Eu não acredito em ano novo. Todo dia, aliás, é fim-de-ano. Se o ano novo marca o momento em que a Terra completa em torno do Sol a volta que dura 365 dias, então a cada dia essa volta está sendo completada com relação ao mesmo dia do ano anterior. Em outras palavras, tudo depende do ponto da volta que escolhemos para marcar o início e a chegada. Houve uma época em que pensei que aniversários fossem os verdadeiros anos-novos - se é para contar de 365 em 365 dias, então a volta só se completa, para cada um de nós, no dia em que nascemos.
Mas hoje em dia nem em aniversário acredito mais. Em si mesma, a celebração das voltas, dos ciclos completos - tantos anos de vida, tantos meses de namoro, tantas décadas após uma vitória ou uma derrota - não significa nada mais que isso: marcação de tempo. No entanto, revestimos e impregnamos essas datas de uma espécie de aura, como se elas tivessem uma qualidade mágica, mística, que as fizesse diferentes dos demais dias e excepcionais em si mesmas.
Assim como em nossos aniversários nos sentimos especiais - merecedores de atenção, com uma certa obrigação de cumprir os votos de felicidades, ou deprimidos (seja pelas rugas, seja pela impossibilidade de ter um "feliz aniversário" só porque os outros o dizem) -, no ano novo somos tomados por uma inebriação coletiva, que parece ainda mais verdadeira e real porque é compartilhada por quase todo o mundo.
As horas desse dia estendido, vazando entre o 31 e o 1º, são removidas do curso cotidiano, como se não apenas marcassem o tempo, mas se estivessem fora dele. Nesse ponto de transição, que nos parece épico, decisivo (afinal, estamos testemunhando a "virada"), os eventos também ganham contornos acentuados. O primeiro bebê do ano, ao qual somos apresentados pela tevê; por contraste, a tragédia aumentada de infelicidades e azares (mas que dia para morrer!...)
Vestes novas
Acreditar que esse dia está fora do tempo é de certo modo um luxo para quem pode pôr de lado necessidades mais prementes. Afinal, nos casos extremos, contingências da vida se impõem e apagam a impressão de excepcionalidade. Imagino um paciente no hospital, conectado a aparelhos, em tratamento intensivo: o ritmo dos remédios, das máquinas, dos sinais vitais independe da efeméride; começa antes, continua depois, ao largo da contagem regressiva e do estouro dos fogos. Isso sim é tempo fora do tempo.
Claro, médicos e enfermeiras hão de celebrar - ou lamentar o plantão -, e, se o paciente estiver consciente, há de fazê-lo também. Assim como presos, fugitivos, soldados em batalha; pessoas que por algum motivo não têm condições materiais para festejar (talvez preocupações mais imediatas - fome, frio); gente que tem de trabalhar, guardas, jornalistas de plantão. Ainda que todos esses participem, com alegria ou pesar, da excitação coletiva, os fatos resistem à ficção da passagem do ano.
Tento entendê-la (a quebra de fé tem dessas coisas: esforço de analisar o que, em última análise, é irracional). A euforia com que chegamos ao dia 31, exaustos fisicamente pela maratona de compras e festas. Dizemos, no entanto, que estamos exaustos pelo ano, o ano velho, cansado, o ano já quase passado. Fazemos retrospectivas, as nossas individuais ecoadas pelas da mídia (ou seria o contrário?). Não quero nem ver, neste ano, a enxurrada de narrativas heróicas e monumentais sobre a primeira guerra do século, o terrorismo do novo milênio, o caos do país vizinho...
Repetimos o refrão: nossa, como passou rápido (ninguém reparou que todo mundo com mais de 10 anos sempre diz isso?). Pensamos como nossa vida mudou, ou não; comparamos o ano com anos prévios, fazendo saldos. E nos desnudamos do ano velho como quem se livra de uma roupa suja, carregada a contragosto por mais tempo que o desejado: finalmente temos a permissão de jogá-la fora e envergar veste nova e fresca. Daí nossa animação: a tal chance de começar do zero prometendo apagar nossos erros, como personagens de um videogame com mais de uma vida, renováveis a cada novo jogo. Esquecer os desagrados do ano passado, dar voz aos nossos desejos (em forma de promessas), e ter a impressão, momentânea que seja, de vida renovada: a ilusão de "imortalidade", como se nós mesmos estivéssemos fora do tempo. Não admira que fiquemos eufóricos, excitados, histéricos.
Depressão de fim-de-ano
Tudo isso é celebrado em massa - e, como se para nos assegurar da importância da data, tevês e jornais propagam imagens do revéillon em Paris, na Times Square, em Copacabana, dando, por meio da sedução da "notícia", força de fato à virada do ano. A força de fato, aliás, vem primeiro da dimensão coletiva. Festejar a entrada do ano com um pequeno jantar em casa nunca parece ter o mesmo impacto, a mesma validade da celebração em grupo, a multidão olhando os fogos e trocando abraços. É como se o ano só entrasse ali, na praia, na praça. Para quem passa a data dormindo, o ano não entra, mas se instala sem fanfarra e já um pouquinho gasto.
Digo isso para frisar, se é que já não me tornei repetitiva, o caráter construído, ficcional do ano novo, e, por tabela, de outras festividades, religiosas ou não. Ao participarmos dessas comemorações, nós nos ligamos - religamos (religare, religião) - ao resto do mundo. Quando o fazemos, seguimos rituais - a roupa, a comida, o brinde, os cumprimentos (para não falar nas sete ondinhas). Nossa emoção ao fazer tudo isso - que, não duvido, é sincera - é um ato de fé. Não é à toa que falei de religião. Para tomar parte, é preciso acreditar.
Até mesmo quando pensamos rejeitar a atmosfera alucinada do fim-de-ano endossamos sua validade. A famosa depressão de fim-de-ano que perturba quem não consegue "entrar no clima" já virou, ela também, um dos rituais da época. Afinal, se não ligássemos para a euforia geral, não ficaríamos deprimidos por não fazer parte dela.
Mas não quero estragar a festa
Não me entendam errado - não falo em tom de reprovação ou denúncia. Minha intenção não é desmascarar "mentiras", muito menos estragar a festa. Não quero que as pessoas deixem de comemorar - não quero eu deixar de comemorar. Também me emociono, e por muito menos, aliás.
Essas ficções, e inúmeras outras, são necessárias, ou talvez melhor dizendo inevitáveis. E, apesar do caráter "construído" - o que as faz contingentes ao tempo, ao contexto, mutáveis -, não são menos verdadeiras, ou menos humanas. Pois foram inventadas por nós (nossos antepassados), e somos nós que, coletivamente, as reinventamos e transformamos. Se há, eu confesso, muita coisa que me incomoda na loucura coletiva desta época do ano, há também muito o que admirar, muito o que aprender sobre nós ou nossa cultura, e muito com que se comover.
Serei mais clara (espero) usando uma estória, uma cena de filme. O filme, Trem da Vida, é protagonizado por uma comunidade judaica que se "autodeporta" num trem falso para fugir da perseguição nazista. Há um momento em que os ânimos se exaltam e a comunidade quase se desmancha em briga ao discutir a existência, ou não, de Deus. A discussão ocorre na celebração do Shabat. Ora, o Shabat é um ritual que festeja Deus e o dia de seu descanso - ou seja, saber se Deus é real ou fictício é central para que o rito prossiga. Mas as convicções pró e contra são igualmente fortes (e cegas), e o Shabat ameaça virar guerra pela discordância.
Entra na discussão o visionário Shlomo, o "louco da aldeia" - de fato, seu líder espiritual, que concebe e arquiteta a fuga mirabolante. Shlomo, na tradição dramática do bobo-da-corte e do arlequim, é o personagem mais lúcido, que tem coragem de desnudar a verdade por não estar preso a freios sociais. Seu discurso, que silencia a cizânia e serve de prece para o Shabat, é um dos momentos mais tocantes - e universais - do filme: "Deus existe, Deus não existe. O que importa? Perguntem se o homem existe. Foi o homem quem escreveu a bíblia. O homem, filho de Deus, inventou Deus para inventar a si mesmo."
Desejo que nós possamos nos livrar das falsas questões e das discórdias inúteis, e que possamos celebrar a nós mesmos ainda que (imperfeitos que somos) não o façamos todos os dias; ainda que precisemos de data, hora e traje: Feliz Ano Novo.
Olha,Daniela,eu não sei o que te dizer senão que triste e que curioso ver uma pessoa ser tão fria e desligada como você.Espero que você seja feliz assim.Um abraço,Bárbara
Sempre que eu dizia que todo o dia é ano novo, as pessoas me olhavam torto. "Como ela ousa não ser como todo o mundo?" Não é isso. É que eu também acho que cada um tem a sua referência. Mas, o ser humano sempre precisou de seus rituais, suas marcações. Afinal, esse tempo que marcamos é só nosso, só corre assim aqui na Terra. O que me comove nessas comemorações não é o sentido religioso - que não tenho - mas é a beleza de saber que todos, no mundo inteiro, estão comemorando a mesma coisa, desejando dias melhores e mais uma porção de energias positivas. É emocionante, não dá prá não fazer parte disso. Mesmo comemorando a dois, o resto do mundo está comemorando também.
Cara Bárbara. A colunista escreveu: "não quero eu deixar de comemorar. Também me emociono, e por muito menos, aliás." Isso é ser frio? Não é necessário ser triste, frio e desligado para compreender e criticar a realidade. Um abraço cordial.
Daniela
Calma! afinal não é assim tão arbitrário. O sol "para"(literalmente) no céu nesse momento. Todos os povos comemoraram essa época, mesmo antes de se medir os anos em dias e meses. Para quem é do hemisfério norte e está no frio, é a esperança de q o sol finalmente "vai voltar".
A única época q se assemelha a essa seria no equinócio, mas aí é muito mais sofisticado para se usar como referência (os romanos usavam).
O sol parar de "fugir" para o sul, esfriando tudo, e começar a voltar é algo a ser festejado.
Claro q a igreja aproveitou a festa pagã e "cristianizou", mas isso já é outra história.
Um abraço "solsticial".
Sérvio
Tenho a impressão de que a maioria das pessoas que leram o seu texto vão achar que você além de cética é deprimida, triste, portanto facilmente criticada pela sociedade. Eu, não. Acredito em Deus não porque as religiões dizem que ele existe, mas por um simples olhar deprimido numa noite em um hotel fazenda para céu estrelado e com uma imensa lua cheia, quando então me perguntei, triste e só: quem fez isso? A minha mente consciente ou inconsciente me respondeu, e nunca mais duvidei. Hoje me considero deísta. Falar dos nossos sentimentos fora de um divã, expô-los a quem quiser ler e ouvir é um ato de coragem e, claro, embora não seja eu cético, também concordo com tudo o que você disse. Mas pensando melhor, se ficamos enraivecidos com tantas bombas e tanta bebedeira, inclusive no natal (até parece que Jesus era alcoólatra), ficamos fora do contexto, somos logo rotulados.