Estrelado por Brad Pitt, o filme A árvore da vida foi exibido em alguns cinemas americanos com um alerta nas bilheterias de que não se tratava de uma narrativa convencional, portanto o dinheiro do ingresso não seria devolvido caso o espectador desistisse no meio da projeção. Esses americanos..., pensei e ri, quando li a respeito nos jornais.
Era o dia da estreia no Brasil, e segui para um convencional cinema da Zona Sul do Rio de Janeiro esperando uma plateia menos adestrada por narrativas lineares hollywoodianas. Sexta-feira, sala quase lotada, e bastaram alguns dos minutos em que o diretor Terrence Malick faz a sua fantástica viagem plástica e sonora em busca do sentido da vida (até uma criança entenderia a metáfora) para alguns marmanjos ensaiarem risinhos nervosos nas cadeiras. Um senhor que se sentava sozinho não aguentou e levantou-se, falando alto: "Que palhaçada, parece National Geographic". Foi acompanhado por um casal, e depois por outro. Não havia placa na porta do cinema brasileiro.
Que a relação do brasileiro com a cultura é cada vez mais parecida com a do americano, não resta dúvida. Não se perde o tempo de mastigar uma pipoca para entender e apreciar uma metáfora. A pipoca, por sinal, foi o grande constrangimento na última vez em que me vi numa estreia com um público equivocado, atraído pelo mocinho da tela. Era Um homem misterioso, com George Clooney, que, apesar de conter alguns dos silêncios mais expressivos que ouvi ultimamente no cinema, tinha na bilheteria um cartaz exibindo o galã numa pose 007 - no lugar do que deveria ser uma placa alertando sobre o fato de não se tratar de um filme convencional de suspense, com trilha sonora e explosões para disfarçar o objetivo de devorar baldes de pipocas.
Me precavi, quando fui assistir a Melancolia. Deixei passar a estreia - nada melhor do que um boca a boca desfavorável (do público pipoca) para selecionar a plateia - e escolhi um cinema do grupo Estação, última sessão. Resultado: sala pela metade, sem americanos hiperativos em volta. Consegui me concentrar desde as primeiras imagens, belíssimas, ao som de Tristão e Isolda, de Wagner, esquecida que já estava da plateia.
Melancolia e A árvore da vida são filmes polêmicos, difíceis, e que precisam ser vistos. Pelo menos por quem diz que gosta de cinema. Sou totalmente contra a mania politicamente incorreta (agora está na moda) de alguns preguiçosos saírem pichando obras porque ouviram falar que são "pretensiosas". Não assistiram. São os mesmos que se orgulham de dizer que não conseguiram "passar das primeiras páginas" do livro de algum autor revelado por um prêmio literário. Ninguém mais tem paciência para filme de autor - a exceção foi o último Woddy Allen, que por acaso fez uma fita palatável e ganhou a adesão de espectadores que não suportavam os seus diálogos, assim como não suportarão a falta deles no filme de Malick.
Lembro do tempo em que era ao contrário. Abandonar um livro nas primeiras páginas era motivo de vergonha. Ser intelectual era tão bacana que havia os "pseudos", pessoas que fingiam conhecer filosofia e ver profundidade em obras de arte que não compreendiam - aliás, para compensar podiam ver obra de arte em tudo. Agora, tudo o que sai ligeiramente do padrão fixado na fronteira entre arte e entretenimento (algo com um ritmo frenético "contemporâneo") é rapidamente descartado. Com uma piada ou um comentário de efeito na rede social. Não há espaço nem disposição para aceitar o autoral, para tentar entender o trabalho de um artista, nada disso - e nem precisa ser algo experimental para gerar a rejeição, que sequer configura-se realmente como rejeição. Ao menor sinal de estranhamento, simplesmente muda-se o canal, o objeto de atenção, afinal há tanto a consumir, tantos lançamentos nas livrarias e nos cinemas...
Os novos públicos parecem não estar sendo educados para apreciar aquilo que exige um pouco mais de atenção ou interpretação, como se todo o esforço fosse para a pipoca (para o consumo), como se o tempo picotado de hoje impedisse maiores reflexões. Culpa da escola, da tecnologia?
Talvez a origem do problema resida na crença, cada vez mais forte nas novas gerações, de que o esforço não leva a lugar algum. É para trouxas. Acredita-se em talento e em sorte. Caídos do céu. Hoje em dia, quem educa um filho tentando mostrar o valor da persistência e da determinação come um dobrado. O imediatismo reina. Como não acredito em talento que não seja lapidado, nem em sorte que não seja fruto de oportunidades batalhadas, sigo na contramão, e valorizo onde posso o "trabalho duro" de antigamente.
Consumir cultura, ao contrário de consumir grifes e serviços, exige esforço - antes, durante e depois. Mas vale a pena. Afinal, não foi à toa que, lá em cima, eu ri com certa piedade dos americanos afastados pelo alerta no cinema. Viver sem arte é muito triste, quase uma existência pela metade. Não tem quantidade de pipoca que compense.
Os dois filmes autorais (ainda) em cartaz desafiam a lógica do entretenimento fácil e - vou repetir - valem a pena. Não somente pelas imagens ou pela música, mas porque são instigantes (como se dizia no tempo dos pseudos e dos alienados). O filme acaba e você continua possuído pela história, que vai se revelando, com a potência que só as obras de arte têm. São obras-primas? Provavelmente não. Em A árvore da vida, não gostei da cena final, a la Nosso lar (os dinossauros não me incomodaram). Em Melancolia, não gostei de quando a personagem vivida por Kirsten Dunst estranhamente sai da depressão, para dizer algumas frases do autor sobre rituais. São as partes mais mastigadinhas, e de mastigadinha basta a pipoca.
E você, o que achou? Só não vale dizer que não viu e não gostou. Ou sair do cinema logo nas primeiras páginas...
Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha