Não sei o que é que me deu na cabeça, num dia remoto. Devo ter caído da escada ou inalado sem querer cola de sapateiro, porque escolher ser jornalista é simplesmente um ato de insanidade. Não, leitor, não vou começar aqui a maldizer minha profissão. Gosto de reclamar deste dia fatídico em que escolhi ser o que sou, mas em tom de brincadeira. Pior mesmo nem é ter escolhido marcar um xis em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, no dia do vestibular, mas ter inventado de ser “jornalista cultural” (uma sub-raça, por certo). Isso porque ser jornalista cultural é, por vezes, uma humilhação, como tentarei descrever neste texto.
Antes de qualquer coisa, convém explicar por que escolhi este ramo do jornalismo: porque fui enganado. É, enganado. Tive uma professora no primário, chamada Olinda, que era realmente um gênio. Por meio de um sistema de joguinhos e coisas afins, ela conseguiu pôr na minha cabecinha tola todas aquelas regras de semântica e sintaxe. Ao contrário dos meus coleguinhas, eu adorava descobrir sujeitos, predicados e demais penduricalhos das frases. Foi graças a Olinda, na verdade, que eu descobri o que era a frase (às vezes eu me esqueço, bem sei). No último ano do primário, já me divertindo com a burocracia da língua, deparei-me com ela: a Professora Linda e Inteligente. O nome se perdeu. Foi ela quem me disse, sussurrando em meu ouvido púbere (na verdade ela deve ter falado a uns vinte metros, mas tudo bem), que eu escrevia bem. Não tinha a mínima idéia do que isso significava, mas assimilei a informação, sem, a princípio, acreditar nela. Não era modéstia nem nada; na verdade, nesta época, eu estava mais preocupado era com Simone, mas Simone não olhava para mim... No ano seguinte, um professor de História, lendo minha primeira prova, dizia que eu escrevia bem e sugeriu: “Por que você não faz Jornalismo”. Até então, para se ter uma idéia, eu queria ser biólogo (muitos dizem até hoje que eu deveria mesmo era ter escolhido viver entre as tartarugas ou os peixes-boi). E vivi essa mentira indolor até o cursinho, quando um professor de Redação virou minha cabeça definitivamente para esse troço de escrever. Eis-me aqui.
(Antes que me acusem de auto-indulgência, como tem acontecido: eles me disseram que eu escrevia bem. O que não significa que eles estivessem certos. Estou descrevendo o ocorrido, apenas. Deixo a concordância ou não para vocês.)
Durante a Faculdade, foram inúmeras as pessoas que me disseram para ser um repórter e não um jornalista cultural. Eles enfatizavam a diferença e, a cada vez que eu ouvia tal coisa, percebia que era eu quem enfatizava a diferença. O fato é que, naqueles dias, nada poderia haver de mais impossível para mim, extremamente tímido, do que o exercício da reportagem pura e simples. Além disso, já cultivava um ceticismo que ainda me acompanha, se bem que de modo mais moderado, o que era — é — completamente inconveniente com uma espécie de gente que ainda acha que pode mudar o mundo. Então, teimei contra o MacLuhan, os teóricos da Escola de Frankfurt, contra economistas cujos nomes não lembro, mas que escreveram calhamaços contra a globalização, contra Marx, claro, e até contra Freud (de quem gosto, se tomado com responsabilidade), e principalmente contra os manuais de redação e acabei onde estou: um jornalista cultural.
Para se entender do prestígio de que goza um jornalista cultural, vale aqui contar uma historinha que me acontece nos primeiros meses de profissão. Obviamente ocultarei o nome da geniosa senhora que fez os comentários aqui descritos.
Lembro como se fosse ontem (porque não lembro nem do que acabei de jantar): estava do lado do computador e, novo no jornal, tentava conhecer as pessoas. Ela era uma mulher interessante, não sexualmente interessante, mas intelectualmente (eu achava) interessante. Tinha uma coisa que eu buscava em qualquer pessoa, homem ou mulher, naquela época: bom humor. Era casada, portanto eu não tinha nenhum tipo de interesse físico na senhora. Escrevo isso para que não pensem meus detratores que escrevo sob a influência da musa do ressentimento.
Convenhamos que humor não era exatamente o que ela tinha. Era alegria. E por alegria a gente entende aquele tipo de felicidade meio boba, de sorriso fácil, de gargalhadas histéricas e gestos estabanados. As pessoas gostavam dela justamente por isso. E eu, ao contrário, era um cara triste, melancólico, pesado. Não chegava a chorar, mas quase. Umas duas ou três vezes cheguei a simplesmente ir embora, não agüentando aquilo tudo. Ela lá, sorrindo.
Ainda assim, com essas diferenças, dávamo-nos relativamente bem. Como ela tinha uma carreira mais longa do que eu (uns dois anos mais longa), tentava aprender alguma coisa. Sempre fui bom nisso: aprender coisas. Só que, para tanto, alguém tem que ensinar, coisa para a qual eu não atinava na época.
Num dia de crise, destas que são bem costumeiras, quando penso em mandar absolutamente tudo à merda, não tive dúvidas e perguntei a ela, razoavelmente bem-sucedida, qual era o segredo para. Rindo, ela disse que tinha muito o que me dizer, muito o que me ensinar. Sou todo ouvidos, senhora. E então ela me disse que eu tinha que ter mais o pé no chão.
— Como assim? — perguntei, fazendo cara de espanto. E não era para ficar espantado?! Acontece que aqueles que se dispõem a escrever sobre livros, música, teatro, estas coisas menores, o mundo todo parece conspirar contra. Sim, é mania de perseguição, sim. Sentimento de que aqueles que nos rodeiam estão cochichando entre si: lá vai ele, voando alto...
— Como assim?
— Outra hora eu te explico.
— Explica agora.
— Outra hora.
— Pô. Você vai me deixar assim, todo curioso? — apelei para o sentimentalismo da moça. Deu certo.
A moçoila desfiou, então, sua Teoria do Buraco de Rua. De acordo com esta teoria, eu deveria esquecer sistematicamente o livro, este objeto quase satânico, e me dedicar mais às coisas mundanas, de interesse real para as pessoas. Coisas como... o buraco de rua. Eu deveria esquecer Platão, parar de olhar as nuvens e olhar para baixo, para o buraco de rua. Deveria parar de tentar descrever uma obra de arte qualquer (e Deus sabe como isso é difícil hoje em dia) e me esforçar em descrever ele, o redondo, profundo, áspero e incômodo buraco de rua. Deveria não ficar horas diante do computador pensando em perguntinhas nem-tão-idiotas-assim para escritores; por outra, deveria ligar para o prefeito, fazer voz de brabo, e indagar sobre o buraco!, o buraco!, o buraco!.
Deus sabe o quanto essa conversa, que aconteceu há mais de dois anos, me enlouqueceu. Foram muitas as vezes em que me senti tentado a aderir à Teoria do Buraco de Rua. Por duas ou três semanas eu realmente devo ter aderido a ela, escrevendo parágrafos e mais parágrafos de uma prosa quadrada.
Hoje, contudo, sentando nesse apartamento, depois de ler mais um poema de Drummond, olhando para a estante, para o Aristóteles que implora para ser lido, lembro dela e de sua teoria furada. Também penso, obviamente, naquele buraco de rua que havia em frente ao jornal e que foi sumariamente selado por uns poucos quilos de piche.
...ficam os livros também, claro. Faz um tempão, li em algum lugar (não lembro autor, referência, nada) uma passagem sobre o "valor", ou a razão, da arte. O autor deixava a pergunta "para que serve arte" sem resposta, e começava a falar das coisas vitais da sobrevivência. Para que a gente trabalha? Para ganhar dinheiro. Para que a gente ganha dinheiro? Para comer. Para que a gente come, faz higiene, vai ao médico, constrói casa etc. etc.? Para sobreviver. E para que a gente sobrevive??? Para que o trabalho todo de manter a carcaça viva? Só por instinto? E o que nos faz humanos, então? A resposta do autor, claro, era esta: a arte. Vivemos para poder produzir e participar da cultura. Também ouço muita teoria do buraco de rua, na forma daquele sorriso amarelo quando tento explicar meu doutorado em "Estudos Culturais e Visuais". Que bom que nem todo mundo caiu na armadilha do buraco de rua - senão, a gente ia mesmo pro buraco!!!