COLUNAS
Quarta-feira,
23/12/2015
Memorial de Berlim
Marilia Mota Silva
+ de 10300 Acessos
Estive em Berlim, olhando restos do muro que durante mais de vinte anos dividiu a cidade. Não era um muro, simplesmente, eram muralhas paralelas. Entre os dois paredões ficava a Zona da Morte, com torres de vigia, cães e soldados treinados para matar qualquer coisa que se movesse.
Dos terraços do Memorial, na Bernauer Strasse, se vê partes dessa estrutura preservada para a história.
No chão, discretas em meio do gramado, várias placas indicam o local onde os que tentaram fugir tombaram fuzilados.Pessoas totalmente e sabidamente inocentes que só queriam ir e vir. Não aceitavam ser prisioneiras do Estado.
O muro contornava edificios, monumentos, atravessava praças, passava no meio de ruas e avenidas, bloqueava estações de metrô, isolava o Portão de Brandenburg, marco histórico da cidade, e o palácio do governo de cujas escadarias Hitler tantas vezes inflamou a multidão.
Mal comparando seria como construir uma muralha na frente do Teatro Municipal no Rio, separando-o da Cinelândia e do resto da cidade, e punindo com a morte quem tentasse passar para o outro lado; ou na Praça da Sé em São Paulo. Uma insanidade tão absoluta que se duvidaria que tivesse acontecido, não fosse tudo tão recente e bem documentado.
Não se divide uma cidade grande e antiga de um dia para o outro. O processo foi longo, bem planejado. Primeiro separaram o fornecimento de gás, de luz, os trilhos dos bondes, as linhas de ônibus. O metrô foi proibido de parar nas estações do leste, que se tornaram estações-fantasma. Construiram postos de controle com guardas armados. Puseram cercas provisórias de arame-farpado. Quando terminaram de construir o muro, aí sim, toda a comunicação foi interrompida. Famílias e amigos, separados para sempre, e sem direito a visita.
No Memorial de Berlim, assisti a depoimentos de pessoas comuns que viveram aqueles anos.
Por que não fugiram enquanto era tempo, enquanto havia apenas postos de controle, quando o trânsito entre leste e oeste ainda era possível? Porque é dificil deixar o lugar onde se vive e eles não acreditavam que sua liberdade estivesse ameaçada. E assim adaptaram-se às novas ordens. As compras feitas "do outro lado" passíveis de confisco e punição nos postos de controle, eram escondidas como pequenos contrabandos. Os que tinham emprego no lado oeste se demitiram. Mudaram as crianças de escola.
O sistema político-econômico não os preocupava. O país havia dado a Hitler, a seu programa nacional-socialista, quase 100% de seus votos, conferindo-lhe todos os poderes.
A Alemanha perdeu a guerra, Hitler foi derrotado, mas ideologias não são destruídas pela força. E não é difícil entender que pessoas de boas intenções e bom coração se inclinassem por esses princípios:
- Contra o individualismo, contra o capitalismo. A favor do coletivismo. A favor de uma direção central da economia visando o bem comum. A favor do autoritarismo político com um líder no topo. Compreensível que vissem nisso uma solução, dada a situação angustiante da Alemanha depois da I Grande Guerra.
Mas quando os muros se fecharam a sua volta, e se deram conta de que estavam presos, então cavaram túneis, tentaram escapar de todas as maneiras.
Os soldados que atiraram em pessoas inocentes e desarmadas, os burocratas diligentes na teia de poder do Estado, muitos dos que mantiveram esse sistema funcionando por tanto tempo, em princípio, talvez fossem movidos pelas melhores intenções. Muitos certamente se consideravam pessoas éticas, leais, idealistas, que para construir um mundo melhor para todos, mais justo, tinham que recorrer ao uso da força contra os que não compreendiam seus nobres objetivos. Em nome desse bem maior, tudo se justificava, e os bons e compassivos já não se distinguiam dos violentos, sádicos e destrutivos.
Cidade sofrida essa Berlim. Hitler e depois Stalin, crime e castigo. Bombardeada na II Guerra, dividida como despojo de batalha e dilapidada de novo pelos comunistas. Puseram abaixo palácios históricos com seus acervos de arte. Alguns estão sendo cuidadosamente reconstruidos.
Ainda hoje é marcante a diferença entre as duas partes de Berlim. Os prédios quadrados, pardos, despojados predominam em áreas do lado leste. Muitos já receberam fachadas novas ou foram inteiramente renovados. Mas leva tempo recuperar uma cidade.
Não deveria ser tao dificil encontrar uma forma de viver, de organizar a sociedade que dispensasse o autoritarismo, a violência do Estado, genocídios, muralhas, ou que permitisse que qualquer pessoa vivesse em condições miseráveis.
O mundo que temos reflete quem somos. No dia em que encararmos isso, e nos dispusermos a mudar no que for preciso, haverá mais justiça social, seja qual for o sistema de governo. Que não seja o previsto por George Orwell, admirável visionário, nem o abandono de pessoas a sua sorte, nem o esgotamento do planeta.
Marilia Mota Silva
Washington,
23/12/2015
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Os olhos de Ingrid Bergman de Renato Alessandro dos Santos
Mais Acessadas de Marilia Mota Silva
em 2015
01.
Memorial de Berlim - 23/12/2015
02.
Minha Terra Tem Palmeiras - 15/7/2015
03.
Viagem a 1968: Tropeços e Desventuras (2) - 25/2/2015
04.
O Velho e Bom Complexo de Inferioridade - 4/2/2015
05.
Pendurados no Pincel - 18/3/2015
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|