A cerimônia do Oscar passou. Ufa! Depois de uma semana para deixar a cabeça e a poeira assentarem, e comemorar a justiça feita aos artistas negros da sétima arte (tim tim, Denzel Washington!), dá agora para refletir melhor sobre algumas ausências sentidas na festa deste ano.
Sabe, eu tenho que confessar que, se o negócio do Oscar não tem mesmo nada a ver com premiar os melhores filmes do ano e sim a ver com aquelas idissincrasias eternamente questionáveis da academia, não sei como pude errar tanto. Quando pensei em escrever um textinho sobre os filmes indicados, nem olhei direito as indicações. Tinha, por exemplo, certeza de que Russell Crowe iria concorrer - porque a academia gosta desse tipo de coisa, atores que tentam mostrar que tem grande capacidade dramática, mas que na verdade sempre torcem o nariz dos mais críticos, tentando ano após anos levar a estatueta. Além disso, Uma Mente Brilhante é um filme piegas de doer (desculpe, mas é isso que eu acho) e Hollywood gosta de pieguiçe. Tinha certeza que Assassinato em Gosford Park iria concorrer a alguma coisa, também, porque Altman sempre foi um cara que teve a admiração de alguns eleitores em Hollywood, e porque ele fez tanta coisa memorável que ele sempre é forte candidato. Entre Quatro Paredes, por ser um drama bonzinho, também, assim como o ma-ra-vi-lho-so como Pearl Harbour (isto é uma ironia...), que certamente iria levar alguma indicação por efeitos visuais, assim como Falcão Negro em Perigo. Ainda falando de aventuras e combates épicos, era sabido e foi confirmado que a academia tem preconceito com o gênero fantasia e não premiou o glorioso O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel nas principais categorias. Mulholland Drive? Bom, veja e me diga o que você acha. David Lynch voltando às suas origens, um cinema enigmático, arcano, impenetrável, histórias que se mesclam e não parecem ter sentido, inconsciente versus consciente, sexualidade ambivalente, Freud, enfim, nada que realmente represente o gosto popular ou da academia (ainda que as atrizes sejam sensacionais e o filme tenha me deixado refletindo por dias, como há muito tempo não ocorria). Não, não estou inconformado com nada disso... era tudo, tudo esperado. Agora, eu tenho várias perguntas sem nenhuma resposta.
Primeira, e mais óbvia... o Brasil teve um ano sensacional em matéria de cinema. Olha só: não estou falando apenas de Abril Despedaçado, que está fazendo um sucesso surpreendente em Londres (recomendado pelo Times, pela Time Out e pelo Metro e tomando de assalto o Curzon Soho, um dos cinemas-cabeça mais freqüentados de Londres). Nem de Eu, Tu, Eles, que também fez sucesso por aqui. Estou me referindo do esperadíssimo e dolorosamente e artesanalmente construído Lavoura Arcaica. Não, ora direis vós, trata-se de um filme muito longo, muito difícil e não digestivo para a academia. Ok, ok, mas estou frustrado. Assim como estou frustrado em relação ao esquecimento de O Invasor, premiado em Sundance (clique aqui para ler o texto do colega Fabio Danesi Rossi sobre o filme). Está certo que O Fabuloso Destino de Amélie Poulin concorreu ao Oscar, e ainda que tenha sido preterido por Terra de Ninguém - repetindo o sucesso do Globo de Ouro - a presença de Amélie no Kodak Auditorium colaborou para colocar um sorriso no meu rosto.
Outra dúvida... Gente, sou eu o único sujeito no mundo que gostou de Do Inferno e achou uma injustiça tremenda o filme não aparecer em nenhuma indicação? Convenhamos, parece que o fato do filme ter nascido de uma história em quadrinhos deve ter assustado muitos intelectualóides cinematófilos, que acham que esse tipo de (como eles devem chamar os quadrinhos) "subarte" não poderia produzir algo descente. Mas, mesmo que Hollywood decida ter mantido os olhos fechados para o esforço titânico de pesquisa de Alan Moore, ainda restam no filme a fotografia, a ambientação, as sombras, o trabalho bastante honesto de Johnny Depp. Mas nada, nada, nem sombra de indicação da festa do Oscar. Tsc, tsc...
Terceira injustiça que não quer calar: O que dizer de The Shipping News? Ainda falando do fato de eu nem ter olhado a indicação dos filmes ao Oscar, eu esperava com tanta certeza que Kevin Spacey (foto acima, em cena do filme, com Julianne Moore) fosse indicado para o prêmio de melhor ator ou que o filme fosse indicado ao de melhor roteiro adaptado, que simplesmente não consegui acreditar quando, ao botar minha bunda na cadeira para escrever este texto, não vi nada na listagem. The Shipping News - que pelo jeito ainda não tem nem nome em português nem data de estréia no Brasil, me corrija se minhas pesquisas na internet estiverem erradas - é o último trabalho do diretor sueco Lasse Hallström (de Minha Vida de Cachorro, Regras da Vida e Chocolate), indicado nos últimos dois anos para prêmios da academia, conhecido pela predileção em descrever a vida e os infortúnios de desajustados sociais e por gostar de adaptar romances para o cinema. No caso, The Shipping News foi escrito por Annie Proulx e tinha grande potencial para estourar nas telas, já que o romance já havia sido premiado - com o prêmio Pulitzer, em 1994. O próprio Hallström deixou claro em entrevistas, antes do filme estrear, que esse era um projeto "desafiador" e que ele havia procurado por inúmeros roteiristas dispostos a topar o desafio e adaptar o conteúdo do romance. O temor era compreensível - Annie Proulx tem uma narrativa rica em textura descritiva, leia e não te arrependerás.
O filme conta a história de um sujeito um tanto limitado intelectualmente, John Quoyle (Spacey, de Seven e Beleza Americana), que, traumatizado pelo jeito com que seu pai insistiu para que ele aprendesse a nadar quando pequeno, acaba escorregando para uma vida de medo e mediocridade, como se todos os seus anos neste planeta se passassem com ele no meio de um lago batendo os bracinhos e morrendo de medo por não saber nadar. Em dado momento, ele encontra uma mulher (Cate Blanchett, morena e suja) muito egoísta e muito gostosa que o seduz e que decide casar com ele. Levado pelo vento do destino, ele mantém-se fiel e apaixonado, mas a mulher, depois de parir o filho do sujeito, decide abandoná-lo. O preço que ela paga por isso é a morte num acidente de carro, em que ela estava junto com o amante. Ao mesmo tempo, Quoyle fica sabendo que seu pai também morre. Arrasado, Quoyle recebe a visita de Judi Dench (de Chocolate e Iris), encarnando uma tia distante, que o leva para esquecer dos fatos recentes e conhecer o passado de sua própria família numa região remota do leste do Canadá, a ilha de Newfoundland. Com a filha de 10 anos a tiracolo, Quoyle e a tia desembarcam na ilha e iniciam uma jornada pelo passado dos Quoyle, tocando em feridas profundas mas, ao mesmo tempo, curando-as.
O que você acha? Todos os ingredientes hollywoodianos estão lá. Conte comigo (saravá, Nick Hornby!): Trata-se da adaptação de um romance de sucesso (2 pontos); esse resuminho que fiz deixa claro que é um drama um tanto piegas (2 pontos); tem criança no meio (1 ponto); tem dois atores aclamadíssimos (Spacey e Dench, 2 pontos); Tem locações belíssimas em Newfoundland, em uma região fria, enevoada e fantasmagórica (1 ponto); Tem uma história bem amarrada (2 pontos); é dirigido por um diretor que já foi indicado ao Oscar (2 pontos) e, por fim, foi indicado a prêmios em outras importantes cerimônias, como a dos Baftas ou a Screen Actors Guild de Hollywood (2 pontos). Ou seja, de acordo com esta minha contabilidade simplista, o filme tem pelo menos 14 pontos na escala Richter de sucesso e de potencial sísmico na cerimônia do Oscar.
O que houve, me pergunto. Eu gostei de The Shipping News - de 0 a 10 (ainda usando a linguagem de números e notas), eu lhe dou um sete. Gostei muito da ambientação, gosto de locais ermos, frios e enevoados. Gostei da fotografia, da interpretação de Spacey, acho que ele convence bastante em alguns momentos, mais do que o Russell Crowe coçando a cabeça para forçar um tique nervoso. Dench, como de costume, está ótima. Mas entendo as críticas que lhe vem sendo feitas. Como outros trabalhos de Hallström, este não é um cinema dos mais eletrizantes do mundo. Na verdade, temos um filme entendiante, em certos momentos arrastado, em certos momentos sonâmbulo. O encontro de Quoyle com os desconhecidos fantasmas de seu passado na ilha ocorre ao mesmo tempo em que outros personagens na ilha, ou todos os personagens na ilha, travam contato com seus próprios fantasmas. E haja fantasma! A tia Judi Dench foi estuprada... O colega de trabalho de Quoyle sonhou a vida inteira em deixar a ilha em um barco que ele vem construindo com zelo há anos.... O chefe de Quoyle tem um sétimo sentido.... Dá para perceber que se trata claramente de uma adaptação de um romance, porque todos esses personagens aparecem no filme meio como icebergs - mostrando mais ou menos as toneladas de gelo escondidas abaixo da linha da superfície - o que frustra um pouco. Não que o filme devesse contar a história de todos, o que é impraticável, mas acho que os roteiristas tentaram satisfazer demais as pessoas que leram o livro, e o resultado é discutível - você não gosta, eu gostei. O silêncio de Quoyle, um cara de pouca articulação e que vira um jornalista na ilha, também é uma faca de dois gumes. O personagem é assim, e Spacey segue a risca o enredo. Mas em dados momentos o que parece é que estamos em algum tipo de peça de teatro russa frustrada. Imagine um Tchecov que, de repente, rompe o silêncio e enumera todos os traumas e conflitos na sua família. Senti que o diretor ou os atores não estavam prontos para desafiar o público com o silêncio. Se o fizessem, talvez se tornassem ainda mais entediantes. Há vários momentos de silêncio desconfortável em cenas entre Julianne Moore e Kevin Spacey. Tchecovs frustrados. Eu detestei a tentativa de Julianne Moore de encarnar uma mãe solteira que se muda para a ilha e que, como é de se esperar, tem um romance com Quoyle (tem que haver algum romance, não é? E de preferência com um beijo na chuva pesada, após uma briga, como aconteceu. Uma briga que começa com Quoyle bêbado, outro clichê). Moore parece muito acomodada e muito calma para ser uma mulher com tantos traumas. Não sei, algo cheira mal, como peixe podre, trazido em mais um dia de pesca na costa de Newfoundland.
Não sei se o filme, afinal, possui tantos problemas que justificassem que ele não fosse indicado a nada. Veja e me conte, foi injustiça ou não? Com a pergunta no ar, uma coisa é certa - o diretor Hallström deve estar neste momento refletindo sobre o que deu errado no seu esforço há tanto esperado para adaptar o romance de Annie Proulx. Vamos ver as mudanças no próximo trabalho - já anunciado - a adaptação de outro romance, A Conspiracy of Paper, de David Liss. A história eu já posso adiantar. No cenário do submundo de Londres em 1719, um detetive particular se envolve num mistério de assassinatos e tramas financeiras. Você leu esse romance? É bom?
Legal sua crítica! Porém não sei se concordas vanilla sky que é uma adaptação do original, me rendeu um bom
tempo de reflexão, achei um ótimo filme.
E você?
Oi Vinicius,
infelizmente não vi Vanilla Sky! Tenho certeza que deve ser um filme bom, vi muitas críticas boas a respeito. Mas você levantou uma coisa importante - há muitas outras ausências que são sentidas e que eu nem mencionei. Eu falei só por cima no texto, mas o novo filme do David Lynch, Mulholland Drive, é maravilhoso (estréia em abril no Brasil). Pelo menos para fãs do Lynch. Eu fico muito triste de ver que não foi tão premiado quanto merecia... Mas, como disse, não se pode esperar muito da academia, mesmo...