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Quarta-feira, 20/2/2002
A Guerra Fria não acabou
Daniela Sandler
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+ 2 Comentário(s)

A maior história das Olimpíadas de Inverno de 2002, em Salt Lake City (EUA), é o “escândalo da medalha” na patinação artística de casais. E o que nós, “bananas congeladas” (apelido da equipe brasileira de bobsled), temos a ver com isso, perguntará o leitor? Muito, mesmo que você não suporte Holiday on Ice. Os desdobramentos inquietantes do caso, infelizmente pouco observados, vão muito além da “neve perfeita” de Salt Lake City.

Mas, antes de chegar aos tais desdobramentos, é preciso contar a história do início. Para quem não acompanhou, a competição foi vencida pelos russos Elena Berezhnaya e Anton Sikharulidze. Em segundo lugar ficou a dupla canadense Jamie Sale e David Pelletier. A decisão, que indignou mídia e público, foi contestada formalmente pelos canadenses, e depois de muita pressão sobre a União Internacional de Patinação (ISU), um par extra de medalhas de ouro foi dado aos canadenses. Fim da história? Não para nós.

Pode-se racionalizar o episódio de muitas maneiras. Pode-se por exemplo observar que uma das juízas da prova, a francesa Marie Reine Le Gougne, teria afirmado que sofreu pressão para votar a favor dos russos. Pode-se notar também a performance praticamente perfeita de Sale e Pelletier, contrastada ao pequeno erro cometido pelo russo. E pode-se, finalmente, explicar a pressão geral sobre a ISU (não apenas por parte dos canadenses, mas também do Comitê Olímpico Internacional, da mídia e do público) como preocupação com a reputação e seriedade do esporte.

Mas racionalizações freqüentemente servem mais como tranqüilizante, reassegurando-nos de nossas opiniões, do que como exploração séria dos fatos. Esse episódio foi racionalizado exaustivamente nos Estados Unidos e Canadá – dos órgãos de imprensa às conversas de bar, do público olímpico à audiência de tevê. Ilustra não só a parcialidade dessa postura racionalista (travestida de neutralidade), como também – e aí seu interesse geral, para além destas plagas geladas – os seus perigos. Enquanto a ilusão de compreensão e justiça mascarar interesses específicos e partidarismo (e nem sempre o mascarado conhece sua própria face), estaremos à mercê de situações opressivas fantasiadas de democracia.

Senão, vejamos. Um dos argumentos dos canadenses para a revisão da premiação pregava que o esporte fosse decidido no rinque, por méritos puramente atléticos, sem interferência política ou de qualquer outra natureza. Certamente Sale e Pelletier, assim como a audiência e os jornalistas, acreditam na transparência e neutralidade de seu pleito e do resultado obtido. A revisão da premiação, no entanto, é inédita, e a mobilização do público tem sido imensa. Se dependessem apenas de seus saltos sobre o gelo, Sale e Pelletier ainda estariam com a prata. Só conseguiram laurear sua apresentação com o ouro porque extrapolaram o rinque e aglutinaram forças sociais, políticas e econômicas muito mais amplas que a federação de patinação canadense. Em suma: foi justamente a interferência política – e de outras naturezas – que decidiu a competição.

A posição dos patinadores é mais complicada e contraditória do que aparenta (mesmo que os atletas acreditem em sua simplicidade). Nada, ou quase nada, pode ser desvestido de sua dimensão política; quase todo fato ou evento social tem significados simbólicos e ligações mais ou menos aparentes com forças alheias ao seu âmbito primário. O raciocínio de que a segunda medalha de ouro representa um retorno ao domínio desinteressado e imaculado do esporte é, em última análise, irracional.

Veia subjetiva

É fácil imaginar que o desfecho do caso foi também favorecido pelo contexto: enquanto os americanos e canadenses se indignavam, do outro lado do Atlântico os russos festejavam. A “razão” é determinada pelo ponto de vista. Se se tratasse de uma corrida, por exemplo, em que o cronômetro dá a medida objetiva da vitória, seria possível identificar a “verdade” e as “mentiras”, dando razão a um dos lados e condenando os demais como errados ou maliciosos.

A patinação artística, porém, assim como a dança sobre o gelo, o esqui “free-style”, a ginástica rítmica, e em menor grau a ginástica olímpica, é julgada de forma parcialmente subjetiva: primeiro, porque os atletas são avaliados por juízes, e não por cronômetros (muitos outros esportes estão também sujeitos à subjetividade da arbitragem, como o futebol). Segundo, porque metade da avaliação refere-se à impressão artística, ou “apresentação” (a outra metade é técnica: realização de movimentos obrigatórios, como saltos e giros; quedas, erros, etc).

Dada a veia subjetiva do esporte, é difícil atribuir justa correção a qualquer dos lados, ainda que a propaganda massiva e a unanimidade pública o neguem (unanimidade e propaganda, como a história nos ensina, não são garantia de verdade). A juíza francesa pode até ter votado sob pressão, mas nada garante que os canadenses teriam ganho o ouro logo de cara se isso não tivesse acontecido – ou seja, seu direito à medalha não é incontestável ou natural.

O próprio esporte prevê isso: em caso de empate, a medalha fica com quem tiver notas mais altas de apresentação (e não de mérito técnico). Neste caso, a apresentação dos russos, com um programa elaborado e cheio de desafios, havia superado a dos canadenses, que haviam tido notas técnicas melhores, mas apresentado uma coreografia mais simples.

A parcialidade no tratamento da polêmica foi tanta que esse aspecto, que poderia ter confirmado a vitória russa, foi ignorado e não comentado por ninguém a não ser pelo desconcertado Anton, que, quase se desculpando, observou o fato timidamente em uma entrevista. Mas aqui, como aliás minha experiência pessoal tem me ensinado, qualquer opinião enunciada com sotaque estrangeiro é colocada de imediato um patamar “abaixo” pela maioria da população.

Hostilidade

O fato é que a cama de gato estava armada contra os russos antes mesmo que eles terminassem de amarrar os seus patins. No prelúdio à competição, em que se incluem comentários, vinhetas e entrevistas com atletas, especialistas e audiência, a referência predominante era o domínio russo sobre a prova em todas as Olimpíadas dos últimos 40 anos. Desde 1962, o ouro da patinação artística de casais foi sempre para a Rússia (incluídas a União Soviética e a Comunidade de Estados Independentes).

Este não é o único exemplo em que o predomínio de uma nação em determinada modalidade provoca as demais, que misturam admiração e rivalidade, num certo espírito de desafio (os tetracampeões da Copa que o digam). É uma espécie de encarnação esportiva do “Hay gobierno, soy contra”.

Mas, ainda que a Guerra Fria tenha oficialmente acabado há uma década, na disputa entre americanos e russos não se pode falar em “gobierno” ingenuamente. O tratamento dado aos russos pelo público e pela mídia não foi muito consoante ao espírito olímpico de saudável competição – em que há, sim, rivalidades profundas, mas em que há espaço para o reconhecimento e a apreciação do talento esportivo e do bordão “que vença o melhor”.

O tal espírito olímpico ficou restrito aos cinco anéis pintados nos muros do estádio. Audiência e comentaristas embarcaram, por sua vez, na ardorosa esperança de que o domínio russo fosse quebrado, que “finalmente” alguém tirasse da Rússia a medalha de ouro na patinação artística de casais. O suspense em relação à prova não se concentrava no reconhecido talento dos russos, nem mesmo no dos canadenses – apresentados, antes de mais nada, como “os que têm a chance de derrotar os russos”, e não como, por exemplo, “os que têm méritos próprios”. Em vez de “que vença o melhor”, o bordão virou “que alguém lhes tire a medalha” (até parece aquele jogo infantil, caça-bandeira).

“Alguém”, mais exatamente, do lado de cá: alguém norte-americano. No caso, um casal canadense, que, se não é dos Estados Unidos, é, no caso, “the next best thing”: representante da mesma cepa cultural, política, econômica e – sim – ideológica. Não haveria tanta expectativa em relação à quebra do domínio russo se o casal “desafiante” fosse chinês, lituano ou mesmo francês (a ironia é intencional). A guerra fria não acabou: tornou-se um estranho resíduo fossilizado, em que a hostilidade sobrou mesmo tendo desaparecido a fonte original e concreta de conflito (a disputa política).

Dois pesos, um montão de medidas

Qual seria a disposição do público se o país dominante não fosse a Rússia, mas, por exemplo, a Suíça? Ainda que um domíno suíço aguçasse as expectativas, duvido que excitasse os mesmos sentimentos beligerantes, que podem ser resumidos no desejo geral de derrota (russa), muito mais do que vitória (canadense).

E, claro, se em vez da Rússia fossem os Estados Unidos a dominar o esporte, esta Olímpiada seria completamente focada no desejo de manutenção do domínio – em vez de “será que desta vez os russos perdem?”, o espírito seria “será que continuaremos ganhando?”. Isso pode ser visto nas reações e comentários sobre esportes em que os Estados Unidos dominam – até mesmo na patinação artística. Na categoria individual feminina, três norte-americanas são competidoras fortes, e a esperança geral é de que tomem o pódio por completo, de que não sobre para mais ninguém (o que eles chamam de “sweep”). Claro que, por aqui, ninguém vai pôr defeito em tal monopólio.

Há outros esportes em que uma nação ou região dominam. Os alemães, por exemplo, se dão excepcionalmente bem na patinação de velocidade em longa distância. Os escandinavos, fazendo jus ao nome, tradicionalmente se destacam no esqui nórdico combinado (salto à distância com esqui, e esqui cross-country). Os comentaristas mencionam esses “pendores nacionais” num tom neutro, de observação e admiração. Quando a prova começa, o espírito é de que vença o melhor – seja ele quem for.

Muito diferente do tratamento dado aos russos. Com toda essa pressão e recepção inamistosa, não admira que Anton tenha saído do ritmo em seu único e pequeno deslize na prova final (não chegou a ser um erro, como uma queda, por exemplo), deslize aliás atípico em sua carreira. Quem se lembra da final da Copa de 2000 vai entender.

Não duvido que tenha havido um acordo de bastidores – esse tipo de combinação corrupta não é novidade na patinação artística. Também não questiono o mérito técnico dos canadenses – a avaliação, teoricamente, cabe aos árbitros, treinados e preparados para julgar. O que chama a atenção, porém, é o contexto político e ideológico em que a batalha da medalha foi travada – como vimos, contexto turbulento e belicoso desde antes da competição. Esse espírito hostil magnificou o incidente e amplificou suas repercussões – em especial as repercussões “emocionais” na opinião pública (não nos esqueçamos de que a patinação artística é um dos esportes mais populares das Olimpíadas de Inverno, justamente por seu apelo “artístico”).

Cegueira seletiva

Se em vez de canadenses Jamie Sale e David Pelletier fossem búlgaros ou italianos, duvido que houvesse tanta indignação por parte da platéia, da mídia e da nação em geral. É por causa desta posição privilegiada do Canadá que as lágrimas de Sale e Pelletier e o recurso movido por sua federação tiveram tanto impacto público – e é por causa disso que tiveram inédito efeito concreto. A federação internacional de patinação, de início relutante, cedeu a todas as pressões e voltou atrás em várias de suas decisões. Contradisse inclusive as palavras de seu presidente, o italiano Octtavio Cinquantta, de que seria dificílimo, quase impossível, rever o resultado do julgamento.

O caso é que, com medalha de ouro e tudo, a América do Norte tem de engolir a excelência artística e técnica dos russos num esporte que lhes é, por assim dizer, natural. Assim como os velocistas alemães, os russos estão desde criancinhas às voltas com os patins e o gelo. A cultura germânica, amante da velocidade e da tecnologia, aperfeiçoou a corrida de patins, de luge (espécie de trenó), e as Autobahns, é claro. Já os russos, com seus pendores líricos, levaram o ballet para fora do teatro, fazendo seu Bolshoi sobre o gelo. Dúvidas? É só olhar para os treinadores de boa parte dos patinadores, não só russos, que vivem nos Estados Unidos. São russos (como no caso da dupla norte-americana que ficou em quinto lugar).

É triste que ninguém se lembre disso, assim como ninguém reconhece os justos méritos de Elena e Anton, e que a abordagem do caso tenha se resumido à juíza corrupta ou aos canadenses injustiçados. É triste e injusto, porque essa abordagem acaba jogando uma sombra sobre todo o tal “domínio de 40 anos” dos russos, como se houvesse sido conchavos, e não talento, a garanti-lo. Mais uma vez – e não há surpresa nisso – a mídia e o público norte-americanos compactuam com uma versão unilateral, parcial e superficial dos fatos, sem análise, sem auto-reflexão e sem coragem. Pior que compactuar com essa versão é acreditar em sua neutralidade, como se se estivesse falando apenas de patins. Pode ser que a guerra fria política tenha acabado – mas a sócio-cultural não. E já que a política é parceira íntima das tendências sociais, não se pode de fato falar em “paz”.


Daniela Sandler
Rochester, 20/2/2002

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
20/2/2002
00h10min
Dani, pra variar os seus textos retratam muito fielmente os acontecimentos norte-americanos e o inconsciente coletivo de seu povo. É uma dádiva poder ler retratos e textos críticos embasados sobre a "América", ao invés de ter que ouvir sempre a mesma "patetada" das figuras que se intrometem a criticá-los, sem conhecimento de causa.
[Leia outros Comentários de Juliano Maesano]
20/2/2002
16h39min
Eu nao entendo o espanto da articulista face à parcialidade da midia e do publico norte-americano quando se trata de seus proprios atletas e compatriotas é natural que as opiniões tenham alto teor de passionalidade.Mas concordo que ha em relacao aos russos uma prevencao diferenciada o que de resto e comprensivel dadas as cicatrizes abertas por 50 anos.
[Leia outros Comentários de jorge novoa]
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