Li na Internet uma crítica do filme “Moulin Rouge”. Eu gostei de “Moulin Rouge” - um bocado, até. Mas na crítica o sujeito dizia que o filme “não funcionava” - e em seguida explicava por que, usando a poética de Aristóteles.
Não era um texto idiota. Não digo o nome do autor, justamente porque não é um idiota - tenho mais pudor para elogiar do que para ridicularizar. Se achasse ridículo, diria o nome. Infelizmente, não havia nada de ridicularizável no texto - mas havia isso que eu achei estranho: a expressão “o filme não funciona”.
Quem diz isso não está dizendo: “eu não gostei do filme”. Quem diz isso é como um piloto que examina um avião e diz: “esse avião não vai levantar vôo”. Não é um piloto que achou um avião feio. É um piloto tentando dar uma análise objetiva do avião, uma opinião técnica. “Esse avião tem tal e tal defeito e não vai sair do chão. Tentei e não consegui”.
Ué, mas pra mim funcionou. Entrei no avião, levantei vôo, fui até Piracicaba e voltei. E agora?
Se o avião não funcionou com ele, mas funcionou comigo, o problema obviamente não é com o avião, nem é comigo. É com ele.
Isso é freqüente. Estou vendo um filme; o filme me excita de alguma maneira; mas me viro para o lado, e meu amigo, o crítico - que não foi capaz de sentir essa excitação, como um leitor que não é capaz de fazer a escanção de um poema - está me explicando por que eu não deveria gostar desse filme. É como se você estivesse na cama com uma mulher, gostando de tudo, e de repente percebesse um homenzinho no canto do quarto, fazendo cara de nojo: “Está gostando? Mas e essas muxibinhas?”
Que não se diga, no entanto, que esse argumento serve para defender qualquer filme. Alguém há de ter gostado de Xuxa e o Segredo dos Duendes (é esse o nome? Não diga - não quero saber). Não posso, portanto, dizer que ele não funciona. Posso dizer que não gosto dele (estou sendo gentil); mas não que ele não funciona, ou corro o risco de ser contestado por uma garota gordinha de Brasília que respira com a boca aberta e está apaixonada pelo Justin Timberlake.
Sim, esse filme (o da Xuxa) é um avião que às vezes voa. Mas eu é que não me arrisco a entrar nele.
Com certeza!
Já se reclamou um bocado contra o uso excessivo de “com certeza!”, mas como isso não pára, aqui vai mais uma pedrinha para o apedrejamento desse cacoete (para quem foi poupado, o “com certeza!” tem que ser dito num crescendo, num tom animadinho - o tal “up-talk” dos americanos). O leitor Paulo Henrique M. de Oliveira me mandou por email um exemplo atroz, visto por ele na televisão. Perguntaram a uma “modelo”, dessas com silicone nos lobos frontais, se ela iria desfilar no carnaval de São Paulo. Ela respondeu: “Com certeza, talvez eu vá!”. Não é lindo? Não é horrível?
Meu problema com a Volkswagen...
Isto também é sobre o uso das palavras. Ou sobre o não-uso delas.
Estava eu sossegado na minha poltrona, mudando os canais. Passando rápido pelos canais abertos, com a espécie de frisson que a Clarice Starling deve ter sentido ao andar no corredor do hospício em O Silêncio dos Inocentes, e repetindo para mim mesmo: não pare, não pare, não pare. Eis quando – mais uma vez, como Clarice Starling - fui atingido por algo.
Tive que parar.
Trata-se do aviso de uma “convocação” feita pela Volkswagen do Brasil. Aparentemente, alguém vendeu carros com defeitos nos freios. A Volkswagen do Brasil está fazendo o tal do recall. Este é o texto que apareceu na tela, lido por um homem de voz empolada:
“A Volkswagen do Brasil convoca os proprietários de automóveis Gol, Parati, Saveiro, Santana e Kombi, ano de fabricação 2002, para comparecerem a um concessionário de sua preferência para verificação e, se necessário, fazer a substituição do conjunto 'cavalete/pinça' dos freios a disco desses veículos. Esta peça é fornecida pela Continental do Brasil Produtos Automotivos Ltda. para parte dos veículos Volkswagen e para outras montadoras.
Constatou-se que em algumas dessas peças o processo de cromação dos pistões pode levar à formação de bolhas de gás e contaminar os circuitos hidráulicos dos freios. Existe a possibilidade de que em alguns casos isso possa afetar a eficiência do freio do veículo e aumentar o espaço necessário para parar ou reduzir a sua velocidade.
A Volkswagen produziu 37.000 veículos no período de 9 de janeiro a 8 de fevereiro, conforme numeração de chassi abaixo. Desse total, 26.000 unidades não estão afetadas por utilizarem peças de outro fornecedor. Considerando os carros nos pátios da montadora e dos concessionários, cerca de 10% desse total estão nas mãos dos consumidores.”
Daí vem uma lista de números de série dos chassis de carros Gol, Parati, Saveiro, Santana e Kombi; e a informação de que um “esquema logístico” está sendo preparado para receber os carros defeituosos.
Meu problema nem é com a palavra “convocação”. Apesar do Dicionário Universal Online da Texto Editora definir convocar como
“do Lat. convocare v. tr., (...) mandar comparecer”, não é da conotação autoritária, ou pelo menos brusca, da palavra, que eu estou reclamando. Poderiam dizer que convocar também pode ser usado em circunstâncias mais gentis (embora ninguém convoque a namorada para jantar - a menos que use a palavra de modo irônico). Nem do tom, digamos, germânico do texto. Não. É de outra coisa que eu estou reclamando.
É da velha dificuldade em se dizer DESCULPE e POR FAVOR.
...E minhas saudades do Dr. Lecter
Por falar em O Silêncio dos Inocentes - a falta que Hannibal Lecter faz. Lembrem-se: ele só comia os rudes.
Alexandre, acho que os críticos estão perdendo a importância relativa de que desfrutavam na era A.A.I. (antes do advento da internet). Agora, quem deseja, pode colher impressões e informações de inúmeras fontes, reduzindo o monopólio opinativo dos antigos especialistas. Só que os críticos ainda não perceberam essa redução de status (problema deles) e continuam com a arrogância de sempre, decretando o que "funciona" ou não. Aqui no Rio, quando leio a opinião deles sobre os filmes em cartaz, no mais das vezes (acredite, não estou sendo irônico) a opinião deles me influencia com sinal trocado, ou seja, quando elogiam muito, fico desconfiado (geralmente não é um bom filme, é apenas politicamente correto) e quando procuram denegrir a película, já é um indício positivo de que o espetáculo é desprovido de lixo ideológico. Um abraço.
Toni: também uso o seu método, mas com alguma reserva. O problema é que os críticos de cinema são tão imprevisíveis que, às vezes, e por acaso, dizem que é bom um filme bom, ou que é ruim o filme ruim. Um abraço.