Alguém terá de me convencer de que eu devo levar a sério essa história de guerra dos sexos. O tema rende ótimas piadas, não há dúvida – da memorável novela da Globo, com Fernanda Montenegro e Paulo Autran, à mais recente coluna de meu colega Rafael Lima, sem contar os inúmeros exemplos hilários de que vocês, leitores, irão se lembrar ao pensar no antagonismo entre homens e mulheres.
Não que humor não seja sério – aliás, pode ser uma das formas mais eficazes de comentar criticamente assuntos importantes. Nem sempre, porém – às vezes, assim como charutos, uma piada é só uma piada. Em relação ao antagonismo dos gêneros, se decantarmos a gozação, não sei se sobrará muito mais do que esquetes engraçados – além de um fundinho amargo, talvez...
Historinha sem fim
Juro que tentei levar a questão a sério. Pensei nas principais contribuições ao entendimento do tema - por exemplo, o feminismo. Recapitulando sua versão dos fatos: quase todas as sociedades são patriarcais, e a influência masculina se estende da dominação física à hegemonia cultural – a História e a Bíblia foram escritas por homens, e somos impregnados pela visão de mundo machista desde o berço, tanto na formação intelectual quanto religiosa. Nessa linha, as relações sociais, as características pessoais e os laços familiares seriam moldados pela opressão masculina – sem contar os mecanismos concretos de dominação, da força física à chantagem econômica. Não estou dizendo que isso não faz sentido – ajuda a entender muita coisa, e tem importância histórica (e prática) para a emancipação de muita mulher oprimida ou discriminada pelo chefe, marido, pai etc.
Mas essa historinha não dá conta de tudo, porque ignora nuances, contradições e particularidades, e encaixa todo mundo – homem e mulher – em estereótipos tão simplistas e preconceituosos quanto aqueles cunhados pelo machismo. Se tomada ao pé-da-letra, a crítica feminista é tão útil para entender a tal guerra dos sexos quanto aqueles livros que dizem que homens e mulheres são de planetas diferentes ou que nos dividem em “Ele”, “Ela” e “Nós”.
Boneca versus carrinho
Quando escapamos dos estereótipos – tanto os feministas quanto os machistas –, o que nos resta a dizer sobre diferenças entre homens e mulheres? Sim, claro, somos diferentes – mas diferença não significa apenas diferenciação sexual. Somos diferentes em inúmeros aspectos, somos similares em tantos outros, e não (apenas) porque somos homens ou mulheres.
Para a “guerra dos sexos”, no entanto, diferença é uma divisão binária – restringe a variação a uma oposição dual e maniqueísta. Rosa X azul, boneca X carrinho, delicada X tosco, irracional X racional...
Ora, a variação humana é muitíssimo mais rica que isso – muito mais rica, aliás, que outros reducionismos binários como adulto X criança, hetero X homossexual, teoria X prática, cerebral X emocional, físico X imaterial. O problema dos dualismos é que, além de reducionistas, enxergam a “diferença” como “oposição” – como antagonismo, exclusão, embate... como guerra.
Uma digressão triste: não só no caso dos sexos, muita gente ainda parece dar às diferenças essa conotação belicosa – é só pensar nos conflitos entre raças, religiões, nações e ideologias (não vou entrar, nesta coluna, na discussão das grandes e das pequenas diferenças – fica para outra vez). Mas, voltando a homens e mulheres, suspeito que boa parte das hostilidades mútuas tenha a ver com rivalidade – com a raiva que muita gente talvez sinta, sem perceber, de precisar do “outro”, de não ser auto-suficiente.
Quando um não quer, dois não brigam
Especulações à parte, a coisa mais fácil é transformar diferença em problema. E eu poderia dar mil razões humanitárias para mostrar que diferença não é problema, que deve ser respeitada, incorporada, talvez até celebrada. Mas começarei por uma razão simples: não devemos fazer da diferença um problema porque a diferença é inevitável e ubíqua. Quero dizer, se formos criar caso por isso, passaremos a vida brigando. Convivência, entendimento, união de esforços – nada disso é fácil, mas fica mais difícil quando há antagonismo e resistência.
Dualismos como a guerra dos sexos revelam, pelo elogio de um dos termos, o ódio à diferença – e abrigam o impulso de apagar a variação, de transformar tudo em “igual”. "Igual", claro, ao termo classificado como “bom”. O rolo compressor da homogeneização está onde a gente menos suspeita! E a possibilidade de libertação também. Uma das linhas esquecidas de Karl Marx dizia que, numa sociedade comunista, o direito, em vez de ser “igual”, teria de ser “desigual” – porque os homens são diferentes. Não é à toa que a França, onde se proclamou a igualdade dos homens, inventou outro mote famoso, o “Vive la difference”.
Não, ninguém ainda me convenceu a levar a guerra dos sexos a sério. Aliás, pensando bem, acho que nem mesmo as piadas têm me feito rir muito...
Saca só esse trecho da entrevista da Betty Friedan ao Pasquim (22/04/1971) --- Flávio Rangel: "Você disse que está se informando sobre a posição da mulher brasileira. Que espécies de posições você já encontrou?" --- Betty Friedan: "Oh! Eu sei exatamente a piada que você está querendo insinuar. (...) Mas na questão das mulheres, nada de piadas. Não é necessário usar 'mace' ou gás lacrimogênio para reprimir as mulheres mesmo no meu país, basta tratar-nos como uma piada (...) Agora, eu levo a minha revolução muito à sério e eu tenho que brigar contra a falta de seriedade e por isso eu não vou responder à sua pergunta." --- Millôr Fernandes: "Essa não é uma maneira democrática de pensar. Isso quer dizer que se as mulheres estivessem em pé de igualdade com os homens, não haveria humor."
Pigar pilha é tão somente ter o seu equilíbrio emocional alterado para um estado de maior excitação emocional às custas de algum agente externo (em geral, uma provocação proposital), causando reações exaltadas, apaixonadas ou destemperadas. Ou seja, passando recibo, vestindo a carapuça da provocação. Também se usa 'entrar na pilha', o verbo derivado 'pilhar' ou o adjetivo 'pilhada'.
Olá colega, fico surpreso em saber que a FAU continua produzindo celebridades intelectuais, nem vou citar Chico Buarque para não encher a tua bola. Mas voltando ao texto, justamente ontém comentava com um grande amigo que a Natureza deve ter criado dois humanóides distintos. Um racional e insensível, capaz de simplesmente fazer coisas.Outro, o oposto, mas não antagônico, capaz de sentir, exprimir o sentimento e meditar sobre as ações plausíveis antes que elas se materializem. Isso porque ele, meu amigo, queixava-se de sua esposa lastimar de coisas sem querer simplesmente resolve-lás. E ele, logicamente, queria terminar a discussão oferecendo uma solução. Pois bem, dado o panorama do mundo, ocasionado pela ação exclusiva dos governos masculinos, não seria o caso de obedecer a Natureza e compactuar os modos operantes deste dois serezinhos, diferentes mais comuns, a mulher e o homem? Melhor que isso fica!
(ah! parabéns por esta coluna!)