Quando eu estive no Brasil, agora no fim do ano, ouvi de tanta gente a pergunta: "Mas você não está com medo?" Ouvi de amigos, gente da família, conhecidos, chofer de táxi, balconista, manicure....
Sim, estou com medo. Mas não, não estou com medo de que enfiem um avião na biblioteca da minha faculdade, nem de receber cartão de natal com antraz. Estou com medo de que aconteça alguma coisa com as pessoas aí, essas mesmas que me perguntaram, meus amigos, minha família, conhecidos, o chofer de táxi.
Desde que mudei para cá, senti o alívio e a beleza de viver com segurança. De não achar que vai surgir um cara armado assim que eu parar o carro no farol. De não ter minha carteira batida quando pego ônibus. De não temer pela vida de uma pessoa só porque ela pegou o carro e foi até o bar na sexta à noite.
Meu alívio sempre foi consciente, proclamado e festejado. Quando a tragédia toda aconteceu em Nova York, repeti para todo mundo que não ia voltar porque ainda me achava mais segura aqui. Com antraz e tudo. Com neura e tudo. Com avião fazendo pouso de emergência a três por quatro e tudo.
Acabei de saber de mais uma - mais uma! - conhecida que foi vítima de assalto a mão armada, em São Paulo, na semana passada. Cercada em seu carro de manhã - às dez horas da manhã - diante de testemunhas. Nem pudor (da luz do dia ou das pessoas) os assaltantes têm mais. Há mais ou menos um ano, uma amiga havia sido seqüestrada, passou a noite rodando com bandidos. Gente da minha família já passou por isso não uma, mas duas, três vezes. Um amigo teve seu pára-brisa arrebentado por uma pedra atirada de viaduto sobre a 23 de Maio - truque tosco para obrigá-lo a parar (não parou).
Endemia de violência
Eu de minha parte me considero sortuda, incólume: apenas fui assaltada uma vez, em que um pretenso vendedor de farol enfiou o tórax pela janela de meu carro (nem cheguei a ver a arma, mas não ia duvidar, né?) e levou R$ 30 - gente, isso não foi nada, nem valeu o susto! Sim, tenho sorte: o mais perto que cheguei de revólver foi quando assaltaram o carro à frente do meu. Isso, aliás, aconteceu duas vezes - pelo visto eu não parecia abonada o suficiente para ser roubada. Isso naquela época, porque agora, ao que me dizem, assaltam até velhinho aposentado e gente no fusquinha velho.
A violência no Brasil - nos grandes centros urbanos em especial, mas não só - se espalhou feito metástase: publicitário seqüestrado, prefeito assassinado, chacina na periferia, opressão nas favelas. Se os crimes são muitos, tão diversos e numerosos, que isso não sirva de desculpa para desconectá-los, como se fossem manifestações isoladas. Pois, se as motivações circunstanciais são específicas, conjunturais, há uma certa qualidade endêmica na violência brasileira.
É como se a gente, coletivamente, tivesse incorporado e aceitasse a violência como parte da vida, como fio do tecido social e político. Às vezes eu me perguntava como alguém conseguia viver em Israel, com tensão, bombas, atentados. Hoje olho para o Brasil e penso numa guerra civil - não tão explícita, talvez. Mas vejam: nas favelas, quadrilhas de traficantes instauram estado paralelo, mantido com metralhadoras. Sim, parece coisa de guerra - a porção de território que um dos combatentes conseguiu tomar.
Que mais? Um prefeito é seqüestrado e assassinado. O segundo do mesmo partido. Circunstâncias obscuras, cheiro de crime político. Crime político, gente! Não é preciso mais que um grau de separação para encontrar alguém que tenha ficado sob mira de arma. Muitos desses estiveram no meio de tiroteio - quando eu era criança, tiroteio era coisa de filme de bangue-bangue, de terras sem lei...
Contrição não enche barriga
Eu tinha uma professora, na faculdade, engajada em movimentos de habitação popular e reforma social. Ela dizia, em tom profético - talvez até um pouco desejoso - que, em alguns anos, seríamos vítimas de nosso próprio descaso pela miséria, prisioneiros de nossas casas e carros entrincheirados. Isso faz dez anos, e ela não estava muito longe da cena atual - com a diferença de que nem em nossas casas estamos seguros.
Quando eu era mais nova, idealista e ingênua, achava até bom que a desigualdade social se agravasse, porque aí os pobres, sem outra alternativa, talvez se revoltassem e fizessem um movimento em massa para mudar a ordem social.
Sim, nossa ordem social está abalada - mas não por revolta construtiva, e sim por violência dispersa, vingativa e egoísta. Por quê?
Porque talvez não sejamos tão diferentes assim dos assaltantes (e dos homicidas, e dos corruptos). Antes de explicar, quero rejeitar a versão simplista, que aponta vagamente a elite econômica como culpada pela disparidade social, e esta por conseguinte como causa imediata dos crimes. Estamos caducos de ouvir essa versão, estamos roucos de tanto repeti-la sem resultado, talvez tentando apaziguar nossas consciências ao admitir o pecado. Mas não basta confessar e rezar três-aves-marias: contrição não enche barriga nem pára bala de revólver. Também não expia nossa culpa, apenas nos distrai de nossas responsabilidades.
Sim, somos responsáveis. Mas de um modo mais profundo e perturbador do que gostaríamos. Somos violentos também. A violência - que, como vimos, é latente, não explícita como uma guerra - está na gente, em todos nós, na nossa cultura. Quando digo nós, falo de agentes históricos, de forças sociais. Nós forçamos pessoas para o meio do esgoto e achamos normal. Vemos crescer o menininho que vende chiclete no farol - seis, dez anos a fio, o mesmo menino, o mesmo farol - e achamos normal. Passamos na frente da favela, lemos sobre a última chacina do Jardim Ângela, temos uma faxineira que mora no Jardim Ângela - e estamos cegos para a nossa própria violência.
Peixes-obesos-mórbidos
Somos violentos com nós mesmos. Pagamos uma batelada de impostos, que pesam no salário médio (e no médio-alto também), enquanto os verdadeiros peixes-gordos - quero dizer, os peixes-balofos, peixes-sapo, peixes-obesos-mórbidos - sonegam e evadem taxação (e, ainda que não o fizessem, pagariam muito menos, proporcionalmente, do que as classes médias) sem que a gente solte um grito.
Sempre me horroriza pensar que o assaltante se sente no direito não só de roubar o dinheiro de outra pessoa, como também de atacar e matar. Falta escrúpulo moral básico. Bem, quando penso na sociedade em que esse assaltante nasceu e cresceu, não me surpreendo (mas ainda me horrorizo, e mais, pois falta escrúpulo moral básico em muito mais gente que os ladrões). Se eu fosse o menino do farol, talvez me horrorizasse diante do desfile diário de carros bacanas e gente estudada, cheirosa e bem-alimentada.
E, quando alguém tenta gritar - como o MST e outros movimentos sociais de base -, a gente sufoca o grito apontando defeitos, irregularidades, corrupções, violência. Somos rapidíssimos em detectar os problemas (naturais e inevitáveis) de grupos de reforma social. Os mesmos problemas que vemos no governo e na cidade e diante dos quais nos calamos. (Claro, o governo tem muito mais influência sobre o que e como aparece nas capas de revista do que o MST. Nós compramos a revista e compramos a sua versão dos fatos. Já vimos esse filme.)
Chega de calmante
Não sou louca de achar que o Brasil é o único país de violência endêmica. Aqui nos EUA, são os franco-atiradores, Unabombers e adolescentes frustrados. No Oriente Médio, são os estados beligerantes, intransigentes, seus exércitos, milícias e terroristas. Na China há uma ditadura; na África, lutas tribais; na Europa, um pouco de tudo: racistas, terroristas políticos. Não que o passado tenha sido muito melhor (imagine viajar de um feudo a outro na Idade Média). Acho mesmo que a violência é humana, inerente, que não há nada de novo nessas pulsões destrutivas - o que não significa que elas devam dominar e tomar conta de tudo. Afinal, os impulsos construtivos, criadores, de preservação da vida são igualmente humanos e inerentes.
A questão, para cada sociedade (para cada grupo, família, pessoa), é se esse embate de impulsos ou forças será dominado por violência, ou se a destrutividade será dominada (o que não significa eliminada).
Sociedades mais seguras, ou desenvolvidas, conseguiram de certa forma controlar sua violência latente. Digo isso num sentido amplo. Não só porque o patrulhamento, os mecanismos judiciários e a seriedade das punições contenham o crime. Mas também porque nesses países a disparidade social - que existe, sempre - é muito menor e menos aviltante que a brasileira. A violência quotidiana, invisível, mas nem por isso menos arrasadora da miséria está controlada. Não é que a pobreza não exista - mas não é ubíqua e escandalosa como a nossa: nem a pobreza, nem a violência.
Não cabe falar aqui dos meios pelos quais os países desenvolvidos controlaram sua violência (social, econômica, criminal). Esses meios têm seus problemas e complicações, por certo. Não vêm ao caso justamente porque não é questão de importar modelos. O que é preciso é que tenhamos a coragem de enxergar e entender nossa própria violência. De verdade, sem nos apaziguar com tranqüilizantes do tipo "é a estrutura social, vem de anos, de séculos, um indivíduo sozinho é impotente..." Sem o reconhecimento de nossos próprios crimes, nunca conseguiremos enfrentá-los - que dirá vencê-los.