COLUNAS
Terça-feira,
1/3/2016
Conto de amor tétrico ou o túmulo do amor
Jardel Dias Cavalcanti
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"A única virtude que minha história tem é que de fato ocorreu". (G. C. Infante)
Eu a conheci aos 16 anos. Nós nos apaixonamos imediatamente. Tínhamos uma turminha bem animada, que se reunia para tomar vinho barato, tocar violão, ler Fernando Pessoa e fumar uns baseados.
Vivíamos numa cidade do interior de Minas Gerais. Muitas igrejas, muita fofoca, muita vigilância moral. A terra das beatas é algo muito próximo ao inferno para um jovem. Não bastasse a vigilância da família, os olhos de todos os cidadãos sobre nós era de condenação. Jovens com cabelos chegando ao ombro e com uma predisposição a nadar contra a correnteza, éramos suspeitos: “Não te vi na missa da manhã hoje, meu filho!”.
Aos 16 anos, depois de alguns troca-trocas, amar algumas bananeiras e desejar a própria irmã e suas amigas tomando sol de biquíni no quintal, descobri o amor nos lábios doces daquela menina com cara de sapeca, com um riso indescritível, que tocava violão e gostava de poesia.
Primeiro andamos de mãos dadas, depois nos beijamos e nos beijamos, depois nos tocamos nas partes do corpo que eram proibidas. Enquanto o calor subia, as fofocas também esquentavam na pequena cidade cheia de igrejas. No entanto, não nos apavoramos, éramos puros, amantes de coração, portanto livres para ir até o fim.
Nos divertíamos em grupo inicialmente. O violão mal tocado passava de mão em mão, como o baseado e a garrafa de vinho vagabundo. Alegres e plenos de poesia e música, nos separávamos do bando ao ir para casa. Eu a levava até o portão de casa, os beijos não queriam mais parar. Porque dividir o que nasceu para ficar junto? Chegando a hora de se recolher, ia cada um para sua casa, triste e feliz. Amanhã tem mais. Tem mais vida.
O sino das igrejas nos acordava bem cedo. Um poema para meu amor, preciso escrever, escrever, escrever. À noite trocávamos nossos poemas amassados, guardados o dia todo no bolso, lidos, relidos, corrigidos.
Estudávamos à noite. Acabava a aula, cada um trazia seu vinho, seu livro de poesia e era só encontrar um baseado. Cada um do grupo tirava sua pequena contribuição do bolso e o resto era fácil. De mãos dadas com meu amor, minha felicidade corria aquelas ruas de paralelepípedo de uma cidade cheia de igrejas do interior de Minas Gerais.
Para correr dos olhos vigilantes, descobrimos a escadaria do cemitério como ponto de encontro para a música, histórias de terror e poesia. O violão alimentava nossos corações com canções de Lô Borges, Beto Guedes e Milton. Além dos meus beijos, não é meu amor?
- “Nos vemos amanhã pessoal, vamos ficar namorando um pouco mais aqui, sob os cuidados das almas penadas”.
E foram tantos beijos (e mãos que invadiam a camisa e a calça e a minissaia e o perfume se misturava e nos apertávamos mais e mais e não conseguíamos parar de nos beijar nos esfregar e nos declarávamos apaixonados e nos amassávamos e nos desejávamos), que decidimos, por fim, entrar no cemitério. Não era fácil o acesso a um motel. Era impossível. Naquela cidade de igrejas por todo lado, olhos vigilantes e censores, pais quadrados e falta de dinheiro para tudo e nem carro tínhamos, como poderíamos ficar sozinhos? Só o cemitério era de graça (para nós, não para os mortos).
Entramos, afinal não se pode fugir do desejo de fusão amorosa. E o mais lindo túmulo era, para nosso deleite, o do poeta Alphonsus de Guimarães. Ele não iria se importar, comentamos. Ao contrário, ele teria assunto no céu ou no inferno para mais um poema simbolista.
Limpei o túmulo, que reluzia em sua negritude sob a luz de uma lua nova. Tirei minha camisa e forrei o mármore negro que, em seguida, viu deitar sobre ele a nudez total de uma menina de 17 anos. Não éramos mais virgens ao passar da meia-noite.
Atravessamos as ruas da cidade mais felizes e brilhantes que um cometa, mais felizes do que um poeta quando encontra a palavra justa. Havíamos encontrado nossa morada do amor. E era ali que passávamos a maior parte de nossas noites juntos.
E também foi ali, um ano depois, sentado sobre o mesmo túmulo, que ouvi de sua boca a pior notícia de minha vida: “Não quero mais, vamos acabar com isso”. Porque? “Vamos nos despedir fazendo amor pela última vez”. Eu a penetrei chorando, com um rio de minhas lágrimas lambuzando o seu rosto e os seus seios. “Por favor, entenda, não quero mais, não dá mais...”.
Desci aquelas ruas sozinho, o coração trespassado por uma lâmina de aço, penetrante, dolorosa e amarga, enquanto a observava indo para casa também sozinha, com seus delicados passos que faziam sua minissaia balançar para lá e para cá. Um poema de dor para meus olhos.
Em casa, entrei no quarto do meu pai, abri o armário e do bolso de seu terno retirei a arma que eu sempre soube que estava ali. O meu Werther estava aberto sobre a mesa, era o alimento poético para meus dias de amor felizes e tristes como todo amor. Depositei sobre ele a arma. Peguei algumas folhas de papel e escrevi a minha história de amor, que dediquei a ela. Quando acabei, lá pelas 5 da manhã, acordei todos em casa com o barulho do tiro, que atravessou meu coração.
Toda a cidade ficou sabendo e se comoveu com a história, narrada no texto que apareceu na manhã seguinte impressa no jornalzinho local. Lido, lido, lido. O neto do poeta, um homem sensível às histórias de amantes, sugeriu que eu fosse sepultado no túmulo do amor. Toda a cidade aplaudiu a iniciativa. E assim foi feito.
Ela, a amada, inconsolável, passou a andar como uma louca pela cidade, corroída com a minha morte, à beira da insanidade e também da decisão final. Todos aguardavam atentos pelo desfecho, pois percebiam que o abismo a espreitava. Por isso, o túmulo era limpo diariamente, à espera do corpo da jovem que ali poderia encontrar a sua paz de espírito e seu amado perdido.
Enquanto a cidade esperava do lado de lá, eu esperava do lado de cá, no reino dos mortos, pelo reencontro.
(A imagem é obra do artista Elias Layon, feita especialmente para ilustrar o conto)
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
1/3/2016
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