Alvoroço no salão. Os formandos do 3º ano do ensino médio (na minha época era científico e clássico; depois foi colegial, depois segundo grau e agora, isso!) dançam, conversam, passeiam prá lá e prá cá em bandos barulhentos. Risos, abraços, gritos de satisfação. Os rapazes, com seus ternos alinhados, ensaiam poses e ares de conquista, com suas barbas ainda por fechar, enquanto as mocinhas, já não tão bem comportadas, exibem suas formas plenas em vestidos prá lá de sensuais. Os familiares, conformados, jazem nas cadeiras, ao redor de pequenas mesas. Toalhas brancas, flores ao centro. Não é possível a conversa, não se escuta nada que não seja o ritmo da música alucinante que sai das enormes caixas de som e bate em nossas cabeças como invisíveis bate-estacas. O volume é absurdamente alto. Suspiro: ao menos, a música é ao vivo, estamos prestigiando nossos músicos. Moças e rapazes afinadíssimos, cantando, pulando e dançando dentro do ritmo, o que imaginei humanamente impossível. Comecei a prestar atenção ao show de sons, luzes, fantasias e brilhos. A primeira seleção fora uma seqüência morna de “hits” de orquestras do passado, até todos se acomodarem. Dali em diante, tornou-se inviável a permanência no salão, sem ter os tímpanos arrebentados. Acho que as novas gerações já sofreram a mutação necessária para suportar tal quantidade de decibéis. De minha parte, preferi ficar fora do salão, assistindo ao baile (?) através de um vidro suficientemente espesso.
As seleções foram se alternando: rock, dance, jungle, funk, forró – ôpa! Música brasileira? Bem, é certo que era o tal de forró universitário, mas era música brasileira, afinal. Esse negócio de graduação do forró é uma outra história, que fica para uma outra vez, como diria o saudoso Júlio Gouveia (alguém se lembra?).
Após uma seleção arrepiante de axé, as moçoilas entram no palco totalmente vestidas, à moda dos anos 50, com laços nos cabelos, blusinhas de ban-lon e saias rodadas de bolinhas, é claro! Um pedaço de um cadilac rabo e peixe aparece no meio do palco. Nesse momento, começa o meu espanto, que só aumentaria durante todo o resto do baile. Uma das meninas grita ao microfone: “Vamos lá, pessoal! Vamos recordar os anos 60! Todos comigo na contagem regressiva: uan, tchu, uan/tchu/tri, rá!” Regressiva? Será que a matemática mudou também? E dá-lhe rock-around-the-clock, estúpido cupido, only you, e outras músicas deliciosas dos inofensivos...anos 50!
No início da seleção eu ainda tentei argumentar com o maridão, que é alguns anos mais novo e não se lembra desses detalhes: “está tudo errado! O legal era o Mustang, o Camaro, o Miúra! E não eram essas as músicas! Eram os Beatles, os Rolling Stones, The Doors, The Animals, Hendryx, Janis, a Tropicália, as músicas de protesto, dos festivais...o que é isso?” Aí, caiu a ficha. Vi que poderia ser proposital. Maluquice? Pior que não. Lembrei, de repente, dos outros “shows” e festas dos anos 60 de que meus filhos participaram, das roupas de bolinhas que eu dizia que não eram dessa época, dos rock’s que eles comentavam depois das festas e eu explicava que eram da década anterior e não da de 60. Fui ficando assustada. Essa geração não faz a menor idéia do que quer que tenha sido aquela década no mundo e, principalmente, no Brasil. Não é saudosismo, ou auto-afirmação tardia. Nem vou relembrar as ditaduras, ficar batendo nessa tecla gasta. Apenas, penso que aquela foi a década em que a juventude entendeu e cumpriu com brilhantismo o seu papel transformador, apesar do perigo, das baixas e da reação repressora das gerações anteriores, donas do poder no mundo. Ali deu-se o movimento necessário para a reestruturação da sociedade, das relações pessoais, sociais e econômicas, das questões da liberdade individual e coletiva em todas as áreas do conhecimento e em quase todas as partes do mundo. De repente, as pessoas tomaram consciência do coletivo, apontando para uma possível sociedade amadurecida, um romper de cascas arrasando mitos e tabus, “derrubando prateleiras e dizendo não ao não”. Sabendo a hora de fazer, em vez de esperar. Estava tudo ali, os sonhos, o futuro que se pretendia nas músicas, nos poemas, nas peças de teatro, no SIMCA Chambour, na liberação das mulheres e dos homens dos seus papeizinhos na casinha de brinquedo. Um mundo melhor, mais justo, mais humano. Um mundo livre. Uma pena, o peso do poder foi maior. Mas, tudo mudou desde então, algumas mentiras não mais puderam ser contadas.
Ficamos todos velhos, como nossos pais? Velhos, sim, mas com um entendimento das coisas muito diferente daquele que os nossos pais tentaram – em vão – nos impingir. Não por sacanagem, mas porque acreditavam na estabilidade das coisas. Não queriam correr os riscos de mudar coisa alguma. Não aceitamos, fizemos nossos próprios caminhos, bem ou mal, e pagamos caro pela ousadia. Muita gente boa ficou pela estrada.
Hoje a história se repete, com a imposição, aos mais jovens, de modelos bem comportados e passivos da sociedade, fazendo-os acreditar que a história foi só isso. Bem comportado, o passado. Bem safado, o que se lhes apresenta como o atual, voltado somente para o individualismo, isentando a todos da consciência do coletivo, do poder transformador que só a juventude carrega nas veias. Deve ser coisa de hormônio, sei lá. Só sei que estão transformando nossos jovens em indivíduos com apenas corpo e membros, aptos para produzir e reproduzir. Sem cabeça para pensar e questionar, transformar, ousar. Só desejo que se preserve, ao menos, seus corações, para que jamais se perca a ternura. E que eu possa participar de outros bailes sem susto.
Perguntinha Difícil
Depois do casamento existe alguma coisa? Vida? Sexo? Bem, sobre isso eu posso falar com conhecimento de causa. Afinal, já fui casada algumas vezes, em outras ocasiões nem cheguei a tanto. Não fiquem horrorizados, não sou nenhuma maluca ou promíscua. Apenas nasci e cresci ao sul do equador, onde não existe pecado. Se vocês prestarem atenção, verão que sou uma pessoa até bem normalzinha, trabalho o dia todo, crio quatro filhos, vou ao supermercado, shopping center, reunião de pais e mestres, coisas assim. Só uso jeans e camiseta folgada e comprida. E espero que este seja meu último marido, de verdade. Veja só: além de não atrapalhar, ele abaixa a tampa da privada quando sai do banheiro. E lava as mãos! (Não, não vou emprestar prá ninguém!)
É que eu sou a favor da liberdade de escolha, sempre. Mesmo que seja para escolher ficar com uma só pessoa para o resto da vida, se possível. Isso requer uma dose enorme de sinceridade, o que nem sempre é compreendido como tal. Não dá para ficar com uma pessoa por outro motivo que não seja a nossa própria vontade e prazer. Não é egoísmo, é a verdade. Todos somos assim, com algumas variações prá cá e prá lá, mas quase sempre sobre o mesmo tema. Qualquer coisa antes, durante, depois ou apesar do casamento, só pode existir – e resistir – se houver vontade de ambas as partes e prazer para os dois (ou quantos forem, vai saber). O resto é lenda, é mito. Ou uma mentira deslavada. Não concorda? Pois você é livre para discordar!
Articulações
Outro dia, alguém disse que me considerava uma pessoa bem articulada. Essa afirmação levou-me ao delírio! Não, não por vaidade (foi um elogio?), mas porque fez com que eu fosse tomada por um sentimento Kafkiano de, sem mais nem menos, não ser uma pessoa, mas um enorme inseto cheio de pernas, antenas e...articulações! Ou mesmo um pantógrafo. Alguém aí sabe o que é isso? Não é um fóssil, mas está em vias de. Nos idos de 70, servia como ferramenta de ampliação manual de desenhos e projetos. Cheio de pedacinhos de madeira com dobradiças e furinhos para aumentar ou reduzir a escala dos desenhos. Tá rindo? Pois saiba que usei até um artefato complicadíssimo, chamado régua de cálculo. Não vou explicar essa engenhoca agora, não é o foco da questão. Voltemos às articulações. Do pantógrafo, pulei para a imagem de uma aranha caranguejeira, repleta de patas, pelos e olhos. E um imenso traseiro expelindo fios de seda a jato. Decididamente, essa não era eu. Só tenho quatro patas, ou melhor, membros, e nunca consegui expelir fios de seda pelo dito cujo. Se bem que, pensando melhor, já estive suspensa por um fio em várias ocasiões. De qualquer forma, a aranha não me convenceu. Besouro? Joaninha? Mariposa? Gafanhoto...já sei! O mais articulado de todos: o louva-a-deus. Nem sei se é assim mesmo que se escreve o nome desse inseto prá lá de articulado. E, além de articulado, voraz. Extremamente voraz. Comecei a gostar do bichinho. Já pensou? Você está com alguém e acha que a conversa tá chata. Então...nhac! Engole aquela cabeça, fim de papo. Se gostar de um belo par de olhos, pronto: prato principal. Pensando bem, as popozudas estariam em maus lençóis. Por outro lado, não haveriam mais brigas, separações, não seria preciso construir e manter cadeias públicas, políticos corruptos...epa! Será que ia sobrar alguém? Sei não. Melhor esquecer essa história toda e retornar às minhas próprias articulações. Tá certo que elas já não funcionam muito bem, mas, pelo menos, são inofensivas. Agora, pensando bem, estou um pouco confusa. Será que aquela pessoa disse mesmo que eu era articulada, ou atrapalhada? Ou seria enferrujada? Embalsamada? Esculhambada? Não sei mais. Nem vou perguntar.
No auge dos meus 24 anos já me desfiz dessas ilusões sobre os anos 60 e sobre a juventude. Foi a década mais decadente do século XX (os 90 também foram horríveis). A juventude quando quer mudar o mundo só faz porque é manipulada e sempre dá tudo errado. E depois ninguém assume a responsabilidade pelas coisas que acontecem depois.
Acho que hoje nem Bob Dylan acredita nos anos 60 (se é que ele um dia acreditou).
Ainda prefiro os 50 e rockabilly, sem compromisso com o tal do coletivo.
Cordialmente,
Emilio