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Quinta-feira, 14/3/2002
Filosofia de boteco
Adriana Baggio
+ de 6100 Acessos
+ 2 Comentário(s)

O que faz a personalidade de um bar? Dá pra ter uma idéia do clima do lugar pelas pessoas que freqüentam, pela localização, pelas dicas de algum roteiro cultural, pelo boca-a-boca. Mas só dá pra saber se a personalidade do bar combina com a sua quando você entra e começa a interagir: com o ambiente, com o banheiro, com o garçom, com os outros freqüentadores. O que determina se você vai se sentir em casa ou não? Se você está pensando que bar não é um lugar para se sentir em casa, melhor parar de ler por aqui. Bares são lugares onde a gente precisa se sentir à vontade, como entre amigos, entre CDs, entre livros. Já fui em muitos bares com a sensação de ser penetra em uma festa. Pessoas nada a ver, ambiente nada a ver. Por outro lado, já me senti imediatamente à vontade em lugares dos quais não tinha nenhuma referência.

Essa última situação aconteceu com o Havana, aqui em João Pessoa. E olha que o começo não foi dos mais promissores. Era uma noite chuvosa. Chuva, por aqui, faz as pessoas ficarem em casa. Portanto, a quinta-feira, dai de boa freqüência no Baixo Tambaú, estava comprometida. Eram mais de 10 horas quando cheguei, e o bar estava vazio. Meia dúzia de gatos pingando se espalhavam entre as mesas altas, perto do balcão, as mesas baixas mais afastadas, e o próprio balcão. Escolhemos uma das mesas altas, com bancos altos também, daqueles que dão dor na perna por falta de apoio para os pés. O tampo é de mosaico de azulejos, formando um desenho abstrato geométrico qualquer, e a coluna que sustenta o tampo é envolta por feixes de galhos ou algo parecido. Todas as mesas são assim, as baixinhas também. O balcão com tampo de madeira é uma esquina, ou seja, tem dois lados onde a gente pode sentar. Para completar a decoração rústica, umas máscaras rituais na parede. Não entendi bem qual a relação com a capital cubana, mas deixa pra lá...

O lugar é escuro na medida certa. Tem luz generosa o suficiente para enxergarmos as outras pessoas, e tímida no ponto certo para proporcionar aquele clima de “à noite todos os gatos são pardos”. Já estava me sentindo completamente à vontade no Havana. Foi uma agradável surpresa encontrar Miller Genuine Draft no cardápio. Chamamos Saulo, o garçom, para providenciar a bebida. Aqui vale um aparte: é estrategicamente interessante fazer amizade com os garçons. Eles são os responsáveis pelo abastecimento da mesa, pela agilidade ao providenciar comidas e bebidas, e pelo controle de qualidade da temperatura da cerveja. Saulo é um amor, mas não é perfeito. Sua falta de experiência como garçom, fato que só vim a conhecer em outra ocasião, ficou patente. Pedi minha Miller com limão. Ele me olhou como se eu fosse louca, mas não falou nada. Voltou com a cerveja e um copo com limão e gelo. Olhei para Saulo com um certo desprezo, mas controlei minha língua a tempo, antes de explicar a diferença entre cerveja e coca light, essa sim, servida com gelo e limão. Educadamente tentei ensinar a ele como o limão deveria ser cortado e colocado na garrafa. “Você quer que eu traga o limão cortado aqui?” Não, darling, gostaria que você cortasse o limão em cruz e colocasse um dos gomos dentro da garrafa. “Dentro?” É, dentro. Fui até o bar, expliquei ao barman e eles providenciaram minha Miller conforme a encomenda. Pode tirar o copo, tomamos no gargalo mesmo. Faltou o guardanapo no long neck da cerveja, mas essa aula acabou ficando para outro dia.

Depois dessa, Saulo ficou nosso amigo e todas as cervejas vieram devidamente servidas com limão. A essas alturas eu já me sentia como em casa de amigos muito íntimos. O Havana tem um clima que faz com que seja fácil conhecer pessoas, e o melhor, pessoas interessantes. Quem estava lá não era necessariamente bonito, bem vestido, com ar inteligente, ou outro aspecto superficial que pudesse despertar o interesse à primeira vista. Mas todo mundo – homens e mulheres - tinha algo que fazia a gente ter vontade de conversar. E não sei se pela arrumação das mesas, ou pelo balcão acolhedor, mas essas conversas acabavam acontecendo facilmente. O que deu pra perceber é que o Havana deve ser um ponto de reunião dos exilados da cidade. Em duas noites, conhecemos um paulista, dois cariocas, dois franceses.

A noite foi tão boa e agradável que voltamos no sábado. Neste dia a freqüência já estava um pouco diferente. Mais quantidade, uma ligeira alteração na qualidade, mas isso acontece aos sábados em muitos lugares. Fomos recebidos por um caloroso “oi” de Saulo, o garçom. Vi que ele estava especialmente ocupado naquela noite, e fui buscar minha cerveja diretamente no balcão. Na verdade, adoro balcões de bar, e esse foi o pretexto para ir até lá. Encostei na madeira escura e nem deu tempo de abrir a boca. “Miller com limão”?, perguntou o barman. É isso aí, moço!

Nesse dia achei que Saulo estava preparado para segunda aula de como servir cerveja. Expliquei a ele que é importante ter um guardanapo para segurar a garrafa, porque com o calor a condensação acontece muito rápido, os dedos ficam molhados e a garrafa pode escorregar. “Você faz assim, ó: pega o guardanapo, dobra no meio na diagonal e coloca em volta do pescoço da garrafa. Junta as duas pontas e dá uma torcidinha, para o guardanapo não cair. Pronto! Agora é só segurar a garrafa pelo pescoço, para que a cerveja não esquente muito rápido.” Saulo ficou me olhando embasbacado, e mais uma vez não falou nada. Vai entender os garçons... Mais tarde ele disse que dava pra conquistar qualquer homem com aquela aula de como colocar o guardanapo na garrafa. Não entendi bem o porquê, mas vou guardar a informação e testar quando for o caso.

Faltou falar do banheiro, um item de fundamental importância na classificação de um bar, ainda mais para mulheres que bebem cerveja. O toalete do Havana é muito simpático. Tem uma espécie de saguão com pias e espelho coletivo. Do lado esquerdo ficam os reservados, um de cada cor: primeiro o vermelho, depois o amarelo e por último o azul. Os mais obtusos escolhiam o vermelho ou o azul, dependendo da noção que cada um tem de identificação de gênero, mas evitavam o amarelo do meio. O legal é que não tem aquela fila interminável no banheiro das mulheres enquanto o dos homens fica vazio. Como todos são, por assim dizer, unissex, a rotatividade é maior e quase não há fila.

Enfim, chegou a hora da saideira, expulsadeira, terminadeira. De volta ao balcão, outro barman perguntando: “Miller com limão?”. Não, meu querido, um guaraná light com laranja e gelo. Chega de cerveja por hoje. Com esse eles não tiveram problemas. Assim, o guaraná foi o acompanhamento dos meus últimos momentos no Havana. Enquanto o refrigerante descia e o sono começava, percebi que só nosso grupo estava no bar. Até Saulo já estava se preparando pra ir embora. Os barmans lavavam copos. Invadi a parte de dentro do balcão para trocar o CD e levei uma amável bronca de Fred, o dono. Batíamos papo com o barman, com o DJ, com o garçom. Até ganhamos flores feitas de guardanapo! Ah, se os homens soubessem como as mulheres se derretem com essas gentilezas... Mas isso é outro papo.

Tentei convencer meus amigos que o pessoal do bar queria ir embora, que nós éramos uns malas-sem-alça por ficar até aquela hora enchendo o saco deles. Não consegui persuadir ninguém, e saí sozinha. Não uso mais relógio desde que os meus quebraram, por isso não tinha idéia da hora. Só sei que lá fora a luz do dia bateu no meu rosto com a força da realidade. Pelo menos não tinha sol. Um céu cinza previa um dia mais calmo, introspectivo, e egoisticamente eu torci para que chovesse. Olhei para os que ainda estavam na rua àquela hora. Endireitei a coluna, fiz a cara mais digna e sóbria que pude e caminhei majestosamente para o carro, batendo os saltos no asfalto e passando incólume por entre os restos da noite de sábado. Apesar de tudo parecer um pouco sórdido a essa hora, é bacana ver como as pessoas que sobrevivem à noitada se olham como cúmplices: enquanto os normais estão nas suas camas, na última e melhor parte do sono, nós estamos aqui, terminando nossa noite. Fui dormir feliz. A última coisa que vi foram os numerozinhos vermelhos mostrando que faltavam 15 minutos para as seis da manhã. Boa noite, João Pessoa.


Adriana Baggio
Curitiba, 14/3/2002

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01. História da leitura (II): o códice medieval de Marcelo Spalding
02. Brincando de aventura de Eduardo Carvalho
03. Literatura como arte de Ana Elisa Ribeiro


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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
14/3/2002
18h09min
Dois sentimentos me assaltam ao final desse simpático texto da Adriana..primeiro, a curiosidade, que desde já alimenta a vontade de conhecer o citado barzinho paraibano. E depois, ou misturado a isso, uma boa dose de surpresa-decepção..não pela descrição do bar, pelos comentários procedentes sobre o banheiro feminino, ou a ode aos balcões de bar, cuja admiração compartilho. O que me deixou passado, incrédulo e em dúvida sobre a sanidade da autora foi a parte etílica. Será que estava falando sério mesmo quando falou da alegria em descobrir que no tal bar havia Miller (ainda mais genuine e , pasmem ,draft !)..e, logo adiante, ao pedir o tal líquido gazoso amarelado que eles vendem como cerveja (certamente não ouviram falar das tchecas, Staropramen à frente, das tantas belgas, como Delirium tremens ou Stella Artois, ou até mesmo das nossa Bohemia, Antarctica pilsen extra..isso pra não falar de chopes..). Pra completar , a escriba ainda teve a pachorra de pedir um quarto de rodela de limão ao coitado do garçom ..!! aí eu pergunto, pra que essa mexicanização boba de tãonobre líquido, com raízes , dizem, no Egito antigo..? pra que estragar uma cerveja que já não é lá essas coisas..? e por que tratar esse nefasto hábito como um sinal de bom gosto moderno ? enfim, dúvidas que me assaltam e só poderiam ser dirimidas numa mesa, com muita cerveja boa, e sem limão. Nada pessoal.
[Leia outros Comentários de Marcelo Lins]
15/3/2002
18h06min
Caro Marcelo Em primeiro lugar, obrigada pelos seus comentários. Posso perceber, por eles, que você talvez entenda um pouco de cerveja, mas não entende nada do país onde mora (considerando que você viva no Brasil..). Aqui em JP é difícil encontrar alguma marca de cerveja que seja um pouquinho diferente do tradicional, e Miller encontra-se entre elas. Não venha me falar de cervejas tchecas. Quanto às nacionais que você citou, aqui existem sim, mas reservo-me o direito de gostar de Miller: fraca, refrescante. Quanto ao limão, porque mexicanização boba? Provavelmente você não acha que servir tão nobre líquido gelado seja um brasilização boba, não é mesmo? Por que se formos entrar no mérito da maneira que se toma cerveja, vamos encontrar hábitos diversos em diferentes países... Por último, não acho que seja de bom ou mau gosto tomar a cerveja com limão. É o meu gosto, e é uma maneira comum de servir a cerveja, não deveria parecer estranha ao pessoal do bar. O que me incomoda um pouco são atitudes pernósticas em relação a uma manifestação de gosto, que como você sabe, não se discute. Talvez suas dúvidas tenham sido dirimidas aqui neste espaço. Mas se um dia surgir a oportunidade, posso tentar explicar melhor o que falei acima em uma mesa de bar. Tome a cerveja que você quiser. Eu vou tomar a minha Miller com limão, dá licença?:)
[Leia outros Comentários de Adriana]
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