Stoke Newington é um daqueles bairros em Londres que só os locais sabem exatamente onde fica. Nada a se estranhar: se você for aquele turista que vem passar apenas uns quatro dias aqui, vai voltar para casa pensando que Londres é Westminster e a Torre de Londres. Se você for aquele sujeito que vem estudar por dois meses, vai pensar que Londres é Westiminster, a Torre de Londres e os dois pubs preferidos: aquele perto de sua escola de inglês e aquele perto da casa de sua landlady. A cada mês a mais que você passa, você descobre a verdadeira face desta cidade, como ela se distancia de São Paulo ou do Rio não só pelo mais óbvio, que é o tempo esquisito, ou as pessoas com esse humor maluco ou pela mistura curiosa de mil nações. Londres simplemente tem gosto de Londres, tem esquinas de Londres, tem cheiro de Londres. Quem sabe, se você for bem esperto e passar uns seis meses pelo menos, você vai poder dizer no final que Londres simplesmente é. Não é uma região específica, ou um rio. Simplesmente é - verbo de ligação sem nenhum complemento, goste ou não goste.
E dentro da Londres que é, Stoke Newington talvez seja algum parênteses, algo que simplesmente possa te ajudar a matar a charada do enigma londrino. Rumo nordeste: Você passa além de Whitechapel (nem com essa moda de From Hell, o bairro voltou a ser algo nem remotamente atrativo, só muçulmanos com suas barbas e chapéus). Passa lá perto de Hackney, dobra esquina aqui e esquina ali à direita de Islington, e dá de cara com a Stoke Newington Road. Vai por mim - melhor pegar um táxi. Ou ir de trem e descer em Dalston Kingsland e caminhar um pouco como eu fiz.
Golders Green é o bairro judeu, Brick Lane, a rua-Bangladesh, Southall, a periferia indiana, West Acton concentra japoneses, os chineses entopem o Soho, e tinha que haver um lugar onde os turcos se escondiam. Mas eu não tinha nem idéia que o acaso me levaria a descobrir esse lugar justamente em Stoke Newington. Minha idéia era que lá ficava um cinema alternativo que (dizem) era bom e onde estava sendo exibido Monsoon Wedding (o tal do filme indiano que concorreu ao Globo de Ouro). Também sabia que lá ficava um tal de um restaurante turco (bom, em quaquer lugar você poderia encontrar um bom turco, não precisa ser obrigatoriamente numa vizinhança turca). Era o programa perfeito: um cineminha, um cigarrinho, um restaurantezinho, uma caminhadinha no vento de inverno. Sorrindo, antevendo a noite bom vivant, deixo a estação, ajeito meu sobretudo e meu cachecol.
A língua é engraçada. Nunca estive em Istanbul ou em Ankara, mas sei que os turcos usam um monte de cedilhas e tremas, umas vogais a mais. Também sei (detalhe importante no cenário cultural-gastronômico das grandes cidades britânicas) que o tal do Kebab é muito apreciado pelos turcos, que controlam inúmeros pontos para a venda da fina iguaria, conhecida (blasfêmia!) por churrasco grego no Brasil ou nos Estados Unidos por Gyros, uma palavra (blasfêmia!) grega. Mas neste bairro, nossos amigos olímpicos não têm vez. Gostaria que vocês estivessem lá: às sete e meia da noite, o céu parcialmente estrelado, 13 graus, caminhando pela rua iluminada pelos postes de claridade laranja-negra. Carros passando ágeis, os double deckers voando rumo a Walthamstow. Caminhada, caminhada, caminhada e atrações diversas: a loja de docinhos turcos, esses mesmos crocantes, com pistache, que você esta imaginando. A lojinha de roupas, com um cartaz na porta sem uma palavra em inglês. Os clubes de sinuca, exclusivos para membros, que são todos jovens homens de origem turca, que fumam se sentindo muito machos segurando seus tacos e fingindo serem gângsters, naquele ambiente tomado por aquelas palavras que eu não entendo. As mercearias com ameixas em conserva, azeitonas em conserva, o bom vinho tinto. Os bigodes ocasionais. Até uma casa vendendo uma tal de "pizza turca", novidade total para mim, uma pizza montanda em cima de uma pitta, o nosso pão sírio. E dezenas de casas de kebab. Num subúrbio de alguma cidade na Capadócia e ainda assim, em Londres. Você já entrou naquelas casas de sushi suspeitas da Liberdade, acho que você sabe do que estou falando.
Vejo o filme indiano, que me decepciona, e volto para a avenida cujos mistérios me fascinam. Mas desta vez caminho menos, já que o restaurante a que vou é mais perto.
Revistas como a Time Out ou guias de gastronomia na capital britânica já escolheram o Istanbul Iskembecizi o melhor restaurante budget de Londres. (Hum, isso talvez seja uma decepção, vou logo avisando). O lugar é bonito, mas nada de especial. A sala era o saguão de um antigo hotel, e agora até lembra um daqueles lugares onde se realizam eventuais festas de casamento. A diferença é a luz, nada berrante, pelo contrário - tênue e agradável, nem fraca, nem forte. Há uns quadros nas paredes, pintadas de branco; os lustres são redondos, de falso cristal, que parecem daqueles que você vê na casa de titias solteironas que nasceram nos anos 50; Os garçons são simpáticos e me pedem, sozinho que estou, que me sentem numa mesa bem próxima a porta. Em seguida, chega um grupo de cinco pessoas, e eles me pedem que eu me mude para outra mesa, mais para o fundo do salão, ao lado do banheiro. Não reclamo, escolho o que vou comecer, um tal de um kebab de forno, ou algo assim. Eles demoram mais quinze minutos para me atender, já que estão servindo o grupo. Tudo bem, quem manda eu não trazer toda a família para jantar aqui...
Mesmo com esses probleminhas iniciais, continuei indo com a cara dos garçons no Istanbul Iskembecizi. Sempre com um sorriso no rosto, me trouxeram o cardápio, anotaram meu pedido e, uma vez que ele chegou aos ouvidos do experiente cozinheiro, as finas iguarias foram trazidas rapidamente à minha mesa. Não sei como você encara esses troços exóticos do Brasil, como buchada de bode ou vatapá. Eu sou um grande seguidor das especiarias, adoro experimentar aromas e sabores diferentes, mas realmente freio quando me deparo com artigos gastronômicos realmente diferentes. Eu não como larvas nem miúdos, e isso é religioso. E não neguei minha religião no Istanbul Iskembecizi, mesmo com a fama de que o local tem uma sopa de tripa excelente - o intestino limpinho e aromático e brumoso, trazido à mesa e devorado com avidez por um sujeito ao meu lado, com uma cara gângster de quem acabou de sair de um desses clubes de bilhar a juzante na Stoke Newington Road.
O meu desejo, mais tímido, é um kofta de forno, uma carne moída e compactada deliciosamente, coberta por iogurte, tudo em uma travessa de cerâmica. Para acompanhar, algumas fatias de queijo de cabra na chapa em um prato a parte, nada muito estufante, apenas o suficiente para trazer à minha boca aquele pouquinho além de sal que meu paladar temperamental exige. Uma cerveja em taça (lembro das doces tulipas paulistanas) mas de uma marca que nunca ouvi falar, provavelmente também turca. Afundo a colher no lânguido kofta, sirvo-me com um generoso pedaço no prato, e coloco a carne em minha boca. O iogurte meio azedinho e suas proteínas animais são como um espelho da carne e seu hortelã escondido, um espelho que mostra as duas faces de uma mesma realidade. Os dois elementos principais do prato se complementam tão bem que fica difícil saber o que o kofta seria sem o iogurte ou o que seria do iogurte sem a carne, ou da carne e do iogurte sem as especiarias e de mim sem aquele aroma embriagante. Lá fora, por entre meu vizinho tomando a sopa de tripa, além do grupo que ainda retém grande parte da atenção dos garçons, a rua. Começa a garoar. Então pago - 7,50 libras pelo kofta, 2,00 pelos queijos, 2,35 por cada uma das duas cervejas que tomei, total 14,20 - e volto a meus passos pela noite exterior.
Com o adiantado da hora, a estação de trem fechou, e me vejo sem opção a não ser pegar o tal do táxi que vinha me recusando a pegar, por ser esse mão de vaca incontrolável. Mas para fazer a digestão, e pelo carinho pelas primeiras horas da madrugada, decido esticar minhas pernas antes do cab. Sigo pela Stoke Newington Road - lá, ao longe, uma casa de bagels com as luzes apagadas. Dois sujeitos mal encarados, negros, com cara de gangsta-rappers. Um sujeito sozinho e aparentemente deslocado, como eu. Outro que me sai de repente de um pub fechado já há mais de uma hora, me perguntando em puro Cockney se eu sabia onde ficava a estação de metrô mais próxima. Dois japoneses falando em japonês. Viro à direita em Stoke Newington Church Street, e depois de passar por um nightclub com um nome espanholado (tocando todos os sucessos da última temporada em Ibiza), tresmalho-me nas suaves ruas residenciais. Uma hora depois, depois de tranqüilizadores momentos perdido nos caminhos de um bairro que nunca estive, numa mancha urbana tão carinhosa e tão hostil ao mesmo tempo, aterriso em Islington.
Uma tremenda caminhada, duas horas, e só cheguei em casa lá pelas três e meia da manhã. É uma tremenda alegria, essa de viajar sem sair de minha cidade, conhecer o mundo. Isso que Londres é - porque tem esse mistério maravilhoso, e porque você pode decifrar esse mistério, porque ele está lá para ser decifrado, basta querer descer do trem em uma estação qualquer. Quisera que em São Paulo vocês pudessem pegar o ônibus e encontrar segurança e delícia em Jurubatuba ou Pirituba. Um dia, quem sabe... nunca perco as esperanças de que, no futuro, eu possa descobrir e conhecer a minha cidade natal tão bem quanto a minha cidade adotiva.
Para ir além
Para chegar a Stoke Newington - ou pelo menos à parte do bairro descrita nesta crônica -, o melhor é pegar o Silverlink (um serviço de trem de subúrbio londrino que circula entre Richmond e North Woolwich) e descer na estação Dalston Kingsland. Também há uma estação de trem de subúrbio com o nome do bairro, um pouco mais ao norte.
Istanbul Iskembecisi
9 Stoke Newington Road, London N16 8BH
Tel. 0207 254 7291
é duro ler isto antes do almoço...
mas realmente passa um ar saboroso dessa cidade modorrenta - talvez, conhecendo-a assim o negócio valha a pena... é a visão poética
Agora, pagar 15 libras para comer churrasquinho grego é demais, não?
tin