Cérebros precisam de exercício. Pesquisas sugerem que problemas mentais vinculados ao envelhecimento demoram mais para se manifestar em pessoas que praticam atividades físicas e intelectuais. Atividades simples como caminhar, ler, escrever e jogar poderiam até desacelerar o avanço do Mal de Alzheimer. Atividades complexas, então, nem se fala.
Que tal desenhar ou escrever com a mão esquerda, se você for destro? Se você já é craque em sudoku ou palavras cruzadas, pode passar de jogador a criador desses desafios. Pouco importa se você já é ambidestro, maratonista e ganha a vida projetando videogames. Seu cérebro sempre vai precisar de novidades que o obriguem a sair da rotina, pensando diferente. Nada como um bom estranhamento para balançar nossas certezas e nos deixar atentos.
Sorte sua que tenho uma sugestão sob medida para quem gosta de ler. Um dos livros mais estranhos que li ultimamente chama-se Amberville - A lista da morte (Amarilys/Manole, 2010), de Tim Davys. É tão diferente que deve adiar a senilidade por uns dois anos. Mas só recomendo se você não tiver preconceito contra bichos de pelúcia.
Acredite e aceite: todos os personagens de Amberville são bichos de pelúcia (com exceção, talvez, da mariposa que faz uma ponta na história e é rapidamente morta logo no início). O romance nada infanto-juvenil, sucesso mundial da literatura sueca, narra as aventuras de Eric Urso em Mollisan Town, uma cidade de ruas tão coloridas que mais parece um tabuleiro de jogo dividido em quadrantes/bairros. Amberville, um dos quatro bairros, dá nome ao primeiro dos quatro livros ambientados na cidade.
Eric é um urso de pelúcia, casado com a encantadora Emma Coelho. Depois de uma juventude no mundo do crime, Eric Urso tornou-se um profissional de sucesso em uma grande agência de publicidade. Tudo está tranquilo em sua vida até o momento em que seu antigo patrão, Nicholas Pombo, chefão do crime em Mollisan Town, invade seu apartamento, manda seus capangas, dois gorilas de pelúcia, destruírem os móveis e incumbe Eric de uma tarefa talvez impossível: tirar o nome de Nicholas Pombo da lista da morte.
Não há nada de fofinho nos personagens de Amberville. Eles roubam, matam, torturam, consomem drogas, traem, conspiram, mas também amam, filosofam e sacrificam-se. À primeira vista, tem-se a impressão de que o fato de serem animais de pelúcia não passa de uma estratégia de marketing para chamar a atenção dos leitores. Acontece que a própria lista da morte só poderia existir em um universo habitado por criaturas desse tipo. Os bichos de pelúcia não nascem. São entregues a seus pais pelos Entregadores de filhotes. E não morrem de velhice. São recolhidos pelos Choferes e nunca mais aparecem. A lista da morte seria a lista dos animais que os Choferes devem recolher, mas muitos a consideram apenas uma lenda.
Nicholas Pombo acredita que seu nome esteja na lista e, se Eric Urso não conseguir tirá-lo de lá, os gorilas de Pombo acabarão com Emma Coelho. A partir daí, o romance ganha ares de aventura, com Eric Urso reunindo um grupo de amigos do submundo para cumprir a missão. Violência, intrigas e perseguições não faltam, mas os personagens também têm profundidade psicológica.
O misterioso autor de Amberville, que usa o pseudônimo Tim Davys e não aparece em entrevistas, estudou psicologia e filosofia o suficiente para tornar a equipe de Eric Urso interessante. O primeiro a entrar para o time é Tom-Tom Corvo, um corvo forte, ingênuo, agressivo, com traumas de infância e ataques de pânico. O segundo é Sam Gazela, homossexual, irreverente, sádico, viciado em comprimidos. O último é Cobra Marek, um escritor e pintor muito bom em planos e conspirações.
Amberville tem um clima de filme noir. Embora Emma Coelho não seja uma perfeita coelha fatale, os demais personagens seguem os clichês do gênero. São moralmente ambíguos, corruptos e violentos. Boa parte da ação ocorre à noite, o que atenua o colorido da cidade. Sobram ambientes exóticos e suspeitos: o Cassino Monokowski, quartel general de Nicholas Pombo; o lixão, onde o mundo do crime despeja seus mortos; as catacumbas, onde um gato enterrado vivo se arrepende por falar demais.
Parece um livro terrível? Nada disso. Se você gosta de romances policiais, cheios de crimes e intrigas, vai gostar de Amberville. Suas histórias intrincadas, com flashbacks e mudanças no foco narrativo garantem um exercício agradável a cérebros atentos. O estranho universo do romance é lógico dentro de suas próprias leis e, como se não bastasse a mera diversão, nos brinda com indagações tortuosamente filosóficas.
Carla, ao ler as suas palavras... A vontade de ler o livro começa a despertar. Sua narrativa nos faz querer conhecer mais sobre a história. Um abraço carinhoso