, faz-se a fala contra-sensual de cada ator. Do garçon que se banha em sangue das vítimas (para servir à uma burguesia sangrenta o sangue que ela mesma gera?) aos heróis carcomidos em sua impotência, Gerald cria um mundo nonsense sobre o universo da impossibilidade das idéias.
Enquanto toca baixo, Gerald observa seus atores com um ar de alegria,vendo nos seus gestos desesperados a saída inútil e cômica que nos reserva o mundo. Os atores são ótimos na desconstrução de suas falas, com gestos de risível performance. Como quando a atriz portuguesa Maria de Lima engasga num riso repetitivo e surreal e mecânicamente repetido à exaustão ao contar uma piada sobre os portugueses.
O mundo de Gargólios é o que Gerald chamou acertadamente de "Alice no país dos horrores". Como num delírio último do criador, o diretor faz de seu trabalho um exercício de liberdade nessa prisão das impossibilidades, sendo sua peça essa gárgula contra as forças infernais desse mundo.
"O homem-bode não tem paz porque não há um fim para a criação. Não há mesmo fim para a criação ou para a batalha", vaticina Gerald no folder da peça.