COLUNAS
Terça-feira,
8/4/2014
Kurt Cobain; ou: I Miss the Comfort in Being Sad
Duanne Ribeiro
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Em uma madrugada dez anos velha em São Vicente, uma amiga me disse que se sentia muito triste quando ouvia Something in the Way, do Nirvana - porque o Kurt estava tão sozinho...
(De fato, ele estava.) O sentimento dela me abriu toda uma amplitude; pois ela se achegava ali à beirada do verso e podia ver, lá embaixo, uma ponte de Seattle e um adolescente à margem. The animals I've trapped have all become my pets. Minha amiga saltava realidades e conseguia sentir compaixão, afeto até, por alguém que nunca conheceu realmente. Um exemplo perfeito do que disse um filósofo francês: a poesia nos invade, nos faz fazê-la nossa, nos cria criadores, e gera essa indiferença súbita entre duas identidades.
Entre as bandas de vida curta da "cena" vicentina à época, havia a Fliver, de quem eu assisti, em uma casa de shows logo falida de Praia Grande, a uma performance repleta de verdade. Se eu me lembro bem, era um pequeno festival em homenagem ao Nirvana. (Cantei com a Fliver "Dive"; não lembro o repertório da minha banda naquele tempo, a Hangover - o nome se refere a "Dumb" - mas fechamos com "Moist Vagina"). No fim do show da Fliver, o vocalista/guitarrista se tomou de violência, o corpo magricela em espasmos atacava a guitarra como se houvesse algo de fato incontrolável nela, por fim a atirou para longe. Eu vi algo genuíno.
O gesto era uma imitação, porém mais que uma imitação: era uma incorporação. Outro amigo repetiu outro gesto: se arremessou contra a bateria em uma apresentação - estava no corpo dele a dor e a autodestruição implícitas em uma estampa de camisa do Nirvana típica. Com um outro, eu cantando, ele tocando, "Lounge Act", repetimos também: o violão destroçado assim que a canção explodia no chão da praça foi uma das coisas mais bonitas. Talvez se soubesse disso, Kurt se sentisse melhor: ele caberia no próprio verso: I'm not the only one.
Na carta, ele conta que quis amar o amor da multidão, mas não conseguiu, "não o suficiente". Havia, é certo, algo de insidioso naquele amor massivo. Um exemplo: em um show da turnê do In Utero, o último álbum, exibido pela MTV, lá pelo fim a banda passa a destruir amplificadores e cenografia, como era esperado - e o toque fatal de falsidade começa neste "como era esperado". Kurt chama o público para subir no palco, ninguém o atende. Batem palmas, eufóricos. O músico então corre de um lado a outro, batendo palmas com uma expressão imbecilizada. Naquele momento também, por motivos distintos e iguais, ele estava sozinho.
Could you forgive the boy who shot you in the head?
Esse adolescente à margem pôs um verso de Neil Young de cano duplo na boca e estourou sua náusea de dentro pra fora em um acorde distorcido final num 5 de abril há vinte anos.
Parece ter havido uma fratura fundamental entre Kurt e o mundo que por um tempo ele teve a habilidade de superar através da fúria e do cinismo e não sem cansaço. Sem conexão com sua família, envergonhado do próprio corpo, dedicado a um sonho artístico, também um sonho de reconhecimento. Quando o conseguiu, descobriu que era "mais pesado que o céu" (para usar o título preciso da biografia); a fama falsificou um concílio com sua família antiga e o manteve sempre distante demais da família nova, mulher e filha. Chegara, depois de tudo, a um reconhecimento mecânico, a uma agressividade instrumentalizada. Teenage angst has paid off well; now I'm bored and old.
As letras testemunham esse deslocamento em relação às pessoas e as coisas. Talvez por isso a maior suavidade, o máximo de felicidade conhecido por Kurt tenha ocorrido quando se sentia indiferenciado, "simplesmente admitido", como diz o poema de Borges. E o máximo de solidão no oposto complementar, quando se sentia individualizado demais, marcado. "All Apologies" é o resumo mais conciso disto; um de seus versos tem duas versões: all in all we are, ou seja, nós nos confundimos no todo, e all alone is all we are, somos sempre separados, inconciliáveis. Ele viveu na tensão entre estes dois pólos, quando foi reduzido a um deles, não pode mais seguir.
Como nós, Kurt também estava cumprindo símbolos. O confronto com o mainstream (a cultura musical hegemônica), a procura de uma apresentação crua, verdadeira, intensa - todos esses elementos eram não só o núcleo do punk, que se desdobrou no grunge, que influenciou a cena noise, como existiam de outra forma no rock desde 1960. O Mogwai (em um álbum chamado, sintomaticamente, Come On Die Young) musicou uma entrevista de Iggy Pop que resume essa ética como nada mais: "E esse estilo de música é tão poderoso que está muito além do meu controle. E quando sou tomado por ele, não sinto prazer e não sinto dor, fisicamente ou emocionalmente. Você sabe do que estou falando? Quando você simplesmente não pode sentir nada e você não quer sentir nada? O senhor entende o que estou falando?".
Em "Pennyroyal Tea", Kurt pediu: gimme a Leonard Cohen afterworld. Eis. Who is it whom I address? Who takes down what I confess? Are you the teachers of my heart?
- We teach old hearts to rest.
A hundred percent of my love up to you, true star
Contra nós depõe o fato de que não morremos jovens, a nosso favor está que essa ideia, esse lema, essa frase de efeito morreu jovem. Não obstante, senti que devia fazer uma homenagem neste aniversário de suicídio. É preciso agradecer às pessoas que nos traduzem a nós mesmos.
Ler a entrevista de Kurt para David Fricke, da Rolling Stone, sempre me desconcerta, porque é a última ou uma das últimas antes da morte, e ele está lúcido, falando abertamente de quando sentiu vontade de se matar por conta das dores de estômago, planejando mudanças criativas. Talvez estivesse vivo hoje se houvesse salvo a si mesmo do Sonho, como John Lennon fez (ou quase. O Sonho o perseguiu e atirou cinco vezes). O ex-Beatle saiu pela porta da frente do colossal JOHN LENNON construído apesar dele. I was the Walrus - but now I'm reborn. I was the Dreamweaver - but now I'm John. Não é bonito e sincero? "God" continua: I don't believe in Beatles, I just believe in me (Yoko and me) - and that's reality.
Quanto à sequência de não acreditos que compõe a música, a intenção de John era deixar um espaço vago no encarte, de modo que o ouvinte o preenchesse com suas próprias palavras: I don't believe in __________. Eu não acredito em mágica. Eu não acredito no I-Ching. Eu não acredito na Bíblia. Eu não acredito em John Lennon. Eu não acredito em Kurt Cobain. Sou só eu mesmo agora.
Nota do Editor:
Leia também "Ainda cheira a espírito adolescente", de Luiz Rebinski Junior.
Duanne Ribeiro
São Paulo,
8/4/2014
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