COLUNAS
Terça-feira,
16/10/2012
Bailes & Festas
Guilherme Pontes Coelho
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"O que o senhor tá carregando aqui, seu Guilherme?"
"Gente morta", respondi, para fazer uma graça, embora o peso das caixas convencesse de que poderia haver cadáveres dentro delas.
A pergunta foi feita por Biúca, um rapaz simpático e de traços neandertaloides que trabalhava para a transportadora que fez minha recente mudança. Biúca se referia a um dos paralelepípedos que ele e mais alguns senhores tiveram de carregar, no braço, do quarto andar de um prédio ao caminhão e do caminhão ao vigésimo andar, via elevador, de outro prédio, catorze quilômetros mais tarde. Estes hexaedros eram caixas reforçadas de papelão recheadas com livros. A maneira como foram preenchidas as tornava blocos maciços: eu, que nunca aprendi direito a transportar meus livros em todos estes anos, tenho a mania encaixar os livros em caixas grandes, preenchendo todos os interstícios possíveis no interior delas, como se brincasse com um Tetris tridimensional. É divertido, e é uma má ideia. O ideal seria fazer o mesmo, mas em caixinhas. (É quase certo esquecerei esta recomendação no futuro, de novo.)
Antes de prosseguir, um pouco de números (eu os detesto) para mostrar o quanto Biúca e companhia tiveram de trabalhar, e para mostrar que, além do pagamento, a gorjeta foi merecida.
Cada paralelepípedo desses media 61cm de comprimento, por 47cm de largura, por 31cm de altura. Se para calcular o volume de cada um teríamos de multiplicar o comprimento pela largura pela altura, então teremos o volume de 88.877cm³ por caixa. Na mudança, havia 12 caixas só de livros. Ou seja, será um universo de 1.066.524cm³ de livros. Usando o volume de um livro já mencionado noutro lugar, teríamos algo próximo a 64 exemplares por caixa. Usando o mesmo livro para chegar ao peso de cada caixa, teríamos o resultado arredondado (para baixo) de 73kg. Como eram 12 caixas, ao todo Biúca e camaradas carregaram 876kg de papel.
Os livros sempre são a parte mais sensível da mudança, embora esses números potentes tentem dizer outra coisa. É também a única parte que não costumo deixar para a transportadora. Na hora de fazer o Tetris tridimensional, recomendo forrar por dentro as caixas com imensos sacos plásticos. Depois de lacradas, também as envolva com plástico por fora. É uma medida preventiva contra líquidos. Mas lembre-se, use caixas pequenas.
O problema do sistema Tetris é que os livros são organizados por tamanho, área, volume, e não por assunto. Eles são confinados nas caixas de forma a criar um grande sólido compacto e uniforme; mas os livros, por dentro, estão desorganizados. Eles são retirados da harmonia aberta das estantes para serem lançados ao caos claustrofóbico das caixas. Ali, no interior escuro do papelão, é que os livros ficam em silêncio.
Porque eu não imagino uma biblioteca como um templo silencioso. Não a minha, pelo menos. Eu a sinto como uma Babel. Não a Babel hexagonal e silenciosa de Borges, me refiro à Babel bíblica. Quando passo os olhos sobre as lombadas, ouço as vozes de todos aqueles volumes, umas sobre as outras, umas interrompendo as outras, numa sequência involuntária. As vozes costumavam ficar numa sala de 24m², clara, aberta, que recebia a luz do sol quase que ininterruptamente - a face do prédio apontava para o nor-nordeste, ou para algum ponto entre nor-nordeste e o norte. Testemunhas diurnas de minha Babel particular eram os carcarás (Polyborus plancus) que, no topo das palmeiras jerivá, de frente para varanda, construíram seus ninhos. Enquanto comia meu próprio café da manhã, costumava vê-los carregando o desjejum deles no bico: ratos ou pássaros menores. Pela manhã, eles tinham o hábito de ficar em guarda nas antenas periódicas do prédio vizinho. Eu, em fins de semana ou quando havia uma folga, sentado na cadeira de balanço, tirava os olhos de um livro, ou caderno, se estivesse escrevendo, e os via lá nas antenas, parados, atentos. Funcionavam como um alerta para mim, um espelho, um aviso: concentre-se.
Às vezes, falconídeos amontoados nas antenas reproduziriam uma cena de Os Pássaros, de Hitchcock. Aquela em que corvos se empoleiram sobre o playground da escola de Bodega Bay, na Califórnia, e esperam as crianças saírem e as atacam. I ask my wife / to wash the floor / ristle-tee, rostle-tee / now, now, now. No caso dos meus carcarás, eles se multiplicariam sobre as antenas vizinhas, depois mergulhariam em ataques rasantes para pegar, matar e comer as crianças na quadra poliesportiva, que, muito barulhentas, às vezes me distraiam. Mas nunca houve derramamento de sangue, e tais imagens sumiam quando meus transes, que suponho rápidos, acabavam.
Durante o dia, a sala-biblioteca era uma nuvem. Leve, solar. Sem reservas, era inundada pelo mundo externo. A luz natural, petulante, eliminava todas as sombras do cômodo. Não havia espaços onde segredos, risos e segundas intenções pudessem brincar.
À noite, contudo, a sala-biblioteca se transformava. Ter todos aqueles volumes na sala era como abrigar uma pequena multidão. Por estarem todos organizados, assemelhava-se a um baile são-petersburguês de Liev Tolstoi, com suas coreografias ortodoxas. Como eu participava da minha biblioteca mais à noite que de dia, sempre tinha a sensação de estar perambulando no meio de uma aristocracia dançante, ouvindo o fru-frus de seda entre uma valsa e outra. Um baile noturno interminável, que durou todo o tempo em que morei naquele apartamento.
Eu me mudei, no entanto, para outro apartamento, uma morada de frente para o Oeste, sem quadras poliesportivas por perto, mas sem carcarás ou palmeiras à vista (vigésimo andar). E ainda não tive nem tempo disponível nem disposição confessa para organizar todos os livros, extraí-los das caixas e definir as seções onde cada um ficará. Mas o tanto que já conseguiu sair do confinamento tem enfeitado o novo domicílio de uma forma mais agradável. Espalhados por toda a casa, jogados uns sobre os outros de forma aleatória (da mesma maneira que foram jogados nos hexaedros), desobedientes aos critérios de assunto, ordem alfabética, editora ou mesmo cor da capa, os livros não me fazem sentir num baile de Tolstoi, mas numa festa de Jay Gatsby. Há Freuds ao lado de Capotes, Glenn O'Briens junto a Elias Canettis, Montaignes colados a Taleses, Marcel Prousts torrando a paciência de Lionel Shrivers, George Elliots jogados aos cantos, Kafkas e Carones ainda juntos, sei lá por quê, e Dumas e Tezzas enchendo a cara.
Quando percebi a vitalidade que uma casa cheia de livros tem, reconheci que dei a resposta errada a Biúca. Aquelas caixas carregavam gente viva. Antevi que quando as abrisse os livros sairiam correndo cheios de atitude para encher a nova casa de vida, dando uma cenografia gatsbyana à minha rotina doméstica. E já para entrar no clima, já com uma disposição de Fitzgerald, presenteei Biúca e parceiros com um tipo diferente de gorjeta: uma garrafa fechada de red label. Eles adoraram, e Biúca disse:
"Gosto de gorjeta assim. Remédio pra dor na coluna."
Guilherme Pontes Coelho
Brasília,
16/10/2012
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