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Sexta-feira, 17/2/2012
O centenário de Contos Gauchescos
Marcelo Spalding
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Alguns livros marcam uma geração, outros uma nação. Os Lusíadas se confundem com a formação da nação lusa, A Divina Comédia forjou o idioma italiano, assim como as obras de Walter Scott e Shakespeare foram fundamentais para os ingleses. No Brasil, temos os romances de Alencar, que esforçou-se por representar a nação brasileira como um todo. Há outros livros, porém, que forjam não nações, mas culturas, em especial culturas regionais que não chegam a se configurar como nacionais. E este é o caso, decididamente, da cultura sul-rio-grandense.

No Rio Grande do Sul, lembramos de nossos heróis, fazemos feriado e comemorações no nosso dia, o 20 de setembro, e cantamos com entusiasmo o Hino Rio-Grandense. Mas esse gaúcho, hoje representado no Laçador, cantado em nossos CTGs e revivido no acampamento farroupilha, é acima de tudo uma figura criada pelos escritores, e poucos foram tão importantes como Simões Lopes Neto. Em Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913), esse pelotense forjou muito da personalidade mítica do gaúcho, sua valentia, sua honra, o amor pela terra e pelo cavalo.

Neste ano, comemora-se exatamente cem anos do lançamento de Contos Gauchescos, obra obrigatória nos bancos escolares e acadêmicos gaúchos, mas que poderia estar no cânone de qualquer seleção de literatura brasileira. A obra traz, além da apresentação em que Blau Nunes surge como narrador, 19 contos: "Trezentas onças", "Negro Bonifácio", "No manatial", "O mate do João Cardoso", "Deve um queijo!", "O boi velho", "Correr eguada", "Chasque do imperador", "Os cabelos da china", "Melancia - Coco verde", "O anjo da vitória", "Contrabandista", "Jogo do osso", "Duelo de Farrapos", "Penar de velhos", "Juca guerra", "Artigos de fé do gaúcho", "Batendo orelha" e "O 'menininho' do presépio".

Todos os contos são narrados por Blau Nunes, que em algumas histórias é protagonista, mas em tantas outros assiste como espectador interessado e atento. Outro aspecto fundamental do livro é a linguagem utilizada, que é representação da linguagem popular falada do gaúcho, mas retrabalhada de forma erudita a ponto de criar uma terceira linguagem rica e particular. O grande Guimarães Rosa, anos mais tarde, e confesadamente inspirado em Simões, utilizaria essa técnica em Grande Sertão: Veredas.

Trezentas Onças, o primeiro conto do livro, é um verdadeiro cartão de visitas da prosa e da linguagem de Simões, com seus gauchismos ("guaiaca, cusco"), espanholismos ("mui, cousa") e ditos populares ("brabo como uma manga de pedras"). A temática também começa a moldar os valores do gaúcho, estando a honra acima de tudo, mesmo quando grande quantia de dinheiro está em jogo.

Este trabalho peculiar com a linguagem exige um pouco do leitor contemporâneo, que talvez tropece em alguns trechos, especialmente nos mais descritivos, como este de "No Manatial": "Vancê acredita?... Nesta manhã, desde cedo, os pica-paus choraram muito nas tronqueiras do curral e nos palanques... e até furando no oitão da casa;... mais de um cachorro cavoucou o chão, embaixo das carretas;. e a Maria Altina achou no quarto, entre a parede e a cabeceira da cama, uma borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto entrar..."

"No Manatial", aliás, é o mais belo - e talvez mais triste - conto do livro, revelando um pouquinho de como nascem as lendas e as assombrações. O que impressiona em Simões é que apesar do linguajar próprio, a narrativa flui com facilidade, tal qual um causo contado de mate na mão:

"E os dois, ¾ a que te pego! a que te largo! ¾ se despencaram por aquele lançante, em direitura ao manantial! E, ou por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça ou nem se lembrasse do perigo, a Maria Altina encostou o rebenque no matungo, que, do lance que trazia costa abaixo, se foi, feito, ao tremendal, onde se afundou até as orelhas e começou a patalear, num desespero!. A campeirinha varejada no arranco, sumiu-se logo na fervura preta do lodaçal remexido a patadas!... E como rastro, ficou em cima, boiando, a rosa do penteado."

O livro também pode ser muito interessante como um documento histórico, revelando um pouco do pensamento e da cultura gaúcha (e brasileira) de um século atrás. Em "O Negro Bonifácio", por exemplo, a representação feita da mulher e do negro causa estranheza e até revolta no leitor moderno, mas retrata os valores da época de publicação do texto:

"Os dentes [da Tudinha eram] brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios da morocha deviam ser macios como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju...  (.) No barulho das saúdes e das caçoadas, quando todos se divertiam, foi que apareceu aquele negro excomungado, para aguar o pagode."

Este famoso conto, a propósito, retrata a disputa de quatro gaúchos pela Tudinha, "a chinoca mais candongueira que havia naqueles pagos". A disputa evolui para um duelo sangrento, do qual emerge ao final a revelação de uma história de amor secreta, ardente e improvável da bela morena com o Negro Bonifácio.

Talvez o sucesso dos contos seja que sua essência não está nas palavras, nas frases, na linguagem popular retrabalhada, e sim no subtexto, no não-dito, naquilo que só o leitor acostumado com os meandros do gênero conto poderá perceber, como a relação de Tudinha com o Negro.

Hoje, passados cem anos, pode-se dizer que Contos Gauchescos é um clássico em todas as acepções de clássico para Calvino, "um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer", "uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe", "livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos". É, enfim, um livro além de seu tempo e de seu espaço, pois embora o espaço seja bem definido, o sul do sul, o pampa gaúcho, o pampa gaúcho de um tempo de guerras, facões, cavalos e heróis, as temáticas são universais: traição, ciúme, honra, mesquinhez, saudades.



Marcelo Spalding
Porto Alegre, 17/2/2012

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