Quando comecei a assistir Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, Brasil, 2001), peguei-me irritada. Não simplesmente pela afetação das imagens, mas pela sensação de déjà vu: de já ter visto tudo isso antes. A teatralidade, o ritmo lento, o lirismo fácil das figuras (pés na terra, menino sob folhas, folhagem em vulto contra o céu), e a composição rígida, quase artificial dos quadros, isolando os elementos do contexto (os pés, as folhas). Lembrei-me do Cheiro da Papaya Verde; podia ter me lembrado de outros filmes que, com mais ou menos felicidade, usam o vocabulário e a sintaxe desse nicho cinematográfico – o dos “filmes poéticos”.
Por que fazer tudo isso de novo?, perguntei-me diante dos créditos iniciais. Por que repetir os recursos explorados, tão bem explorados, antes? Será que o gênero está já gasto, ou eu é que me cansei? Não tive tempo, porém, de responder às minhas primeiras impressões. Sem que me desse conta, esses meus pensamentos hostis de irritação e reprovação foram afogados pelo fluxo do filme – sons, imagens e história. Enredada, rendi-me às seqüências belas, em que música e cenas fundem-se, afinadíssimas. Não é que aquela folhagem contra o céu é linda mesmo?... As cenas, as figuras, as falas revelam aos poucos sua estranheza, desfazendo a impressão original de déjà vu.
Tudo, atores inclusive, parece menos dirigido que coreografado em torno da idéia central e literária, a fonte do filme, o argumento, tirado do livro de Raduan Nassar. Não há espaço para o acaso – o diretor controla tudo, rigoroso. Não à toa, a obra foi feita em isolamento, numa fazenda onde a preparação dos atores durou meses. A produção insular ecoa a história retratada: a família centrada e auto-suficiente de imigrantes libaneses, religiosa, tradicional, clivada do mundo em tempo e espaço, cujos vínculos externos estendem-se apenas às gerações (prévias e vindouras) de mesmo sangue.
O núcleo familiar, que, como recurso dramático, poderia ser símbolo universal, funciona no entanto como universo excepcional. Um dos filhos, André, ama sua irmã Ana. O incesto detona a partida de André; esta, a ruptura do círculo da família. O filme começa, aliás, quando o primogênito, Pedro, tenta levar André de volta à casa, onde ninguém, exceto Ana, conhece o motivo da partida. Os diálogos em “tempo real” – entre Pedro e André, entre este e o pai, entre Ana e André – são intercalados com a rememoração dos eventos que o levaram a deixar a casa. Esses diálogos são diferenciados do resto do filme por sua teatralidade, marcada não apenas nas falas dos personagens – complexas, empostadas, de inflexões magnificadas –, mas na própria ambientação: iluminação dramática, fundo escuro e foco nos atores.
Tragédia latente
As demais cenas – a memória de André, e o curso dos eventos depois de seu retorno – têm poucas palavras além de sua narração, inundando-se de imagens marcantes, bela fotografia e música envolvente. É fácil perder-se nessas seqüências em que a câmera se inebria nos detalhes – o sol varando os galhos da árvore, a mesa matinal envolta em luz branca, a figura sensual de Ana. Uma espécie de “teia estética” da qual é difícil se desvencilhar – difícil para nós, espectadores, e impossível para André, personagem. Ele é presa da rede cerrada da família: do poder centralizador do pai e do afeto imedido da mãe. Tanto quanto nós, André se delicia no idílio aparente da vida isolada e rural – folhas, terra e sol; pão feito e comido em família; festa e danças ao ar livre. É esse mergulho autobiográfico que revela o germe, a origem da tragédia: latente no idílio, semeada pelo afeto da mãe e pelo rigor do pai.
É assim que André descreve o incesto: conseqüência absurda (porque impossível, desastrosa) da lógica do pai, para quem a família deveria se bastar – “a felicidade só é possível no seio da família”. Para André, o amor materno, transbordante e físico, corrompe em vez de redimir, como se houvesse sido uma iniciação nos modos do incesto. Aí, novamente, o caráter de exceção, já que os outros irmãos se encaixam, em harmonia, na regra familiar. Ana e André são desviantes, diferentes, os dois irmãos que a vitalidade e o sexo fazem rebeldes à doutrinação paterna. Ainda que a catástrofe ocorra pelo desvio, pela aberração, o filme sugere que suas causas derivam do legado “arcaico” da família. O pai define a sucessão familiar como imbricação e dependência: cada geração vive da lavoura plantada pela geração anterior, e planta nova lavoura para alimentar a próxima. A tragédia de Ana e André é filmada como o desfecho, o resultado dessa lavoura imemorial. Não é praga, mas colheita.
Somos, como a família, vítimas do idílio. No entanto, ainda que os personagens sejam imersos em sofrimento, nós, espectadores, continuamos capturados pelo encantamento formal: o registro lírico do filme não muda, as cenas continuam belas, e até mesmo eventos desastrosos são registrados de modo tão sedutor que acabamos “gratificados” esteticamente. Se há dor no conteúdo, não há dor na sua representação, a não ser como dor estetizada. A opção fica clara na seqüência final, filmada como um balé, em especial no recurso à metonímia visual.
Tentação da forma
É esse, talvez, o pecado do diretor, Luiz Fernando Carvalho: render-se incondicionalmente ao próprio virtuosismo estético (de que a longa duração do filme é também um sinal). Nas palavras do pai, a paciência é a virtude fundamental (como a exortar não apenas o filho, mas também a platéia). Mas o diretor esquece outras virtudes artísticas igualmente importantes – a concisão e o recato. Se a complexidade estética é justamente o maior encanto do filme, há um ponto em que ela transborda, excessiva, e torna-se afetação, formalismo. Concedo que isso possa gerar um estado emocional intenso na fruição do filme, o que explica o sucesso de público, mas arrisca-se produzir, em vez de iluminação artística, o afeto momentâneo, o efeito que se esvai quando a trilha silencia.
Não surpreende que entre as qualificações que o filme recebeu de críticos estejam “frio”, “belo” e “exercício formal”. Como corolário da tentação formalista, enfileiram-se pecadilhos menores: lugares-comuns que destoam do rigor compositivo e fazem pensar de novo no sentimento de déjà vu, ou pior. Por exemplo, o paralelo formal explícito entre Ana e a ovelha negra do rebanho que ela tange. Ou a comparação da sedução de Ana por André com a captura de uma pomba, que ele prendera (e depois soltara) ainda criança. Essas duas imagens são desnecessárias à compreensão do filme, redundantes. Clichês pisados assim só funcionam se justificados por necessidade artística das grandes...
Não que isso comprometa a obra em seu todo. Lavoura Arcaica impressiona para além do formalismo e fornece momentos memoráveis, em especial o diálogo entre André (Selton Mello) e o pai (Raul Cortez). Raul Cortez consegue manter, ao mesmo tempo, a teatralidade das falas e o naturalismo do meio (cinema): declama o texto respeitando sua complexidade e o artifício da cena, mas as palavras soam inatas, inevitáveis, como se outra coisa não pudesse sair de seus lábios. É teatral, não forçado. A isso, junta expressividade física que, mesmo com o personagem sentado e quase imóvel, comunica imensa variação e intensidade emocionais (excelente exemplo de virtuosismo contido, talento e concisão). Sua interpretação vale o filme.
Selton Mello havia brilhado no diálogo também teatral com o irmão Pedro, no início do filme, alternando os rompantes de emoção do personagem com a imersão em uma tristeza quase irremediável. Sua cena com Ana, na capela, é de arrepiar – ainda mais se levados em conta o texto e os gestos difíceis. No entanto, empalidece no embate verbal com o pai (talvez por contraste com Raul Cortez?), ora vencido pela artificialidade do texto, ora tomado pelo exagero na interpretação. Mas as virtudes compensam as fraquezas – o que, aliás, pode ser dito em relação a Lavoura Arcaica como um todo.
Não sou amante do cinema nacional. na verdade, detesto. Mas creio que sua crítica pecou. "Lavoura Arcaica" é irmão de outro filme: "Limite". Sim, a qui a forma é quem comunica sentido. Este processo é realizado apenas por artistas de grande calibre. Este é o caso do cineasta que criou o filme "lavoura arcaica". Creio que a arrogância da crítica, que, antes de tudo, parece ter medido o filme em termos "outras paragens", deixo de sentir o filme a partir dele próprio. Não tenha medo de ser dominada e captada por imagens de beleza imensa e sensibilidade refinada. Há algo de ingênuo nesta imagens que você, pelo visto, não captou - ou não se deixou ser capturada por ela. A arte foi feita para ser vista com os olhos (perceber a forma) e você colocou sua mente na frente.
Caro Jardel,
Seu comentário tocou num ponto importante não só do meu texto, mas da arte de uma forma geral. Por isso, minha resposta será um pouco longa.
Concordo que a forma comunica sentido - talvez outros textos meus deixem isso mais claro. Mas isso não significa que o formalismo esteja acima de críticas.
A julgar de declarações do próprio diretor, Luiz Fernando Carvalho, _Lavoura Arcaica_ preocupa-se com questões que vão além do lirismo formal. O diretor é sensível à complexidade emocional dos personagens, às suas contradições, ao envolvimento entre as pessoas e sua herança cultural, seu contexto familiar e natural. Restaurando um modo de ver, a atenção a minúcias, o tempo lento, o filme opõe-se à dessensibilização "videoclipe", mas não apenas no que esta tem de formal. A intensidade dramática, de sentimentos e de palavras (a riqueza da linguagem, das falas) não pode ser reduzida às imagens ou ao conceito de beleza, e creio que apreciar _Lavoura Arcaica_ apenas por seus méritos estéticos não faz jus à intenção artística ou comunicativa da obra. É pelo fato mesmo de o filme colocar tão intensamente o sofrimento de André (desde a primeira cena) que vi-me incomodada pelos momentos de estetização, em especial o desfecho, como se esses momentos traíssem a profundidade alcançada em outros trechos. A iluminação que a arte pode nos fornecer não está necessariamente no prazer estético, na apreciação da beleza, numa experiência sensorial diferente – pode estar na incongruência, no desconforto, no questionamento pessoal ou social.
_Limite_ difere de _Lavoura Arcaica_ em sua qualidade “formalista”. Em primeiro lugar, a rejeição do conteúdo, a atenção à forma e ao suporte, e a tendência à abstração tinham um significado muito diferente no começo do século, quando os movimentos modernistas (em todas as áreas) exploraram essas vias expressivas como crítica e comentário à arte precedente, à academia, à sociedade. Hoje em dia, ser formalista não envolve o mesmo risco, não requer a mesma audácia, e – pior – não significa necessariamente postura crítica. É fácil fazer um quadro abstrato que será pouco mais que papel de parede – ou um audiovisual que não causará espanto na MTV.
_Limite_ é às vezes criticado por ser formalista demais, permitindo um “vale-tudo” interpretativo. Pessoalmente, discordo dessas críticas (e gosto muito do filme), mas acho importante ver como as obras podem nos fornecer, elas mesmas, as pistas de sua fruição. Essa fruição não é necessariamente intelectual, não significa sempre entendimento racional ou cerebral – há outras formas de insight e “comunicação” artística.
Talvez por isso você tenha entendido meu texto como “mental”. Acho também que você teve a impressão (imprecisa) de que rejeitei _Lavoura Arcaica_ como um todo. Ora, foi justamente por ter sido tocada profundamente pelo filme que lhe dediquei esforço e atenção. É desnecessário dizer que crítica não significa elogio, e que atentar para os problemas não exclui apreciar as qualidades. Foi o que quis dizer com meu comentário sobre a “perfeição”, ao fim do texto.
Tive a sorte de ir ao filme em um estado raro mas magico: fui desarmado. Assim, os cliches, os lugares comuns e as redundancias nao me agrediram, pelo contrario, me envolveram e embreagaram. As 3 horas e tantas passaram incolumes e eu so tirava os olhos da tela para deita-los momentaneamente sobre minha companhia - nao menos "tentadora em formas". Talves essa seja a receita para ir assistir ao filme. O risco talves seja se render ao insano apelo de Ana.
Daniela Sandler,
O assunto talvez já tenha esfriado... mas como só agora pude assistir ao "Lavoura Arcaica", resolvi comentar os comentários que vc fez ao filme.
Em primeiro lugar: concordo em quase tudo com o que vc disse. Concordo com a força da cena da capela (sem duvida o melhor momento de Selton Melo), assim como concordo com a observação ao talento de Raul Cortez e com a beleza da música. Mas, diferentemente de vc, não acho que "as virtudes compensem os excessos". A artificialidade do texto (que vc atribui ao "teatralismo" das falas) me entediou profundamente. Quase deixei o filme em sua primeira metade.
O que me fez ficar e vencer o tédio? Certamente a interpretação da Spoladore (e, confesso, a tentação de saber no que dariam os desejos incestuosos).
Acho que o diretor confundiu as duas linguagens, digo, a cinematográfica e a literária. Pecou por não adaptar o texto para cinema. Ficou forçado e artificial. A crítica do sul do país, quase que sem excessões, "amou" o filme, que se tranformou rapidamente em baluarte e redentor de todos os nossos fracassos fílmicos.
Talvez se eu não tivesse sabido de tanta empolgação, tivesse fruido melhor o filme. Nah! O filme é chato mesmo!
Um abraço,
Eduardo Luedy
ps. Gostei muito de seu texto. Vou tentar ler mais coisas suas.