O professor entra na sala ainda vazia para preparar a primeira aula da manhã. Nos corredores, silêncio. Dentro da sala, em vez do desarranjo habitual de mesas e cadeiras, ele vê assomar os contornos de uma estranha ordem: hieráticas, regimentais, as cadeiras vertidas sobre o tampo das mesas, em filas rígidas e simétricas – as pernas para cima como rifles. Diante do pequeno exército mobiliário, como comandante, o quadro-negro. Nele, escritas com giz, as palavras de ordem: uma enorme cruz suástica e xingamentos anti-semitas.
Dois dias depois, a biblioteca da universidade ostenta em sua fachada a pichação garrafal: dois ou três nomes de alunos seguidos da frase “ele é gay”. Da porta do quarto de outro aluno, são arrancados cartazes de um grupo militante homossexual, além de fotos e imagens pessoais. A mensagem é silenciosa, e o terror, quase invisível. Na escultura em frente à residência estudantil, mais pichações agressivas.
De pé, ao lado dessa escultura, dá para ver o outro prédio – aquele do qual, dois meses antes, um aluno berrou, bêbado, pela janela, ofensas à garota negra que mostrava a universidade ao irmão. Não muito longe do local onde, um mês depois, o corpo mutilado de um gato foi encontrado. A natureza dos ferimentos não deixou dúvida sobre sua autoria deliberada e humana. Dizer “cruel” é redundância.
Não, essas não são cenas de um filme apocalíptico. Também não são vestígios de eras passadas, dos tempos de capuzes brancos pontudos ou camisas marrons. Não são, por fim, notícias de mais um reduto neo-nazista na Alemanha de hoje, como aqueles em que turcos, brasileiros e outros imigrantes morreram nos últimos dez anos.
Não. Tudo isso aconteceu aqui. Aqui, nos Estados Unidos, o “estandarte fulgurante da democracia”. Aqui, no norte do estado de Nova York. Na Costa Leste, cantão progressivo e iluminado, polvilhado de metrópoles, cidades cosmopolitas e multiculturais, universidades, artistas, escritores, vanguarda. Aqui, numa universidade privada, abonada, de gente bem nutrida e vestida, que depois vai trabalhar nos bancos e companhias mais poderosos do país. De gente que é, faz e fará a “opinião pública” dos Estados Unidos. De gente que é o futuro deste país – e do mundo.
This is America!
A universidade pediu que abordássemos os incidentes em classe. Foram incidentes demais em tempo de menos. Espantada, encarei meus alunos. Eles, sem espanto, encararam o vazio, como se diz por aqui: em silêncio, o olhar perdido, como se não fosse com eles. Repeti meu espanto em forma de pergunta. Um deles, talvez compadecido, dignou-se a responder, em tom peremptório e didático: “Well, this is America!”. Aqui é a América, oras – o que mais eu esperava?
Ele não estava falando da América da liberdade de expressão e do “first amendment”, do direito constitucional de manifestar a própria opinião, seja qual for. Não. Ele estava falando da América racista, discriminatória e violenta, a América dos “hate incidents” e “hate crimes” – crimes de ódio, movidos por ódio (como se outros crimes não o fossem!), ódio racial, sexual, de classe, de cor, de gênero. “Hate crimes”, crimes odiosos, isso sim, Rodney King, negros, chicanos, gays – a história de linchamentos e ataques é longa, é quase ubíqua. Sim. “Aconteceu quando eu estava no colégio. Acontecia. Acontece o tempo todo”, o garoto continuou. Esta é a América. País dos crimes de ódio.
Racismo explícito
Não admira que o politicamente correto tenha sido inventado e tenha florescido aqui. É a reação necessária – e dialética – a esse ódio imenso que, se deixado incontido, invade a rotina com suas obscenidades. Racismo há, provavelmente, em todo lugar do mundo, mas o racismo daqui é especialmente virulento, explícito, gráfico – e surpreendemente aceito. O politicamente correto é o substituto externo e imposto do pudor e da autocrítica internos. Em vez de civilidade cultivada, cultiva-se aqui a naturalização do ódio. E não falo apenas dos autores do crime. O garoto que me explicou que “aqui é a América” é judeu. Outro aluno disse não ligar para os incidentes porque eles não afetaram sua rotina. Ele é negro.
Pode-se observar, como já o fizeram vários teóricos, que o objeto do ódio – o “negro”, o “judeu”, o “gay”, o “árabe” – só existem como tais na cabeça daqueles que odeiam. Categorias arbitrárias, generalizações, ficções desmentidas pela biologia, pela cultura, pelos próprios indivíduos. Meus alunos poderiam até mesmo ter justificado sua indiferença dizendo não se sentir diferentes dos demais por ser negros ou judeus. Poderiam ter dito que indignar-se é vestir a carapuça fabricada pelos agressores, é ser conivente com o estereótipo que se deseja combater.
Infelizmente, não foi esse o espírito. Junto ao conformismo do “this is America”, meus alunos expuseram sua indiferença individualista: não fui eu que fiz, não alterou minha rotina, não sei quem fez e não há nada que eu possa fazer. Não admira que a coisa tenha se perpetuado a ponto de parecer natural: a maioria das pessoas não liga, contanto que a sujeira não seja em seu quintal. O que mais me surpreendeu não foi a indisposição para a ação, mas a ausência de indignação moral. Será muito esperar consternação diante de agressões cometidas por um bando de playboys de uma universidade de elite?
Uma fruta podre estraga todo o cesto
O outro tranqüilizante comum para apaziguar as consciências é a constatação de que tais incidentes são exceções cometidas por “uma minoria”. “É só um punhado de garotos”, disse outro aluno. Não duvido. A maioria é pacífica. Ainda que nada se possa afirmar sobre seus pensamentos ou sentimentos secretos, em público a maior parte das pessoas sabe se comportar e conter seus impulsos destrutivos. E, em geral, esse comportamento majoritário serve como pressão social para que os elementos “desviantes” se contenham também.
Há períodos ou lugares, no entanto, em que a pressão afrouxa. Quando o primeiro, o segundo e o terceiro incidentes não são recebidos com repúdio e condenação, abre-se o respiro para o quarto, o quinto e todos os demais. A série de incidentes no campus desta universidade, dos quais os citados nesta coluna são apenas exemplos, já chega a uma dezena em menos de quatro meses, pressionando a universidade a se posicionar publicamente.
Quando a eterna vigilância adormece, a tal minoria toma liberdades excessivas. “Minorias” fazem estragos imensos, causam desastres. O historiador Christopher Browning sustenta que, na Alemanha nazista, os autores dos crimes extremos e mais atrozes não eram maioria. Segundo ele, que fez entrevistas, estudos demográficos e pesquisas em arquivos, os "monstros" não eram maioria nem mesmo entre oficiais de exército e polícia.
Para Browning, havia uma espécie de pirâmide. Uma minoria cometia os piores horrores. Um grupo um pouco maior que essa “minoria” cometia horrores um pouco menos horríveis, e assim por diante, numa gradação em que o horror menor é simplesmente o ato aparentemente inócuo de escrever uma pichação racista.
O efeito da pirâmide é múltiplo. Em primeiro lugar, os piores horrores – os cometidos pela “minoria” – eram tantos, e tão intensos, que atingiram a maioria das vítimas. Por conta da extensão desses horrores, sua autoria acabou associada à maioria do povo alemão, ao menos por alguns historiadores.
Em segundo lugar, o fato de a minoria cometer impunemente suas atrocidades alargou as fronteiras do aceitável para a maioria, afrouxando a pressão social. Por comparação, atos que seriam normalmente abominados passaram a ser vistos com menor indignação. Os absurdos dos campos de concentração, por exemplo, fizeram parecer brincadeira atos de crueldade como cortar barba e cabelo de judeus ortodoxos nas ruas.
A tese de Browning não isenta de responsabilidade a sociedade alemã da época. Muito pelo contrário. Apesar de indicar que a maioria não pôs a mão na massa, sua pesquisa aponta para o perigo silencioso e traiçoeiro da cumplicidade passiva. Quem cala consente: no caso de processos sociais e históricos, mais ainda.
Trotes
Suspirar aliviado e achar que essas ações violentas só acontecem lá na América - lá em Columbine, a escola onde alunos de colegial massacraram seus colegas em 99; lá em Wyoming, onde o universitário Matthew Shepherd foi espancado até a morte em 98, por ser gay - é compactuar com a desculpa da “minoria”. É ser conivente com esses crimes - e com aqueles que estão muito mais próximos de nós, para os quais fechamos os olhos. Universitários assassinos não são exclusividade norte-americana. A cada dois ou três anos, no Brasil, estudantes morrem ou são gravemente feridos no meio de trotes violentos.
Sim, quem cala consente. Sabemos o que acontece quando sociedades perdem o decoro moral e soltam os impulsos raivosos que levam aos crimes de ódio: da pichação passam à guerra "santa". Por diferenças de raça, religião, tribo, orientação política, por pedaços de terra: a lista de motivos se desdobra na coleção de lugares e nações tomados pelo terror. Índia, Colômbia, Israel, Palestina, Afeganistão, Kosovo, Ruanda, Bósnia, Chechênia.
Medo, não alarme
Que fique claro: não estou semeando o pânico – quem semeia o pânico são os autores dessas ações de terror. Entrar em pânico é fazer exatamente o que eles esperam, é ceder ao seu exercício de poder. Mas não se pode confundir bravado com bravura. Medo – não pânico – é essencial à sobrevivência. O medo nos faz alertas para os perigos ao redor: faz com que contemos com sua possibilidade, reconheçamos sua existência e seu poder de nos atingir. E o medo nos faz escapar – fugindo ou combatendo.
Ainda que a vítima recuse o rótulo que seu agressor impinge, nada garante que a recusa evite a agressão. O “judeu” que morava na mente dos nazistas pode não ter existido de fato, mas isso não impediu que milhões de pessoas fossem assassinadas – entre as quais muita gente que não se sentia “judeu”. O medo sensato e aguçado é parceiro do sentido de realidade. Medo, não alarmismo. Que essa coluna seja lida, então, de olhos abertos – e que não seja ouvida como o soar das sirenes. Nem das trombetas.
Texto lúcido e tristemente real. Há quase um ano, um primo meu foi morar com a família no Texas. Minha tia, mãe dele, telefona sempre para os netos, que estão terminando a high school. Nesta semana, perguntando sobre a violência na escola, um deles respondeu que não tinha sido muito ruim a semana, só acharam um punhal. Desde que eles chegaram, não se passam duas semanas sem que a polícia, que revista a entrada dos alunos, encontre armas, geralmente desmontadas. Agora estão levando cachorros treinados em descobrir drogas e pólvora. Os pais ou o conselho de administração não permitiram a instalação de detectores de metal, por considerarem ofensivos e depressivos. Revista e cachorros não são? Os alunos também não reagem ao aumento da repressão, pois também pensam que não é com eles. Que triste esta sociedade, não é? Será que o Brasil não está indo pelo mesmo caminho?
Abraços e parabéns pela análise feita.