(Atenção: este texto contém trechos de conteúdo sexual que podem ser considerados ofensivos para algumas pessoas.)
Não importa que o inverno este ano está decepcionante aqui na Grã Bretanha. Não importa se há manhãs que você não precisa nem de cachecol - a estação é mesmo assim sinônimo de night ins, algo que no Brasil, com todo esse calorzão que exacerba os hormônios da galera, carrega até hoje uma aura de coisa de velho. "Pô, vamos sair!" cansava de dizer eu a um grande amigo meu, em São Paulo, quando sabia que ele ia dizer sempre o mesmo, que preferia ficar em casa brincando com seu computador ou ouvindo Beatles. E eu, meio já prevendo isso, me apresentava à sua porta para desfrutar de sua companhia e depois empurrá-lo para fora, para nem que fosse tomar um milk shake de morango na Bob's do Shopping Morumbi. Precisei me mudar para a Europa para entender que muitas vezes botar seu pijamão e ligar a TV numa sexta à noite vale muito mais a pena do que encarar a aterrorizante confusão dos cinemas, ruas e avenidas entupidos de gente buscando desesperadamente diversão, como se tivessem que descontar no penúltimo dia da semana todo o sofrimento acumulado no escritório durante os dias anteriores. Não, amigo, agora tudo mudou.
Em Londres, é assim. Da mesma forma que em São Paulo você pede uma pizza, aqui o mais comum é pedir uma refeição indiana. Um suculento chicken tikka massala, ou algo mais forte, um madras talvez. Depende de sua resistência às coloridas pimentas. Se você não estiver a fim de um indiano, pode optar por um fish and chips mesmo, ou um kebab, comprados na esquina. Isto é, se você realmente não se importar com a gordura e o óleo pingantes das iguarias. Talvez você também tenha um chinês take away perto de casa, ou mesmo um tailandês. Em último lugar na gama de opções vem a pizza, que é claro que é feita em fornos elétricos, leva invariavelmente pimentão, é pequena e borrachuda e tem o mesmo preço de uma pizza no Brasil, com a diferença de que você deve trocar o R$ pelo símbolo da libra. E levando-se em conta que a libra vale mais ou menos R$ 3,5.... hummm.... melhor comprar um pacotinho de pipocas.
E com a suave fragrância de milho e manteiga enchendo minhas narinas, com meu pijama e minha meia de lã e com as lentes de contato devidamente removidas, ligo a TV. Não, não vou assistir a nenhum vídeo hoje. Sexta-feira nunca vale a pena, tendo o Channel 4 à inteira disposição.
O Channel 4 é um verdadeiro banquete para o viciado em night ins de sexta-feira. Não é possível não encontrar pelo menos uma pessoa na segunda-feira que não esteja comentando com outra, em algum pub, o encontro do doutor Crane com as mulheres de sua vida que, em uma alucinação, abandonam sua mente para atormentá-lo, como fantasmas, numa viagem do psicanalista a uma casa na montanha onde ele pretendia refletir sobre a vida. A última temporada de Frasier está destruidora, como as anteriores. Mas o que me interessa não é o Frasier, é o que vem depois do Frasier. Um talk show. Eu nem sei se o Jô Soares continua na Globo. Não sei se ele e o saxofonista Derico continuam fazendo duetos de piadinhas absolutamente sem graça. Não sei se o Jô continua falando mais que os próprios entrevistados, ou se o Jô se tocou que sua egotrip já havia ido longe demais. Você deve ter gostado do Jô no início - a demonstração de que era possível bater um papo descontraído e inteligente num canal de TV aberto e atrair uma boa audiência no fim de noite era um sinal de que nem tudo estava perdido no Brasil. Mas a fórmula, que já havia nascido chupada do David Letterman, era toda baseada na genialidade e no carisma do Jô, e agora, sei lá quantos anos depois de seu início triunfante, já está prá lá de desgastada.
Na Grã-Bretanha, um irlandês gay chamado Graham Norton (foto acima) apresenta seu programa de entrevistas desde 1998 e, até agora, parece estar se dando muito bem. Não é que o programa não seja também baseado na sua graça e personalidade - é sim. É bastante. Imagina um gay que faz piadas o tempo todo usando como tema de fundo a sexualidade. Captou alguma semelhança com A Praça é Nossa ou a Escolinha do Professor Raimundo? Pois é. Então, você deve estar se perguntando porque eu gosto tanto desse gay irlandês ególatra e decidi escrever sobre ele para vocês. A resposta é que eu mesmo não entendo como, contrariando tudo o que se espera, o sujeito faz um programa debochado, colorido-berrante e às vezes de mal gosto, mas sempre incrivelmente, terrivelmente, asfixiantemente engraçado, e que não parece estar perdendo em nada seu encanto, mesmo estando no ar há tanto tempo. Acho que o programa, chamado So Graham Norton, se beneficia de várias coisas de que o Jô Soares não se beneficiou. O Jô é diário - o Graham Norton é só às sextas-feiras, às 22h30, e como todos os programas de comédia semanais aqui da Inglaterra, funciona no esquema de temporadas (periodicamente sai do ar para, daí a alguns meses, voltar a ser transmitido). O formato do Programa do Jô é muito fixo - são as entrevistinhas e as piadas de sempre do Jô. O Graham tem um formato fixo, mas nem tanto, e dentro das estruturas do programa sempre há um elemento importante de surpresa, às vezes mesclado com um pouco de "constrangimento vergonhoso palpável", da parte dos entrevistados, da platéia e dos telespectadores. "Constrangimento vergonhoso palpável" é algo mais raro no Jô... que bate que bate na tecla do Jazz requintado e da alta cultura esnobe de quem passa os feriados em Manhattan.
Você vai entender. A melhor parte do So Graham Norton, que tem cerca de 50 minutos de duração, é a primeira, antes do primeiro intervalo. Dura cerca de 20 minutos. O apresentador, que deve ter uns 35 anos, é magrinho e baixinho, surge no palco usando sempre alguma roupa extravagante, como um terno de vinil vermelho ou de pele de onça. Depois dos aplausos, ele faz a seguinte proposta para a platéia: "Todos se levantem. Agora, quero que só permaneçam de pé as pessoas que viveram um episódio engraçado envolvendo sexo em condições perigosas..." (Essa condição para que as pessoas fiquem de pé ou sentadas muda a cada semana, mas geralmente tem um conteúdo picante. Uma outra semana foi "que fiquem de pé apenas as pessoas que viveram uma situação difícil envolvendo máquinas" ou "as pessoas que viveram uma situação engraçada envolvendo animais"). Entre as pessoas que ficaram de pé, Graham Norton escolhe duas ou três aleatoriamente e vai até elas, com um microfone portátil, e pede para elas descreverem o que aconteceu. São geralmente histórias muito, muito insólitas, com detalhes pornográficos, mas as reações faciais de Norton e seus comentários após cada detalhe do causo são impagáveis - e valorizam a própria narrativa. Gostaria que vocês tivessem visto o dia em que uma mulher falou que estava fazendo sexo oral no marido e que, quando ele foi gozar, ela se afastou e uma gota de esperma acabou voando no olho dela. A platéia riu tanto que o resto do programa inteiro a infeliz da mulher ficou recebendo closes da câmera, e todo mundo voltava a rir automaticamente.
Foi um programa especialmente bom, aliás, porque a segunda parte dele, ainda antes do primeiro intervalo, também foi impagável. A seguir, Norton apresenta o seu primeiro convidado, dos três que ele traz toda noite ao programa. Geralmente, o primeiro convidado é alguém de peso, bastante conhecido em todo o mundo, e os outros dois são figuras mais conhecidas apenas na Grã-Bretanha. Naquela noite, o convidado principal foi o ator francês Gerard Depardieu - de Cyrano e Green Card - Passaporte para o Amor -, conhecido pela seu vasto e batatudo nariz. Os convidados geralmente conversam primeiro com Graham sobre assuntos banais, nada muito inteligente. Depois, Graham gosta de pegar algumas fotos do convidado e perguntar para ele o que ele estava fazendo em cada uma delas. São, obviamente, fotos constrangedoras, e a manifestação de "fragilidade" dos entrevistados sempre encanta a platéia, que rola de rir. Por fim, chega o momento mais aguardado. Depois dessa introdução de cinco minutos, toda orlada por piadas improvisadas de Norton, o apresentador convida o entrevistado a passear com ele pela Internet.
Aí entre a parte admirável de boa produção do programa, e que explica por que foi Gerard Depardieu o convidado da noite. Norton gosta de mostrar o lado mais bizarro da rede mundial de computadores. Sites que não estão no Google nem no Yahoo, páginas obscuríssimas de pessoas com obsessões tão doentias que passam a ser cômicas. Você sabia, por exemplo, que há um site pago de uma mulher de um país do leste da Europa que, caso você queira ver, se propõe a tocar flauta para você? Sim, ela toca flauta pelada em frente a uma webcam. Mas ela não toca a flauta com a boca... mas sim com seu órgão sexual. Um dia, Norton ligou ao vivo para a mulher e pediu para ela fazer uma demonstração - que obviamente não foi mostrada sem que antes a imagem fosse disfarçada para cobrir suas partes íntimas. Um outro site, mostrado há algumas semanas, era o de um sujeito nos Estados Unidos que tinha um serviço de limousine. Você pode alugar a limousine, diz o site, e o motorista canta para você. Sim, uma limousine "show", e o motorista garante que conhece todos os sucessos de Lisa Minelli, inclusive "Cabare" (o motorista, aliás, foi mostrado no programa em que Lisa em pessoa era a convidada, e ela acabou conversando com o motorista, que obviamente não acreditou que era ela mesmo). Mas, voltando ao Gerard Depardieu, nesse dia Norton mostrou um site de um americano que tem fetiche por narizes. Sim, um que considera narizes órgãos profundamente eróticos. O site mostra uma seleção de fotos que o sujeito considera "quentes", com focinhos diversos, uns mais finos e longos, outros mais grossos e curtos. Uns sendo apresentados em fotos tiradas de baixo para cima - detalhando bem o interior das narinas - e outros em poses mais comportadas. Em dado momento, você lê um texto em que o expert em narizes compara o assoar de um nariz a uma "boa carícia preliminar" e o espirro "a um orgasmo". E você vai descendo a página e no final você encontra uma foto de quem? Do Gerard Depardieu, é claro, considerado pelo dono do site o ícone máximo do prazer.
Então o apresentador fala a Depardieu que a produção já havia entrado em contato com o dono do site e pedido para entrevistá-lo ao vivo (na presença do ator), mas o fetichista disse que só topava participar se Depardieu conversasse com ele e fizesse "uma coisinha". Norton conta ao francês o que é a "coisinha", sem deixar a platéia nem os telespectadores saberem o que é. Então, eles ligam para o pervertido. O sujeito atende, Graham Nortom se identifica. "Sim, sim, estava esperando a chamada", diz o dono do site. "O senhor Depardieu está aí?" "Sim", responde Norton.
"- Mas me diga, por que você gosta tanto de narizes?
- O nariz é o órgão mais erótico do corpo. Sua forma, sua protuberância...
- Mas como você prefere um nariz?
- Depende... há dias que eu prefiro mais pontudos, outros dias mais grossos...
- E você gosta de ver pessoas assoando o nariz?
- Eu.... hummmm... isso é muito excitante... Mas o que eu gosto mesmo é de um bom espirro, bem molhado... Mas posso falar com o senhor Depardieu?"
Com a platéia já se esbaldando de rir com o caráter surreal da entrevista, Depardieu fala oi.
- "Senhor Depardieu", diz o fetichista, "C-como vai? Sempre foi meu sonho falar com o senhor..."
Então, depois de um minutinho em que o sujeito elogia Depardieu e lhe fala mais sobre como admira (seu nariz), Graham Norton intervém, dizendo que vai dar ao fetichista o presentinho "que ele havia pedido". Isso mesmo, você adivinhou! Norton dá a Depardieu três lenços de papel e pede que ele dê uma bela, sonora, gostosa assoada de nariz.
O sujeito do outro lado da linha dá um berro de prazer, e eu caiu do sofá, com o Tikka Massala vivendo um terremoto dentro do meu estômago. Juro, nunca dei tanta risada assim. E é mais ou menos dessa forma, toda semana.
Eu fiquei - e fico - impressionado com Graham Norton, porque eu tento imaginar como seria um programa de entrevistas apresentado por um gay brasileiro. Não consigo pensar em nenhum desses gays famosos daí apresentando um programa bom e criativo. Clodovil? Vera Verão? Você deve estar brincando. A Inglaterra tem uma certa tradição de parir gays geniais, e você não precisa ir muito longe na história para encontrar exemplos. O Elton John é um tremendo compositor, embora geralmente insuportável de tão afetado. O Boy George acabou de lançar aqui em Londres o seu musical no West End, o Taboo, muito elogiado, todo com músicas do Culture Club. No Brasil, gay ainda é sinônimo de plumas e paetês e batonzinho purpurina e desmunhecar e tudo mais o que é superficialidade. E isso, por mais que pareçamos liberais. Eu até costumo dizer que só aqui realmente encontrei pela primeira vez gays legais, pessoas com que dá para conversar sem ter que acabar caindo em discussões sobre sexualidade. Pessoas que não ficam te falando o tempo todo que estão ou são... você já deve ter cruzado com um desses por aí. Que bom que as coisas estão mudando. Talvez, o que basta para que o gay seja mais aceito no Brasil seja alguém bem respeitado assumir sua homossexualidade e passar a apresentar algum programa na Globo. Pode ser um programa de entrevistas. Pode até ser um programa de entrevistas para substituir o do Jô. Bom, a não ser que o próprio Jô seja gay e decida se revelar...
Bom, por aqui temos o David Brasil fazendo entrevistas para o programa da Xuxa, mas por pior que o programa do Jô tenha se tornado, acho que ainda não dá para substitui-lo.