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Terça-feira,
18/6/2013
O corpo-reconstrução de Fernanda Magalhães
Jardel Dias Cavalcanti
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Um livro exemplar. Uma experiência de escrita sobre o trabalho artístico que é ainda uma possibilidade de experiência artística em si mesma, na forma de livro. Além disso, torna-se agora uma referência fundamental do ponto de vista metodológico para os pesquisadores de arte. Trata-se do livro Corpo-reconstrução ação ritual performance, de Fernanda Magalhães, editado pela Travessa Editores, de Curitiba.
Uma das grandes dificuldades encontradas por artistas acadêmicos é a de produzir um conhecimento sistematizado sobre suas próprias experiências artísticas. E produzir este conhecimento a partir de uma lógica que não transforme sua experiência em um escrito-frankenstein do que foi sua vivência no reino da arte.
Pesquisadores-artistas sofrem um doloroso dilema: além de criar uma obra de arte (o que não é pouco) devem os pesquisadores ainda escrever sobre seu trabalho, sistematizá-lo, para que outros possam compartilhar da experiência, via publicação, ou que essa sistematização seja a comprovação dos resultados de seu trabalho de pesquisa dentro da universidade. Para um artista, essa tarefa não é prazerosa, pois pressupõe desviar um tempo que deveria ser destinado unicamente à criação para o trabalho de disseminação de seus resultados.
Para Fernanda Magalhães, como comprova os resultados do belíssimo livro por ela editado, isso não é um problema. Ao contrário, encontra-se ali a possibilidade de expandir a experiência artística para outro meio, o livro, numa obra caleidoscópica onde referências diversas não só relatam sua vivência com a arte, mas ampliam as raízes e galhos do seu trabalho.
Para o leitor, uma viagem extraordinária pelos meandros da oficina da criação artística e uma possibilidade de expansão de suas próprias inspirações. E isto já é indicado na epígrafe de Waly Salomão: "Cúmplice leitor, que este tapete trançado seja para você um tapete voador".
O livro apresenta os resultados de um projeto de criação desenvolvido para (ou durante) o doutorado, que consistiu em nove ações performáticas realizadas entre os anos de 2003-2008. A este projeto deu-se o nome de "Corpo Re-Construção, Ação Ritual Performance". O resultado do projeto é amplo e diverso: vídeos, acervo de imagens, áudios, exposições, performances, publicações e consequente criação do site www.fernandamagalhães.com.br.
Como diz a artista "O trabalho final para o doutorado como tese é um livro-de-artista, impresso como objeto e também publicado virtualmente como site. A tese é uma tese-de-artista, desenho residual, texto-tecido-pele, superfície. Ali estão contidas construções, desenhos, pinturas, fotografias e textos que compõem a criação-tese. As ações performáticas foram realizada com grupos diversos e têm como resultado registros que constituem o trabalho. São impressões/inscrições dos corpos sobre lençóis brancos, fotografias, vídeos, paisagens sonoras, desenhos e gravuras."
Fernanda não desejou fazer uma tese burocrática, dessas que mofam nas estantes de difícil acesso de uma biblioteca universitária. O resultado da sua pesquisa é um objeto vivo, instigante, que se amplia por vários meios, como indicado acima. Ela diz: "As publicações são a obra-multiplicadora-informe-fragmento-rizoma-expansão-deslizamento-escoamento-transfiguração e pretendem construir uma rede de ações através da experiência de artista na construção de uma criação-tese."
Vamos agora diretamente às várias virtudes do livro. Antes de tudo, vale dizer que o livro é em si mesmo um objeto muito prazeroso de se folhear, por sua bela constituição gráfica, pela riqueza de imagens (fotografias de desenhos, performances, referências, escritos diários, anotações etc), pela disposição dos textos, fotos, narrativas.
Uma coisa que vale a pena chamar a atenção, e que felizmente destoa de nossos tristes tempos narcísicos, são os agradecimentos. Há sempre uma reverência educada, pode-se dizer, aristocrática, nos múltiplos agradecimentos aos partícipes, não se esquecendo nenhuma dívida com pessoas que contribuíram para o projeto, direta ou indiretamente, seja intelectualmente, afetivamente ou artisticamente.
A sistematização do livro é o que nos interessa mais prontamente agora. É sua metodologia que nos parece exemplar, ao codificar uma experiência de arte sem engessá-la numa relato frio, sem transformá-la num simples documento burocrático da universidade. Ao contrário, o livro constitui-se como um objeto provocador, artístico, sem deixar de lado a capacidade de descrever claramente a experiência por ele reatada, anotada, mas também ampliada no seu próprio fazer-se de livro-arte.
Podemos dividir a organização do livro em três grandes partes: 1) Contextualização; 2) Influências e formação; 3) Experiência. Estas três partes, embora aparentemente cortem em pedaços o trabalho, no fundo promovem o encontro necessário à concatenação dialógica das vivências artísticas da autora.
Primeira parte:
No primeiro caso, deve-se a apresentação do livro a Paulo Reis, professor de História da Arte da UFPR, também curador e ensaísta. Num belo ensaio de dez páginas, o autor mapeia a situação histórica da ideia do corpo do artista como suporte de sua própria poética na arte brasileira, onde explicita ao leitor sua definição: "Tratava-se do corpo fenomenológico da experiência estética da obra pelo qual a experiência do espectador era dada na justaposição da leitura semântica com a experiência sensível. Negando a ideia da mera contemplação distanciada, a obra de arte configura-se ontologicamente na vivencia e apreensão sensorial do espectador".
Para explicitar essa nova tradição dentro da arte brasileira, Reis apresenta o histórico dessas vivências que parte de Flávio de Carvalho, nos anos 30, passando pela experiência do corpo contestador durante o Regime Militar, nos anos 60, com artistas como Barrio, Antonio Manuel e Cildo Meireles. No final dos anos 70, com as pesquisas da subjetividades alargadas, até que nos anos 90 a questão da visceralidade encontre sua dimensão em experiências que vão da crise do corpo com a AIDS ao multiculturalismo (Homi Bahabha e Edward Said). Isso sem deixar de lado as ideias da microfísica do poder, de Michel Foucault, os corpos-desejantes de Guatarri/Deleuze, e as injunções do pós-modernismo, onde o corpo-imagem solapa as individualidades transformando-se em mero espetáculo (promovido por academias, dietas naturais, terapias, cirurgias plásticas). Alguns artistas contemporâneos dentro dessas perspectivas são Rosângela Rennó, Bill Viola, Félix-Gonzales-Torres, Yael Bartana, Cindy Sherman, entre outros.
É nesse momento que Fernanda Magalhães insurge-se com a contestação do corpo padrão a partir da própria experiência do estranhamento e inadequação, levada para dentro de sua poética como reflexão urgente do mundo contemporâneo.
Ao longo da apresentação, Reis mapeia o lugar das pesquisas de Fernanda Magalhães, desde seu projeto "Auto retrato no RJ", de 1993, onde a artista "problematiza discursos do controle da subjetividade e do corpo", até seu mestrado com duas pesquisas, uma sendo "A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia", de 1995, e a outra "Classificações Científicas da Obesidade", de 1997. Nestas pesquisas buscava-se o questionamento dos "padrões que vinham à tona e eram desconstruídos pelos textos de colagens: a ordem sexual imposta (...) a norma de beleza (...) a possibilidade da inscrição da diferença pelo desejo e afeto" e onde o "discurso médico foi pensado criticamente em sua vertente de normatização dos corpos (...) questões do desejo, autonomia, aceitação, regras impostas e autoridade científica".
Dentro desses projetos vai nascendo, evidentemente, questões relativas à própria dimensão poética da fotografia artística, problema que jamais deixou de nortear o trabalho de Fernanda Magalhães. Era necessário, também, pensar a fotografia como modo de representação, de constituição de corpos simbólicos, para reconstruí-lo depois de desconstruí-lo.
O projeto "A Expressão Fotográfica e os Cegos", de 2002, junto com a poeta Karen Debértolis, alavancou novas possibilidades de se pensar a fotografia. O encontro com o fotógrafo e pensador Evgen Bavcar foi marcante nesse sentido, quando "realiza uma inquirição sobre o ato de ver, do invisível que se esconde no mundo do visível e na territorialidade do olhar cada vez mais obscenamente descortinada pela lógica da publicidade". A ideia de uma "ética das imagens" permeia o pensamento de Bavcar, num momento em que o esfacelamento das imagens e a iconofilia acrítica do entretenimento exigem "pesquisas contemporâneas da visualidade que conduzam à apreensão visual do mundo à partir das teorias de gênero, descolonização e re-politização da arte e de seu fazer".
Finalmente, o "Projeto SOS", momento onde o desejo fica à deriva, aberto e imprevisível, numa busca pelos outros, como garrafas literalmente lançadas no lago e destinadas a encontros casuais. Extensão dessa busca, "Impressões de Memória", de 2002, torna-se uma "pele-palimpsesto de memórias vivenciadas pelo corpo". Junção entre o corpo-político e o corpo-sensível, através de impressões em lençóis e fotografias a máquina-desejante, motor da existência, enfim, se re-constrói.
Segunda parte:
Neste momento do livro, trata-se da reconstituição da trajetória pessoal da artista e as influências que mais se impregnarão em seus trabalhos de artista. Do seu meio familiar, às leituras, vivências culturais amplas, contato com diversas artes e ofícios, à definição do seu conceito de pesquisa a partir da ideia de Rizoma, tal qual pensada pelos filósofos Deleuze e Guatarri, essa "Panorâmica', apresenta um momento chave do livro.
É aqui que se define os marcos da pesquisa rizomática, ou seja, o amplo cruzamento de referências, vivências, e o desejo de se estabelecer uma via para a arte menos certa, onde o desejo, por seu caráter desnorteador, seja o disparador de raízes novas a cada momento da criação.
A definição de Rizoma vai ser a parte capital para se descrever os percursos da pesquisa, sendo inclusive um motor para que o leitor ande pelo livro como se estivesse à deriva, achando aqui e ali significados novos, recortando as experiências e as multiplicando a partir de seu próprio desejo. Segundo Deleuze/Guatarri "o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com linhas de fuga". Uma espécie de Bateau-Ivre de Rimbaud, jogado na correnteza da vida, mas sem leme direcionador, a experiência se renova na incerteza do momento futuro, sendo construída ao sabor do encontro casual e vivo do presente.
Não cabe aqui, em espaço tão pequeno, citar todas as influências que o livro anota, mas vale resumi-las: do pai, o gosto (ou melhor, entusiamo) pelas artes gráficas, jornalismo, teatro, fotografia, num cruzamento lúdico de todas as áreas que aponta os interesses da arte contemporânea. Mais do que isso, e tão importante, a ideia de pesquisa, que talvez tenha dotado Fernanda Magalhães dessa capacidade de implementar uma organização de ideias tão bem caracterizada, mesmo num ambiente desterritorializado. Ela diz: "Dentro do espaço familiar também estávamos sempre envolvidos em pesquisas e produções. (...) E estive sempre em várias fronteiras, de identidades imprecisas, múltiplas e rizomáticas". Fora do ambiente familiar o mesmo processo de interesses que vão de balé clássico, moderno e jazz, a tocar piano, violino, cantar em coro cênico, fazer animação e cinema super 8.
Embora critique no livro a ideia de sistematização e sua "redução do trabalho do artista", a opção pelos fragmentos é que vai indicar "as porosidades e as contaminações nele impregnadas". Influências musicais contemporâneas como a de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, dentre outros, participação em festivais universitários de teatro ou musica, ser professora, como várias pesquisadoras da fotografia marcam parte dos cruzamentos, como László Moholy-Nagy e suas colagens, que a ensinaram a transgredir a fotografia como imagem intocável do real. Ou José Oiticia e Geraldo de Barros que ampliam essa ruptura com a ideia da fotografia como registro do real, retirando os elementos que proporcionam a profundidade e a tridimensionalidade das fotografias, fundando, assim, no Brasil, a ideia da fotografia criativa.
A relação com a fotografia performativa vem do interesse por Cindy Sherman, tornando as questões de gênero e identidade problemáticas. Nesse sentido, também, a crítica que Fernanda Magalhães faz ao excesso midiático de valorização da aparência construída por razões mercadológicas se abre com a configuração das novas subjetividades criadas pela re-construção do corpo via imagem fotográfica e performances.
Sua crítica se ampara em textos de Nelson Brissac e também na genial ensaísta americana Susan Sontag que parte para o ataque à exagerada poluição visual do mundo contemporâneo: "A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, estão todos viciados. As sociedades industriais transformaram seus cidadãos em dependentes de imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental."
Finalmente, Fernanda Magalhães indica como influência a ideia de rito tal qual pratica pelo artista Arthur Bispo do Rosário, com seus objetos e performances, que transformam tudo ao redor, as pessoas, os acontecimentos, em uma encenação de vida. Esta ideia, com certeza, é marcante na prática artística a que Fernanda Magalhães tem se dedicado: sejao cruzamento de materiais, na constituição de narrativas esquizoides ou nas imagens que desconstroem o lugar do corpo tal qual expedido pelo poder.
Outras conexões importantes são Lygia Clark ("com seus objetos relacionais, as ações coletivas, o corpo e as sensações, a experiência como parte do processo e a arte entranhada com a vida") e a convergência entre Hélio Oiticica, John Cage e o movimento Fluxus (da coleção de objetos à exploração de sons e ruídos, o rompimento entre as noções de arte/não arte, e a invenção de "novos modos de viver" como estratégias de construção de si mesmo dentro do coletivo).
Pode-se pensar também num cruzamento de referências que influenciaram Fernanda Magalhães quando a reflexão de Susan Sontag ("questionar sobre o que, e para que, estamos produzindo imagens") se encontra com a prática de Marcia X ("com suas performances onde, com humor, critica o discurso falocêntrico e propõe novas figurações para a sexualidade").
Terceira parte:
O que chamo aqui de parte final do livro é o momento onde a artista expõe uma reflexão mais direta sobre o seu trabalho e as fotografias, desenhos, anotações dos processos. Fartamente ilustrado (documentado), as fotos constituem por si mesmas verdadeiras obras de arte: fixam instantes, recortam situações, revelam tramas narrativas ditadas pela imagem. Estão longe de serem apreciadas apenas como registro. São, isto sim, ampliação do corpo da arte de Fernanda Magalhães, sua extensão que nos atinge aqui e agora.
De uso de fotos sem interferência a fotos alteradas através de procedimentos de colagens, interferências, anotações, desenhos, pinturas e retoques direto na cópia ou sobre os negativos, todas as experiências técnicas visam para a artista multiplicar as possibilidades de sua criação.
Para as fotos, principalmente o corpo da própria artista e, em seguida, partícipes de performances coletivas, foi o motivo de exploração artística. "O corpo da mulher gorda, meu próprio corpo, negado e excluído, foi o impulso para a construção das diversas séries de trabalho que desenvolvi", diz a artista. A partir daí, reflexões que "visam denunciar, de modo ácido, aspectos da cultura urbana ocidental, no que tange às rígidas exigências do corpo e da higiene", como anotou a historiadora Margareth Rago. Dessa investigação crítica brotarão, posteriormente, pesquisas no Departamento de Arte da UEL, em Londrina, com alunos de fotografia.
A parte final do livro, portanto, relata minuciosamente os procedimentos das experiências, que sedimentaram o projeto "Corpo Re-Construção Ação Ritual Performance". A ideia principal é a do corpo que se reconstrói de migalhas, deixando de ser apenas uma experiência individual para se tornar uma obra coletiva e pública. Interessa ao corpo inscrever-se no mundo, alterar sua configuração e a do ambiente.
A presença do texto "Corpo de plástico", da autora, aponta a crítica a esse corpo idealizado, padronizado, bonito, leve, jovem, sem doenças, criado por próteses, e que faz inscrever-se na prática e na crítica da artista como oposição a existência de um corpo experiência. Corpo re-construído pela vivência, corpo afetivo e partícipe do mundo, Corpo crítico, mergulhado na sua singularidade, que através da arte se reconstrói sem fim, seja na dor, na alegria, no êxtase, na brincadeira, no prazer, no amor ou na revolta. Corpos, enfim, conectados aos seus prazeres e seus desejos.
Para encerrar, as fotografias mostram esse corpo livre das imposições da forma estruturada pelo sistema social repressivo e ordinário. Aqui são captadas imagens dos corpos em performances, sendo coloridos, nus ou vestidos, que se tocam ao mundo e se deixam tocar pelo mundo, dançando, colados a lençóis onde deixam sua marca, corpos que cheiram, lambem, beijam, desenham e são desenhados, que se marcam e são marcados, que se abraçam, no qual são inscritos e se inscrevem em espontânea existência. Corpos que, pelo riso, pela cor, pelos gestos livres, exibem a vida em movimento. Corpos que ousam ser obras de arte. Assim como o livro de Fernanda Magalhães, que ousou ser também, mais do que um simples compilação retórica das vivências, uma obra de arte.
Conclusão:
O livro tese-de-artista de Fernanda Magalhães, ao organizar de forma clara e rica os três momentos da criação artística (memória, referências e experiência), aponta caminhos profícuos para a produção do conhecimento sobre a arte nas universidades. Mas deixa de aviso um recado para quem trabalha com arte: "Sair do centro e buscar nas beiradas e bordas o contato com o elemento estranho abre outros canais de percepção".
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
18/6/2013
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