COLUNAS
Terça-feira,
9/2/2016
Carles Camps Mundó e a poética da desolação
Jardel Dias Cavalcanti
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O que restaria para a poesia contemporânea depois que o modernismo fragmentou todas as certezas e instalou a ausência de perspectiva como um carma para o presente?
Ninguém melhor do que o poeta catalão Carles Camps Mundó para responder. E a antologia de poemas editado agora, com seleção, tradução e introdução de Ronald Polito, publicada pela Portal Editora de São Paulo, nos dá a medida da desolação, da certeza de que vivemos numa espécie de campo minado onde a curva da onda da maré da linguagem só pode falar dessa desesperança em queda livre.
Na introdução, onde se apresenta o percurso poético de Mundó, o tradutor Ronald Polito nos dá o topos dessa poesia: “Sem imagens, sem movimentos, sem destinos, o campo da linguagem pode se recolher ou reduzir às experiências tomadas como realmente essenciais ou verídicas: da dor, da ausência, da solidão, da errância, da impossibilidade de diálogo, da perda e do silêncio, corolários naturais de um mundo desprovido de magia, na qual precisamente as palavras estão destituídas de toda esperança e não oferecem a possibilidade de um exorcismo”.
Na coleção de poemas de “O ausente” (1989), a prova dessa desolação é concreta. A nostalgia dolorosa de um suposto lugar que a memória guarda como possibilidade, um jardim primigênio, faz do poeta, “ferido de pretérito”, o que canta sua perda. Já que... “Lá estive”, diz o poeta.
Segundo Polito, no caso de Mundó “as palavras poderiam se aproximar da clara enunciação dessa carência de plenitude”, dentro de “todos os instantes sucessivamente vazios” tal qual existem como legados de certa modernidade: “A escolha dessa alternativa situa a poética de Carles Camps Mundó na fratura de certa modernidade e suas projeções fracassadas, uma modernidade em eterna carência do absoluto, tornada concreta a agonia que não finda de um tempo sem perspectiva”, completa o tradutor.
É notável em Mundó o projeto de uma poesia para esse campo do esgarçamento das forças vitais do presente. Manter-se, ainda assim, como criador da linguagem capaz de enunciar essa “queda” constitui sua poética. Em seu texto em prosa “Ideia do poema”, uma citação de Hegel nos aproxima desse projeto: “a vida do espírito não é a vida que se espanta diante da morte e se mantém pura da desolação, mas a que sabe enfrenta-la e manter-se. O espírito somente conquista a sua verdade quando é capaz de se encontrar em si mesmo no absoluto esgarçamento”.
Como anota Victor da Rosa, no posfácio à tradução de Polito, “o próprio Mundó define o poema como uma viagem do otimismo à decepção”. Essa decepção existe porque o mundo que se coloca ao poeta é, como diz Polito, “sem deuses, sem epifanias, sem resgate pela história pessoal ou coletiva, mas principalmente sem nenhuma essência e sem sossego”.
Em sua “Autoapresentação”, Mundó fala de sua própria poética como “uma metafísica negativa”, alimentada pela "contradição entre o desejo e a realidade do corpo”. A sua angústia existencial se baseia, diz Mundó, nesta “oposição desejo-lembrança que nos impede de viver, como os animais e as plantas, o eterno presente de que nos fala Rilke”. Animais da linguagem, nos homens perdemos a unidade, ainda mais quando na modernidade desfragmentamos a ideia da própria linguagem (“Já nem gemido. Só palavras/ anônimas –/ imagens que me omitem”), sendo expulsas todas as esperanças como Adão foi expulso do Paraíso.
Então, da lembrança de um jardim primigênio,
do anseio sepre irresoluto da memória,
ferido de pretérito,
eu canto minha perda: lá estive.
Unicamente isto, e este irredutível
corrompimento das perguntas
que inda me faço indenes.
O que o poeta invoca é essa fratura do ser, única possibilidade do poema ainda poder dizer algo, mesmo que apenas sobre o que sobra como o oco:
Inclino-me sobre mim mesmo
já oco. Sombra de Narciso:
evaporação da água que
contém o reflexo. E me invoco.
Talvez a parte mais atordoante da seleção dos poemas de Mundó seja o “Livro das alusões”, onde o pessimismo, a dor, a violência da morte se concentram na ideia da ausência de possibilidade de redenção pela palavra do poeta.
Morreste, e vivo com a culpa
da vida: como se viver
fosse não ser triste bastante.
---
Irremissivelmente. Agonizavas.
E te dávamos a mão
para ajudar-te a morrer, para que o tato
- já último dos sentidos –
te fizesse sentir um pouco menos só
na solidão da morte,
mas a mim me parecia notar
- talvez, desamparados, todos o notávamos –
que eras tu que nos seguravas
com tuas benignas mãos
- como quando crianças – para ajudar-nos
a viver.
---
A tua morte fez com que a palavra
mãe – tão terrena e alimentadora –
se haja convertido em mim numa
palavra sem nada tangível
que a assegure,
uma palavra isenta,
como Deus ou ausência.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
9/2/2016
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