No fim das contas, a questão é que a distância até o outro é muito grande. Por motivos não esclarecidos no início do episódio, vemos House preso a uma cama de ferro. Ele desperta e se percebe em um quarto completamente coberto de plástico. Fotos de um paciente coladas não muito longe, ao alcance dos olhos. De súbito, vê Dexter. O serial killer o ameaça - "sem gritar!" - e retira a fita que tampava sua boca. O especialista em diagnósticos só observa. "Nenhum valor à vida, todo valor ao quebra-cabeça, não é? E como você resolve esse?", diz Dexter, ao mesmo tempo em que aproxima face de face em fúria repentina, a mão direita pressionando com brutalidade o maxilar de sua vítima. Depois, toma sua navalha. O médico repassa seguidamente os fatos, procura explicações febrilmente. O assassino aprecia o momento sem pressa.
A cena corta para a exibição do vídeo de abertura. Por alguns momentos só especulamos os motivos que podem ter unido os protagonistas das séries Dexter e House neste crossover. O primeiro, um psicopata com tendências homicidas e dificuldades se relacionar com outros e mesmo sentir o que sentem. Ele canaliza sua natureza destrutiva para outros matadores, em atos justiceiros além e acima da justiça convencional. O segundo, um médico cujo vício é a complexidade; arrogante, autodestrutivo, genial, não se importa com seus pacientes, brinca com seus relacionamentos como se fossem jogos, desvenda casos quase impossíveis. Essa cena, leitor, nunca aconteceu - mas crie, descubra comigo, o que é que surgiria de um tal encontro? Esse conto-crítica, essa crítica-conto explora esse conflito improvável.
As séries seguem alguns padrões com tanta frequência que não é difícil imaginar. Todos os episódios de House tem uma sequência inicial, um drama curto e de repente alguém sofre o ataque de uma doença misteriosa e, por vezes, chocante. É encaminhado para House, já que ninguém mais é capaz de descobrir a causa. O médico discute o caso com seus funcionários ao mesmo tempo em que se importa mais com alguma picuinha pessoal. O diálogo rápido e cheio de sarcasmo e termos técnicos é um dos charmes da produção. Invariavelmente, esses primeiros diagnósticos e os respectivos cuidados não funcionam, a doença piora até o ponto em que uma decisão capital deve ser tomada ou tudo estará perdido. House pensa, pensa, e não consegue nada. Mas, por um acaso, uma conversa paralela, tem um estalo! No último minuto a solução é encontrada. A forma é quase sempre igual e quase sempre divertida.
Quase sempre, pois há episódios muito particulares em que esses padrões são dispostos de uma forma diferente, ou até abandonados. Na 6ª temporada, um deles é narrado do ponto de vista de uma personagem secundária - a presidente do hospital, Lisa Cuddy. House e seus enigmas são assistidos obliquamente, e todos os clichês estão lá - a série é autoconsciente e ri de si mesma. Outro exemplo disso é quando sempre se supunha que a doença era Lupus - e nunca era. Em certo episódio: "Finalmente, eu tive um caso de Lupus".
O uso repetido desses esquemas é geralmente desprezado, mas seu valor é o de permitir que o espectador saiba o que vai receber, que tipo de entretenimento terá. A mudança dos padrões dá prazer exatamente porque se sabe que eles existem: e quando House é o próprio doente? E quando os dados imprescindíveis para elucidar um caso estão presos na sua cabeça amnésica?
Dexter também tem suas estruturas recorrentes. Analista forente da polícia de Miami, o seu trabalho é estudar o padrão de espalhamento de sangue em casos de assassinato, deduzindo assim o comportamento do criminoso e as ocorrências fatais. Sempre próximo desses casos, ele sabe sobre os que escapam da justiça; pesquisa sobre suas vidas, consegue certeza sobre sua culpa e fica à espreita. Monta um local de modo a não deixar evidências e dispõe alguns souvenires para que sua vítima se lembre de seus crimes. Após matá-la, corta seu corpo e o embala em sacos plásticos, que joga ao oceano. Eventualmente, surge um arquivilão - e é como nos quadrinhos: esse antagonista é ou se torna íntimo do antiherói. Compartilha sua natureza, entende seu segredo, lida com os mesmos problemas de Dexter. Entre a confusão de um afeto inesperado e o conflito de força similares fica a linha principal do enredo.
A qualidade maior desse enredo é seguir em um crescente, de modo que nos episódios que fecham a temporada a tensão é altíssima. Ao lado dessa história central, há os personagens secundários, com problemáticas sempre similares (a irmã de Dexter tentando o seu melhor no trabalho, a chefe de Dexter dentro do conflito entre trabalho e vida pessoal, etc), e nosso protagonista tem de lapidar sua vida social: não pode deixar que desconfiem. O assassino se torna namorado carinhoso, marido e pai atencioso, amigo companheiro. Por cálculo, é fato, mas cada vez mais por um afeto verdadeiro que surge mesmo como redentor. Mas o quanto ele pode deixar que se aproximem? Em cada temporada, o segredo de Dexter e seu código autodefensivo sofrem abalos, chegam perto do fim. No fim, a solução também estala.
A navalha rasga o rosto do médico. O assassino coleta um pouco de seu sangue e o guarda entre duas plaquetinhas - trata-se de um troféu. "Isso quer dizer que não sou o primeiro. E que você tem feito isso há um bom tempo", diz House, como se tateasse os sentimentos do seu raptor. "Eu fiz merda em um caso, você sabe quantas vidas eu já salvei naquele lugar? Você não está fazendo nenhuma justiça aqui" - e então o vocativo, com enfâse sarcástica: "Nenhuma justiça, herói". Dexter, por alguns instantes, parece discutir consigo - ou com alguém inexistente - o que acabou de ouvir. A expressão tensa, considerando. "Não é mais você que decide nada disso", diz por fim, "É sempre um jogo, não? Funciona, mas sabe qual a destruição que você causou ao redor dos seus sucessos? É o fim disso, o fim". O psicopata pega uma faca e a dispõe sobre o coração do outro. "É o fim".
Mas não o executa. Sem aviso, suas mãos tremem e desfalecem, a lâmina cai. Ele coloca as mãos sobre a cabeça, podemos ouvir o zumbido estridente que escuta, sabemos que se sente violentamente atordoado, a câmera gira frenética e ele cai. Uma delicada linha de sangue vaza pelo seu ouvido.
House Versus Dexter
Pode-se dizer que o conceito central de Dexter é controle; e o de House, anomalia - não só no âmbito restrito do enredo e dos temas citados. É tanto mais interessante perceber tais elementos no modo como as séries retratam os relacionamentos humanos.
Dexter tenta conter as relações em compartimentos; manter os fluxos de contato em canais separados. Sabe onde as pessoas estão, o que pode fazer para satisfazê-las, e se esforça para que fiquem nesses postos conhecidos. Entrega a elas uma imagem de si de que gostam. Não pode acreditar que o aceitariam se o soubesse por completo.
Se se identifica, por vezes, esse elemento irredutível, que o define mais que tudo, torna toda identificação relativa. Toda sua felicidade é sustentada sobre esse pilar frágil: o bem estar o seu filho, o afeto dos próximos. O que dimensiona o risco que corre e o impede de se ligar aos que conseguem compreender essa faceta maligna. Dexter tem sua identidade dividida em muitas frações e apresenta uma uma dificuldade de se manter ao nível de todas as pessoas que o mundo exige que ele seja - e é por essas características que o público, esquecido de sua psicopatia heroica, pode se identificar com ele. Além do assassino, há um homem comum.
House se trancou em uma visão muito particular de mundo, repleta de descrédito e mesmo desprezo pelos outros. "As pessoas não mudam", ele diz, "Todo mundo mente", ele diz. Se o médico se depara com situações afetivas, suas ou alheias, ele as estuda cientificamente. O objetivo é encontrar os padrões ou por a teste as teses comprovadas anteriormente. Quando se trata de um crente, procura-se pelas vaguezas de sua fé; quando é um casal apaixonado, pela necessidade patológica ou as mentiras que os mantêm unidos. House tem sua teoria do mundo e das pessoas, e só é lançado para fora dela por um contraexemplo gritante. Isso faz com que use as pessoas como cobaias, erre muito, aprenda. Formou uma carapaça racional e ela lhe dá muito, mas lhe priva de muito também.
No fim das contas, a questão é que a distância até o outro é muito grande. Como transpô-la? Quando o episódio retoma o enredo, vemos Dexter sobre uma cama de hospital. Ele acorda e tenta se levantar, mas não consegue: não sente suas pernas. House envia seus funcionários a Miami, para explorar o cotidiano de seu mais novo paciente e procurar por evidências que o ajudem a solucionar o caso. Depois disso, entra sozinho no quarto e se senta.
O que é que acontece, Duanne? Quando virá a resposta a essa interrogação? Você não é somente psicopata auxiliar dos dois, é um terrível sádico que nos intima a tentar resolver essa questão. Fora o início e brincadeira, parabéns pela análise. Faça capítulos dos dois e envie para os envolvidos. Quem sabe? Médicos e monstros? Abraços!
Obrigado, pessoal =) Cilas, quem sabe eu não mando pra Universal? Pode ser que até já estejam pensando!
Achei na internet um fanvideo do confronto entre os dois - pode servir de abertura para o episódio hipotético do meu artigo ;)