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Sexta-feira,
4/1/2002
Ronald Polito: Arquivo do Próprio Aniquilamento
Jardel Dias Cavalcanti
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“E chego aonde nada mais reluz”.
(Canto IV – Inferno – Dante)
Acaba de ser publicado pela editora Nankin (S.P.) o livro de poesias de passagem, do poeta Ronald Polito. Anteriormente, Polito havia publicado três livros, na seguinte ordem cronológica: Solo (ed. Sette Letras, 1996), Vaga (ed. do autor, 1997), e Intervalos (ed. Sette Letras, 1998).
Como sugere o título do livro, os poemas estão tomados por uma espécie de inanição lacunar, típica daqueles que estão “de passagem” ou que percebem o mundo desse ponto de vista. Outros dois livros do poeta nos comunicam, ambos em seus títulos e poemas, este estar-no-mundo de forma lacunar: Vaga (“caminho feito poeira”, diz no poema “passagem”) e Intervalos (“sombra de muitos braços/sem mão única”, no poema “auto-retrato probabilístico”)
Na capa do livro “de passagem” aparece uma foto de uma rodovia deserta, margeada por um pequeno barranco coberto por gramas e um quase invisível céu azul pálido. A foto reforça essa idéia lacunar da poesia de Polito, num espécie de encontro com os lugares vazios, que não deixam o registro senão da paisagem deserta que se desenha para quem está “de passagem”. Quem tiver o trabalho de percorrer toda a obra poética de Polito vai se confrontar inúmeras vezes com essa idéia do deserto, do vazio e da atmosfera silenciosa e solitária dos vãos na qual se constitui, pois, como diz o poema “afeto”, de Vaga, “ninguém está comigo”.
Três dos poemas que, dentre outros, nos afetam mais brutalmente em “de passagem” são “Flâmula”, “Circo” e “Um sabre que não se sabe”. Tratam ou de alguém morto, no primeiro caso, ou quase morto, nos outros dois casos, tratados como “o sempre-quase-alguém” e “o morto que nunca desmaia”.
Mas “Flâmula”, com certeza o mais drástico dos três, é o que mais nos fala daquele que vive na condição “de passagem”: o próprio poeta (ou a própria poesia contemporânea?). Há um verso no poema que chama a atenção, pois trata da questão central da poética de Polito: “não se comparte um desastre”. Aqui nem quem vivenciou o desastre na própria carne ou quem participou dele como especta-dor afetivo podem comunicá-lo. O que resta para o poeta senão uma relação negativa com o mundo e com a linguagem? É a partir daí que se funda a poética de Polito: da consciência da impossibilidade e da necessidade de uma descrição dessa impossibilidade. Por isso, poemas como desertos pontilhados de cactos, criados desse “acúmulo de inércia” a partir da “força de arranque do não.” (do poema, “Área de trabalho I”).
O poema, como um todo, apresenta-se como um prisma de muitas nuanças onde cada palavra multiplica seus sentidos criando uma leitura vertiginosa (como uma flâmula sob um vento perigoso), labiríntica, prenhe de significados – que também podem ser não-significados, pois a cada momento apontam para novos entendimentos e desentendimentos. Sua forma e seu conteúdo encerram, portanto, aquilo que se pode denominar o ambíguo, a alusão e o engenhoso. O fato de conter a cada palavra ou verso uma expressão diferente de si anuncia a poesia como uma impossibilidade. Estamos frente a uma poética que, diante da insignificância (ou significância) de cada gesto, seja da vida ou da linguagem, não tem outra solução senão deixar, em forma de poesia, o arquivo do seu próprio aniquilamento.
Como um descendente de Beckett, Polito cria uma poesia que se presta a difamar sistematicamente sua própria existência no próprio movimento da linguagem que a constitui. Num jogo brilhante entre forma e conteúdo, o autor faz eclodir de seus versos a destruição da própria poesia como veículo de comunicação ou significação. Embora um bombardeio de proposições tente se constituir em seus versos, seu desejo maior é exterminar frases que poderiam formar-se em um sentido único e comunicante: “esta disposição/ dos extremos/ conforma-se com o empenho/ do seu desenredo” (do poema, “Instruções para desativar”). O que ele cria é arrasador: “um silêncio diante de outro silêncio” (no poema “Área de Trabalho II”).
Por isso, os poemas do livro “de passagem” constroem-se a partir de uma hostilidade formal que não busca adular ou encantar o leitor, ao contrário, quer ser penosa para ele. Para penetrá-los “é preciso ter/ a contrição e tenacidade/ de uma britadeira” (do poema, “Serial Killer”), já que “detalhes ciclópicos/ obstruem/ a figuração das imagens” (de “Instruções para desativar”).
Os 34 poemas que formam o livro, e que representam a veia inconfundivelmente pessoal da poética de Polito ecoam, em sua labiríntica e radical negatividade, as espantosas palavras de Borges, em “Labirinto”:
“Não haverá nunca uma porta.
Está dentro e o castelo abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro”.
É justamente em sua poética que reside o caráter ameaçador de sua obra. Afinal, quem suporta viver dentro de um universo onde uma palavra pode significar outra ou, o que é pior, pode não significar nada do que se supunha que significasse? Um universo onde cada pista apenas poderá te levar a outra pista que, como no labirinto espelhado projetado por Da Vinci [1], sucessivamente conterá uma expressão diferente de si, um caminho novo, mas ao mesmo tempo um caminho que não te conduz a saída nenhuma.
Terminada a leitura dos poemas do livro “de passagem”, que faz ressoar em nós as eternas palavras de Dante, “Deixai toda esperança, ó vós que entrais” (Canto III- Inferno), achamos por bem seguir o conselho do próprio poeta, que diz: “nem mesmo/ você mesmo/ se reconhece ali/ e a única franquia/ é conseguir/ seguir” (do poema “Inferno”).
Nota
[1] Leonardo Da Vinci tinha um projeto de construir um labirinto óptico formado por uma câmara octogonal, cujas partes seriam todas revestidas por espelhos. Dessa forma criaria através de reflexos intermináveis uma espécie de labirinto abstrato da irrealidade absoluta.
Jardel Dias Cavalcanti
Campinas,
4/1/2002
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