COLUNAS
Terça-feira,
26/2/2002
Lá vamos nós outra vez...
Rafael Lima
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Uma das coisas mais chatas que pode acontecer é descobrir subitamente alguém que resumiu, antes sequer de você amadurecer um conjunto de idéias, aquilo tudo que você queria dizer. Enquanto eu esperava tolamente o meu ponto de vista sobre o PASQUIM21 amadurecer na cacholeta, o Mr. Manson matava a cobra e mostrava o pau: "O Pasquim está renascendo hoje com o curioso slogan: 'Nós somos a favor do contrário de tudo que está aí.' Tudo bem, quem sou eu para falar mal dos 'monstros sagrados' do humor brasileiro (estou sendo sincero, eles são bons), mas peraí, eu estou viajando ou 'tudo que está aí' inclui eles também? Ziraldo, Nani, Laerte... Que pose revolucionária os caras estão querendo tomar se eles são o 'main stream'? Será que o 'tudo que está aí' se resume ao FHC, Bush e outros babacas neoliberais?"
Pois é, podia parar por aqui, mas não vou. Quem já se dá por satisfeito, eu sugiro que vá acertar as contas direto com Mr. Manson, mas alerto: o cara é bom de briga.
Mas falávamos do PASQUIM21 quando fomos rudemente interrompidos. Esse novo jornal - o formato tablóide foi recusado para evitar associações com o hebdomadário que lhe emprestou o nome - surgiu da necessidade de remendar o rombo financeiro surgido com o fechamento de Bundas (trocadilho involuntário), revista fundada basicamente pela turma do Pasquim em 1999 e abortada pela falta de anunciantes (diz-se que recusavam-se a publicar numa revista com aquele nome), além da queda da venda em bancas. Bundas fora uma idéia brilhante do Ziraldo: reunir os antigos amigos humoristas para uma publicação de humor em oposição ao governo - que o deixou nu com a mão no bolso, na necessidade de equacionar o problema financeiro. Um ano depois do sumiço de Bundas, eis que Ziraldo capitaneia uma nova publicação semanal... com seus antigos amigos humoristas fazendo oposição ao governo. Convocou-se novamente o estado maior - Fausto Wolff, Aldir Blanc, Luís Fernando Veríssimo, Sérgio Augusto, Fritz Utzeri - enfim, todos aqueles que um amigo meu chama de pessoas maravilhosas: gente que escreve bem, que é convidada para camarotes de cervejarias no desfile das escolas de samba, que está aí para patrulhar o governo, que não deve ser contestada porque só diz verdades, e por aí vai. Só que dessa vez, sem contar com o apoio moral que Bundas teve nos primeiros dias, e sem Millôr Fernandes, fora desde o começo. Jaguar, ex-editor geral de Bundas e comandante até o último destroço do Pasquim, também tirou o time: "Pasquim e Titanic só naufragam uma vez".
Quem conheceu a trajetória de Bundas sabia que não seria preciso nem ler o PASQUIM21 para saber o que tinha lá dentro: muita reclamação, como bem observou Mario AV, "Rompeu todos os recordes de mau humor numa publicação de humor", muita crítica genérica ao eterno inimigo EUA, e pau no neoliberalismo mundial, dando uma trégua parcial ao presidente. Ou seja, bem vindos de volta a 1968.
Um dos slogans utilizados nos out-doors, bolado pelo Veríssimo, "Somos a favor do contrário de tudo que está aí" dá o exato tom do PASQUIM21. Parte do truísmo que não existe nada sagrado para o humor e acaba caindo na cantilena ser da oposição por ser do contra. É da natureza do humor ser do contra, mas fazer oposição não é sinônimo de fazer humor; essa é a confusão fundamental, desde a época de Bundas, que está matando toda a graça. No editorial, Veríssimo cita a piada mais curta que define, ao mesmo tempo, humor e anarquia: chegando numa ilha qualquer, o náufrago pergunta para a primeira pessoa que encontrar: "Hay gobierno?", e diante da resposta afirmativa, diz: "Soy contra". O mesmo sentimento expresso como declaração de princípios por Millôr Fernandes ao inaugurar sua extinta página dominical n'O Dia: "Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados". O resultado é invariável, um tipo de posicionamento que acaba apoiando quem não mereça apenas por representar a oposição. Vejamos o que nos mostra o PASQUIM21. Este colunista teve a pachorra de ler com lupa a publicação e optou por correr o risco de ficar chato ao comentá-la de cabo a rabo aqui.
O logotipo antigo foi fotoshopeado, adaptando-o aos tempos. Quando a tipologia Broadway foi utilizada em 1969, estava esquecida e causou grande impacto ao ser reaproveitada por Bea Feitler no livro Cole, em Nova Yorque, 1971. Hoje, quando qualquer um pode converter seu cursivo em fonte True Type (como fizeram inclusive com aquelas letrinhas pretas vazadas em ângulos retos que são marca registrada do Ziraldo), é de se perguntar porque não inovaram, quem sabe, refazendo o logotipo a cada número? Além de recauchutar a programação visual do Pasquim, da capa podem-se identificar os heróis (Noam Chomsky, Zilda Arns) e os vilões (Roseana Sarney) da revista. Na página dois, a correspondência prova que se não existe humor a favor, parece também não existirem leitores do contra. Na página 3, o editorial do Veríssimo divide página com um ótimo cartum do Ziraldo, provando para quem quiser ver que ainda desenha o que quer e o que não quer. Na página 4, Sérgio Augusto reclama que os seios siliconados de certa atriz global não poderiam existir no tempo de D. Pedro I, como se o pastiche televisivo no qual ela tem papel de destaque tivesse alguma pretensão a reconstituição de época...Do lado dele, Leonardo Boff enche duas colunas para fazer uma crítica à arrogância e ao militarismo norte-americano. A partir da página 5, sempre nas ímpares, convidados declaram e justificam seus votos para presidente. Entre elas, Zé Aparecido estende o tapete para Itamar Franco (em brilhante caricatura de Quinho): "Meu voto é o voto de Minas, e sendo assim, é o voto que serve ao Brasil", e Supla enche a bola... do pai. Na dupla 6-7 deve estar a melhor coisa da revista, a auto-proclamada maior charge da imprensa mundial, com Paulo Caruso desvendando os homens por trás de Roseana Sarney, em citação a clássico desenho de J. Carlos. A seguir, Aldir Blanc e seu hilariante texto detonando o "bonzinho", o "arroz", o "arame liso". Poerner passa mais um espaço conjurando alguns espectros da ditadura e da Guerra Fria. Olha que não estamos nem na metade.
Maria Lucia Dhal exalta os 30 anos sem Leila Diniz, sem dedicar uma mísera linha de seu texto para especular o que ela estaria fazendo hoje se estivesse viva. Na página 12, o leitor pode se impressionar com o que parece ser pelo menos o início de um bom relacionamento com os anunciantes: whisky, companhias aéreas, enfim, bens de consumo de gente sofisticada, o tipo de gente que uma publicação daquelas gosta de ostentar como leitores. A página 13, talvez por mero acaso, é reservada ao Pós-quim, um espaço para os... novos? Então porque a facílima figurinha nos círculos do CEP 20.000, Michel Melamed, foi escolhido para escrever? Por que no meio de um amarrado de trocadilhos ele arruma espaço para citar Planet Hemp, Zélio e Veríssimo, todos pessoas maravilhosas? Na metade de baixo, Anna Fortuna arranha o brilhantismo do pai em ótimas jogadas visuais. Na página 14, que audácia!, Nani grafa o primeiro palavrão da revista, the f word. A página 16 parece ter sido dedicada a comportamento, mas Miguel Paiva, responsável por alguns dos mais memoráveis momentos da Bundas, decepciona. Sergio Rodrigues é o que mostra a melhor cancha. Quase no fim deste caderno Marcos Caetano escreve uma boa coluna, mas recai em assunto batido, assim como Pedro Vicente.
O terceiro e último caderno é dedicado à política e grandes reportagens. Debaixo dos lençóis maranhenses é aquele artigo que está se tornando lugar comum na imprensa, o desmascarar das falcatruas dos governos Sarney no Maranhão baseado em dados oficiais, com o objetivo de minar a candidatura de Roseana. Eu já havia lido um assim na Folha de São Paulo e outro no Estadão. Na página 27, Emir Sader faz a exaltação do 2º Fórum Social Mundial de Porto Alegre, assunto que ocupa as próximas páginas, também na reportagem de Fausto Wolff sobre Noam Chomsky. O Fórum Social é elogiado como alternativa ao de Davos, como movimento solidário e inclusivo, por valorizar o ser humano sobre o capital, enfim, é o grande escudo que a esquerda tem usado para se defender - e atacar - a tendência globalizante da economia. Como todos os participantes do PASQUIM21, em menor ou em maior grau, apóiam as idéias marxistas, é razoável que o evento, onde se fizeram mil oficinas, trocaram idéias e tomaram banho grupal nu ganhe todo aquele espaço. A grande entrevista é de D. Zilda Arns. Perto do fim, Fritz Utzeri e Pedro Paulo Pitto reclamam da programação da Tv. Há 50 anos nestas terras, e os intelectuais ainda fazem questão de torcer o nariz para a televisão. Felizmente, há o engraçadíssimo cartum de Dil Márcio para nos tirar do sério. Natanael Jebão mais uma vez fecha o caderno, mas é inevitável perceber o cansaço de seu estilo, que nem esconde ser um subterfúgio a mais para falar mal de FHC. A última página tem um Palavrão Cruzado, onde a editoria avisa: "não temos coragem de publicar em letra de forma as palavras que o leitor vai, de próprio punho, escrever aqui".
Saldo líquido: uns três cartuns fora-de-série, um (!) texto de humor realmente engraçado, muito mau humor, muita exaltação ao Fórum Social Mundial, uma vexatória falta de ousadia e o tremendo cansaço de um discurso que nem ao menos considera a hipótese de olhar o próprio rabo, perdido que está na retórica. Não faz rir pelo humor e não acrescenta à oposição. A sensação de decepção aumenta se o compararmos com o Pasquim original, cuja oposição política ao sistema era apenas um dos ingredientes no molho do sucesso; por exemplo, "inimigos" foram entrevistados (Agnaldo Timóteo, Ibrahim Sued, Waldick Soriano, o próprio Wilson Simonal chegou a ser. Qual a chance de um pagodeiro ser hoje?), onde eram amplamente sabatinados; hoje, a bola só é levantada para "os nossos heróis", que prontamente repetem o dito no editorial, e de resto em todo o jornal; havia uma crítica aberta aos costumes conservadores da classe média e nem o povão era poupado (Codecri, o nome que deu origem à antiga editora do Pasquim, era o acrônimo de Comitê de Defesa do Crioléu, espécie de seção de defesa do consumidor encabeçada pelo Henfil), os quais hoje nem se cogita desrespeitar, porque o freguês tem sempre a razão, e por causa do império politicamente correto (apesar do PASQUIM21 se dizer politicamente incorreto, qual a chance de um Edélsio Tavares simplesmente existir hoje?). Sobretudo, o jornal se mostrava completamente antenado com seu tempo, mantinha uma coluna fixa sobre contra-cultura (Underground, do Luís Carlos Maciel), podia até defender para si o feito da primeira entrevista com uma modelo-celebridade (Elke, depois mais conhecida pelo apodo Maravilha), algo absolutamente inexistente no PASQUIM21, que para isso nem ao menos parece ter reservado uma janela aberta.
Com a internet a encurtar distâncias, redistribuindo boatos e piadas na velocidade da luz, com a pluralidade de vozes nos blogs, grupos de discussão e homepages, com a televisão a acompanhar cada vez mais de perto e no ato os acontecimentos, vai ser muito difícil para seus articulistas continuar reclamando a posse da verdade, a invenção das melhores piadas & frases de efeito ou a primazia das idéias. Mas eles são bons, não se pode negar. O chato é poder desejar pouco mais do que boa sorte para um projeto assim.
O que que há, velhinho?
Esta coluna ainda está de luto pelo falecimento de Chuck Jones. Bip!
Rafael Lima
Rio de Janeiro,
26/2/2002
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