COLUNAS
Terça-feira,
25/9/2012
A lírica pedregosa de Mário Alex Rosa
Jardel Dias Cavalcanti
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O livro de poemas Ouro Preto, de Mário Alex Rosa, foi lançado este mês em Belo Horizonte pela editora Scriptum. A orelha do livro foi escrita por Murilo Marcondes, professor de Literatura Brasileira da USP e uma das maiores autoridades em Murilo Mendes. Já foi resenhado pelo consagrado poeta mineiro Carlos Ávila. O livro conta com uma belíssima capa, projeto do poeta e artista gráfico ouropretano Guilherme Mansur.
Este é o primeiro livro de poesias publicado por Mario Rosa, embora se tenha conhecimento de seus poemas publicados de forma diversa em jornais literários, sites, revistas, plaquete em edição do próprio autor. O seu segundo livro, denominado Via Férrea, já se encontra no prelo e será publicado pela editora Cosacnaify. Existe ainda o livro de poesia infantil ABC futebol clube e outros poemas, publicado em 2007 pela editora Bagagem.
Segundo Harold Bloom, em sua obra Angústia da influência "os poemas não são criados por prazer, mas sim pelo desprazer de uma situação perigosa". O livro Ouro Preto deriva dessa ideia e é, por isso, pedregoso. Não é uma estrada fácil para se andar. Nele confluem a paisagem física e simbólica de Ouro Preto e o descaminho amoroso do próprio poeta. Poesia um pouco dura, pérola irregular, a nos dar o sentido dos desalentos afetivos de uma existência em crise.
Parafraseando o próprio poeta: "Não me tire a dor, nela inicia minha poesia". Mas se o poeta é um fingidor, ele finge uma dor que deveras sente? E se o próprio poeta diz: "a minha memória é falsa" - onde ele quer chegar? Pouco importa, a poesia redime a mentira. Ouro Preto, de Mario Alex Rosa, é um livro de enganos e desenganos, como talvez seja a memória que temos de Ouro Preto, que em parte inspira os poemas ou é o cenário lírico do poeta.
É difícil andar em Ouro Preto, pois suas ruas de pedras irregulares nos desequilibram a todo instante, nos jogando na incerteza da possibilidade de um andar reto. A vertigem do barroco externada na própria caligrafia da cidade de pedra? Além do mais temos que conviver com fantasmas do passado, tão presentes quanto os vivos, nas figuras de Aleijadinho, Tiradentes, Claudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Marília e o bêbado Guignard elevando Ouro Preto à categoria de cidade sonhada. Poetas, usurpadores, traidores, escravos, pintores, e segundo Cecília Meireles, "as ideias". Mais: becos perigosos, subidas íngremes, vida fantasiosa contemporânea para menos do que a cidade já foi um dia: não dá para competir com seu passado. É demais para apenas uma cidade. Ela precisa ser dura, de pedra, para continuar a existir na sua desconfiguração barroca. Ela precisa de muito mais, precisa de novos poetas para se erguer da sua atual ruína.
Guilherme Mansur caligrafa Ouro Preto, Carlos Bracher faz explodir suas tensões em inspiradas telas vangoghianas, Elias Layon torna impressionável sua neblina romântica, Fani Bracher entende que a alma mineral é sua única alma possível. Mário Alex, confidente, depõe contra a Ouro Preto de ruas que impedem o amor, de anjos que não são cupidos, da arquitetura como uma parede intransponível a separar almas. Faz tudo isso como se pisasse em si mesmo, revelando suas "próprias mãos, sujas/ do amor que não lhe coube saber/ e, se soube, matou".
Ouro Preto não é o livro de um poeta que busca a catarse, mas do poeta que rouba as flechas de São Sebastião e as crava contra seu próprio corpo. Faz isso porque a poesia precisa de uma memória com nervos expostos para o cadafalso da criação. E se precisa pagar por dores memoráveis, que seja a poesia a sua moeda de troca. "Não há perdão nisso./ Recolhido, no que já tem de muito moído,/ prossegue entre as horas restantes o acordar."
Não há desculpa para o poeta, resta-lhe enfrentar a si mesmo para encontrar a poesia: "É hora de expor o rosto/ diante do espelho. De se mirar por dentro/ de sua própria ilha". Ouro Preto impõe-se tanto quanto suas próprias dores de amor. "Não tenho em mim/ qualquer outra cidade,/ senão a tua, que me atravessa/ feito espada na bainha", diz no poema "Da espera".
A imagem da paixão de Cristo é tanto recurso da representação dolorosa do barroco como sua também. Seu "Corpus Christi" aflige-se em poesia porque "desconhece alívio". O poeta vaga dentro de si mesmo e pela cidade insone: pecados, remorsos, desconsolo remoendo-o e remoídos pelos seus versos. Diz: "Ouro Preto, depois que dormes,/ acordo".
Na sua penumbra de cidade soturna, apenas uma rara luz o atinge, brilho que vem da "moça branca de neve", motivo do desalento do poeta, por ser amor e impossibilidade de amor ao mesmo tempo. Por isso só lhe reserva um quase-lugar, na sua sádica interrogação: "guardada para sempre num poema?". Violência de quem sabe não poder se permitir a completude e, talvez, saber a razão da impossibilidade da completude.
Essa violência emocional que fere com palavras a branca pele da moça amada nos faz pensar nos embates físicos da poesia de Armando Freitas Filho. Lição de poesia aprendida por Mario Rosa, mas levada para outro campo de batalha. Como no poema abaixo, que cito integralmente:
DE ALGUM LUGAR
Se pensa em partir, parta.
Peça-lhe, com cuidado,
para tocar de leve a face
trincada pelo tempo.
Se é para cortar, corte.
Mas, prepare bem a carne,
todo cuidado é pouco.
A sobra
sem cerimônia despeje,
essas coisas - atrito do amor-,
num aterro.
Nem uma oração pode salvá-lo de um amor "coberto de penas", um "amor tardio". Ela "rezando de joelhos" para o poeta sem Deus revela apenas uma descompostura diante do amado "perdido sem Ele, sem você e sem nada".
A cada momento a poesia de Mario Alex mistura dolorosamente ruas, casarões, museus, pontes, literatura, santos e paisagens com sentimentos de fracasso: "A lua atrevida ilumina a ponte sozinha,/ enquanto o riacho passa embaixo,/ o meu amor covarde invade a cena,/ braços abertos diante da cruz vazia". Como no pathos barroco, o poeta não tem outra morada: sua poesia revela-se com uma cruz, lugar certeiro para o assujeitamento de "Cristo confinado em sua dor".
O poeta observa de seu lugar, espécie de paisagem sentimental "da contemplação" de Ouro Preto, a sua amada que sobe e desce as ladeiras, visita igrejas, estuda, peca e vive "sem sombra de dúvida/ vive na dúvida". A dúvida revela-se contradição no amor dela, que enquanto na alma é "sempre coberta de certezas", no corpo, no entanto, "é ingrato na sua liberdade".
O amor precisa de tempo em suas exigências. É privilégio dos ociosos. Reclama o poeta em "Conversas num café" que a falta de tempo "este sim, foi a maior de todas as faltas". "Seu bilhete da Sexta-feira da Paixão" mostra com uma oferenda-ofensa-atéia seu desprezo e repúdio ao tempo roubado para Deus: "É preciso rezar com raiva".
Pedregulhos criados pelo poeta, pisados por nós leitores, a machucar os pés. No labirinto dos afetos decaídos não há saída. O poeta parece amar o perdido, segundo Murilo Marcondes, "ameaçando soterrar todas as possibilidades". Menos a possibilidade da poesia existir. Eis a sua redenção final. A poesia quando é boa, não redime apenas o poeta, redime a própria poesia. Ouro Preto, de Mario Alex Rosa, faz isso. Ainda redimindo Ouro Preto mais uma vez pela arte.
Obs: A primeira ilustração é de Fani Bracher e a segunda de Elias Layon.
Para ir além:
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
25/9/2012
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