Sei que não devia, mas ainda me surpreendo com as reações de leitores. O clichê de que um texto tem vida própria não nos prepara, como escritores, para a multiplicidade de interpretações e os mal-entendidos. Claro, muitas vezes a surpresa é grata, e o modo como alguém entende o que digo presenteia-me com leituras insuspeitas, novos pensamentos, sentidos latentes ou alternativos. Diálogo! Mas, às vezes, as interpretações são angustiantes, e meu impulso é gritar ao leitor urgentemente que suspenda seu julgamento e que me dê o benefício da dúvida antes de formar opinião a respeito não só de meu texto, mas de mim.
Alguns teóricos definem toda tentativa de comunicar sentido como “productive miscommunication” – algo como “comunicação imprecisa, mas produtiva”. Para essa vertente, a coincidência exata entre aquilo que eu quis dizer e aquilo que você ouviu é impossível: há sempre dissonâncias, sempre lacunas. O que define a comunicação bem-sucedida é a produção de sentido a partir desse encontro entre escritor e leitor, orador e ouvinte, emissor e receptor. Isso pressupõe que os papéis se invertam, sejam intercambiáveis – você, ao ler meu texto, já está também emitindo mensagens.
O bom dessa visão é permitir diálogo ainda que o entendimento mútuo pleno não ocorra (se é que é possível), ainda que haja ruído na comunicação. Essa visão não tem nada a ver com relativismo banal e leniente, vale-tudo, segundo o qual toda interpretação é aceitável, ainda que absurda. A permissividade desse relativismo assume que as eventuais falhas de compreensão justificam qualquer versão, inclusive manipulações conscientes ou reações delirantes. Leva à comunicação improdutiva em suas várias encarnações: um emaranhado de monólogos esquizofrênicos; distorções deliberadas ou não de sentido; choques verbais que logo se transformam em embates pessoais; pontos de divergência que separam a trajetória dos que falam.
Reconhecimento de campo
O que define a validade de uma interpretação é o modo pelo qual ela se liga ao texto original: a leitura tem de tomar como base o texto apresentado, tirar desse texto (nem sempre verbal – pode ser uma imagem, uma peça teatral, uma canção) as suas pistas, guiar-se pelos dados presentes (ainda que implicitamente) na obra original. Isso inclui o conteúdo do texto, mas também seu contexto histórico, social, epistemológico. O texto, ou a emissão original, são o solo do qual devemos partir, lutando para que nossas concepções prévias – das quais é impossível nos desfazer – não embacem nossa visão do terreno. De nada adianta projetar maravilhosa estrutura se a mecânica do solo em que ela se assentará não suporta sua fundação. É preciso atentar ao terreno, adequar a ele a bela estrutura, mudar talvez o projeto original.
Com isso digo que as pessoas podem construir elaborados argumentos, muito persuasivos, para defender pontos-de-vista que não têm raízes no diálogo. Um raciocínio pode ser convincente pela engenhosidade de pensamento ou pelo brilho aparente de suas provas e razões, sem por isso corresponder ao texto referido. Às vezes, a intenção é boa, e creio que nesses casos sempre há chance de restaurar o diálogo produtivo. Mas pode ocorrer também que a interpretação seja feita com má-fé – e aí não há muito o que discutir, pois a falha comunicativa é intencional e estabelecida a priori. Ninguém discute ética, ou moral, com o ladrão, pois roubar é exatamente o que ele quer.
Como alcançar a tal comunicação imprecisa, porém produtiva? De minha parte, tento tomar a minha interpretação de um texto como provisória – ainda que seja necessária como ponto-de-partida, não deve por isso congelar em ponto-de-vista. Uso dessas “certezas temporárias”, que tento fazer fiéis à obra, mas modifico-as com a seqüência do diálogo. Esse diálogo não envolve necessariamente o autor da obra – minha visão trava contato com a visão de outros leitores, ou outros autores; com outras obras, com o conhecimento histórico; e muda com o tempo, comigo mesma, em leituras subsequentes do mesmo texto.
Com tudo isso, quero dizer que a responsabilidade sobre o entendimento de um texto pesa tanto sobre mim, como autora, como sobre você, que me lê. Quando a interpretação é injusta, sinto-me traída por minhas próprias palavras (pela minha incapacidade de me fazer mais clara), mas também pela incapacidade de compreensão do leitor. Entender um texto requer atenção, respeito e cuidado. É preciso ler do começo ao fim – sei que isso parece óbvio, mas muitas vezes tenho a sensação de meus leitores não lêm (ao menos, não com a mesma atenção) o todo de meus textos, ignorando por exemplo a conclusão essencial que dá sentido ao resto e que às vezes muda seu significado aparente. É o caso de meu texto de fim-de-ano (“Os melhores votos, de uma cética”), assim como de “Uma coluna sem coração” e “Virtudes e pecados”.
Meias-palavras
Claro, alguns hão de me criticar por isso – por não construir o raciocínio linear e redundante que anuncia todos os seus passos de início e que passa o resto do texto a repetir o anúncio com frases diferentes ou evidência variada. Ora, se o destino do texto já está traçado no primeiro parágrafo, para que ler o resto? Sim, às vezes é preciso abrir o jogo logo no início, seja por estratégia retórica, seja pelo contexto (um tribunal, por exemplo), seja por opção criativa. Mas não deve ser essa uma obrigação constante. Como leitora, sinto que “finais surpresa” são um elogio à minha inteligência, uma recompensa por meu esforço de compreensão, além da valiosa oferta de sentido novo. Textos que repetem, na conclusão, a tese do primeiro parágrafo parecem supor que sou surda ou desatenta (ou talvez burra), além de desperdiçar tempo e espaço com redundâncias. Para bom leitor, meia palavra basta...
Além da leitura integral – do começo ao fim, e sem pular partes –, outros aspectos requerem o cuidado do leitor. A escolha das palavras: o porquê deste, e não daquele, vocábulo corresponde a nuances de significado essenciais à precisão do texto. Parece sutil demais? Ora, bons textos, em sua maioria, são sutis. Opiniões consistentes, bem-fundamentadas, são nuançadas pela consideração de suas próprias limitações ou contradições. São o oposto de declarações peremptórias, do tipo amo-ou-odeio, 8 ou 80, preto no branco – que são simplistas, maniqueístas ou reducionistas.
Isso tudo não tem a ver apenas com textos formais – livros, ensaios, colunas, cartas de leitores. Digo tudo isso pensando também nas comunicações cotidianas, nos diálogos prosaicos, nos emails – e, mais profundamente, nos relacionamentos entre as pessoas. E, como você é bom leitor, não precisarei repetir as implicações todas descritas até agora apenas para mostrar como elas ocorrem nesses casos. Você há de refletir e, no processo, há de pensar em um monte de coisas que não me ocorreram, ou que não escrevi. Talvez essa reflexão tome tempo (mais que a leitura casual, incompleta ou desatenta) e demande mais esforço. Talvez você chegue à conclusão, como eu, de que para ler bem não é possível ler tudo, nem mesmo muito, e nunca rápido. Talvez você pense em coisas que demolirão minhas palavras. Talvez eu perca um leitor. Mas, como escreveu Clarice Lispector, perder-se também é caminho.
Daniela!
Esse seu texto me deixou impressionada: mandei pra tudo que é meu amigo!
Estava aqui procurando um texto sobre ruído na comunicação (por conta de um projeto de leitura de textos que estou escrevendo) e aí aquele buscador Google me trouxe até aqui. Quanta precisão, atenção, inteligência, e... e, inda por cima, no final tem a Clarice Lispector? Assim é demais. Parabéns!
Lúcia