As pessoas que mais reclamam dos resultados do Oscar são, em geral, aquelas que mais levam a sério a coisa toda. Para quem não liga, ou para quem vê o processo com ceticismo, as decisões e injustiças não fazem diferença – e não surpreendem. Afinal, o que se espera da cerimônia mais brega e autocentrada (além de autocongratulatória) promovida pela indústria reluzente do cinema comercial de massa?
Quem espera profundidade crítica e justiça, além de isenção artística e política, está um tanto enganado a respeito da natureza da “Academia”. Afinal, ninguém vai ao Playcenter esperando ver Picasso. Dito isso, talvez seja mais fácil conviver com o Oscar e suas repercussões – e, com um pouco de bom humor (e a ajuda do fuso horário), assistir a esse estranho rito pagão em que nem tudo, por incrível que pareça, está perdido.
Em vez de se indignar diante dos defeitos do Oscar, é mais produtivo e sensato atentar aos seus efeitos. Mais sérias que a injustiça de uma premiação (afinal, a ausência da estatueta não diminui os méritos artísticos de um filme ou artista) são as suas conseqüências. Ganhar o Oscar determina decisões e ações concretas, a curto e longo prazo, que afetam diretamente os criadores e o público de cinema.
Logo após a cerimônia, os filmes “perdedores” são retirados apressadamente de cartaz, e aqueles que ganharam continuam sendo enfiados goela abaixo da platéia. Decisões de produção, financiamento e distribuição multiplicam o volume de filmes tipo “Oscar” e prejudicam produções alternativas, independentes ou críticas.
Os premiados ganham visibilidade, entrevistas, contratos, propostas de trabalho, salários mais altos, muitas vezes em detrimento de quem não levou nada. Ganham também a pressão para continuar o “sucesso”, o que, muitas vezes, resulta em pouca liberdade artística. Diretores, roteiristas, atores saem perdendo – e o público também. Continuam ganhando, claro, os grandes estúdios e o aparato comercial todo – a rede de televisão, a revista de fofoca, o refrigerante patrocinador...
Retro-alimentação
A forma dos “ganhadores” é transformada em fórmula, influenciando produções futuras feitas sob encomenda para abocanhar o prêmio. É uma espécie de retro-alimentação. Num círculo vicioso, a predominância desses filmes no mercado acostuma o público e membros da academia (que, claro, vivem de olho na audiência) a seus padrões estéticos e de conteúdo, que se transformam em norma e condição de boa bilheteria. Esse sucesso comercial ratifica os tais padrões-Oscar como se fossem verdades auto-evidentes ou naturais, emanações do “público” (essa entidade vaga e ficcional), e, quando a próxima cerimônia chega, os profissionais do ramo votam de acordo. E o ciclo recomeça.
Claro, o tal “público” não é tão estúpido, felizmente – e por isso há sempre surpresas e mudanças na produção industrial de Hollywood. Um exemplo é a popularidade de produções independentes – e de seu festival pioneiro, Sundance, hoje transformado, ele também, em evento mainstream –, que têm invadido a cerimônia do Oscar e os estúdios. Ainda que a estética “indie” acabe também sendo repetida com reducionismos e mecanização, explorada comercialmente e incorporada pela indústria (ou seja, deixa de ser independente), é graças à sua influência que devemos produções como American Beauty, que ganhou o Oscar há dois anos, ou a indicação como melhor diretor de David Lynch por seu radical Mulholland Drive, neste ano.
De todo modo, o Oscar, para além da prateleira de Halle Berry ou Ron Howard, liga-se aos padrões culturais produzidos e reproduzidos não só pelo cinema, mas por manifestações correlatas como a televisão, a música e a moda, além de comportamento, relações e valores sociais e políticos. A ligação, claro, não é unilateral: os filmes afetam seu público, são por ele influenciados, e expressam seu pensamento e valores. É por causa dessa relação complexa que a festa brega de Hollywood tem repercussões amplas – e é por causa dessas repercussões que devemos observá-la criticamente.
Competência versus excelência
Não é por Jennifer Connelly ter ficado com o Oscar de melhor atriz coadjuvante que vou deixar de admirar a excelência de Helen Mirren e Maggie Smith. Mas a atenção e demais benefícios trabalhistas que vêm com a estatueta seriam mais merecidos por qualquer uma das duas britânicas, e talvez tivessem um peso diferente (mais significativo, até) do que na carreira de Connelly, que, muito mais jovem, em ascendência e norte-americana, tem um leque bem mais amplo de opções no cinema.
Sim, Connelly atuou direitinho em Uma Mente Brilhante. Convenceu no frescor, na irreverência e nos conflitos da personagem Alicia Nash. Mais que isso, sua performance contida e sutil transmitiu a intensidade silenciosa e implícita do sofrimento – e da paixão – de Alicia, seu impressionante pragmatismo mal escondendo a fragilidade. Mas a boa interpretação é, afinal, o que se espera do bom ator – e não deve, portanto, surpreender. Diferentemente da interpretação excepcional, que eleva a competência talentosa (que boa parte dos atores possui) à maestria.
Tanto Mirren como Smith deram um show em Gosford Park, com atuações impressionantes que fizeram de seus personagens gente mais tocante e memorável do que o roteiro faria supor. Smith interpretou sua esnobe Constance, condessa de Trentham, com a destreza e non-chalance com as quais, por exemplo, os melhores ginastas fazem parecer fáceis suas acrobacias. Com leveza e economia de gestos e inflexões, ela saturou de significado diálogos aparentemente banais. Quando a criada lhe serve café e Maggie, com olhar altivo e quase distraído, murmura o “yummy yummy yummy” (algo como nham-nham-nham, mas a palavra é também usada como adjetivo e significa saboroso, apetitoso), ela condensa a tensão e o desconfortável constrangimento com os quais Robert Altman retrata a hierarquia social em Gosford Park. A cena é eloqüente, irônica, cáustica – e comovente também.
Mais ainda que Smith, Helen Mirren deu à sua personagem, Jane Wilson, a chefe da criadagem, extraordinária ressonância dramática. Um pouco como Alicia Nash, Jane contém suas emoções e conflitos internos sob o comportamento plácido e contido – com a fleuma britânica, em vez do pragmatismo norte-americano. Com muito menos falas e exposição na câmera, e sem direito às cenas de escape explosivo como aquelas em que Alicia quebra espelhos, grita e se debulha em lágrimas, a criada britânica tem de esconder seu segredo, suas angústias e seu sofrimento durante a maior parte do filme.
Mas Mirren consegue indicar, sob o manto de polidez, sua intensidade emocional e seus conflitos desde o início. Sua concisão e densidade são mais impressionantes e difíceis que as exigidas pelo papel de Connelly. E, quando o filme chega ao fim, a última cena de Mirren é muito mais tocante e profunda que o esperado choro de Alicia.
Receita apurada
Robert Altman, aliás, foi outro que merecia ter levado, por seu filme e pela direção. Em relação ao Oscar de melhor filme, até era de esperar que o formato não-convencional e o conteúdo crítico e sutil de Gosford Park perdessem para Uma Mente Brilhante, com os ingredientes que costumam agradar à academia: triunfo da força de vontade individual e conjugal diante de dificuldade, personagem exemplar, história de amor, doença mental (lembrem-se de Rain Main e Tempo de Despertar), calvário coroado por sucesso, tudo isso imerso no contexto e na cultura norte-americanos. Era esperado. Mas dar o Oscar de direção a Ron Howard, que simplesmente seguiu com competência a receita apurada de Hollywood? De novo, competência não era mais que sua obrigação...
Howard não fez mais que “business as usual”, e os momentos mais memoráveis do filme devem tanto ou mais à excelência dos atores do que à sua direção. Russell Crowe e Ed Harris têm experiência e currículo suficientes para dar vida a seus papéis. Altman, por sua vez, além de realizar um filme original e crítico, demonstrou admirável agilidade na direção de um mini-exército de atores, diálogos e tramas paralelas, extraindo o máximo de cada cena e de cada ator, e mantendo o controle sobre o produto final, que é coeso e veemente.
Alforria
Ainda que a dimensão política, econômica e ideológica do Oscar tenha de ser levada em conta – como foi na premiação de Denzel Washington e Halle Berry, propagandeada à exaustão como “acontecimento histórico” –, não é razão suficiente para justificar, por si só, a decisão da comunidade cinematográfica. Washington teve atuações muito mais impressionantes que o policial “malvado” de Training Day, e o maior impacto causado por sua performance até agora era o simples fato de ele ter sido uma escolha surpreendente para o papel, já que é na maioria das vezes escalado como herói, bom moço, mártir etc. Fora a novidade de caráter, o papel não exige muito – e Denzel é apenas correto.
Quanto a Berry, contou com campanha mais-que-intensa da mídia – sua imagem vem sendo martelada e endeusada desde antes do anúncio das indicações ao prêmio. Convenientemente, Connely, que poderia ter concorrido como atriz principal, foi parar na categoria de coadjuvante, permitindo a dupla premiação das jovens e belas norte-americanas. Como se diz por aqui, é um caso de “win-win” – todo mundo ganha. É notável a similaridade entre o surto semi-histérico da atriz e as cenas de gritos e choradeiras mostradas como exemplo de sua atuação em Monster’s Ball. Ou ela é mesmo boa atriz, e seu discurso ao receber o Oscar é só mais uma performance, ou a atuação de Berry no filme apenas dá vazão a seus trejeitos pessoais, e não ao seu talento interpretativo.
Vá lá, essas são observações um pouco exageradas. Mas, considerando-se a homenagem programada a Sidney Poitier, como reconhecimento por sua carreira, o “acontecimento histórico” da premiação de dois atores negros em papéis principais é um tanto previsível. E, se isso não chega a ser prova de corrupção, é no mínimo suficiente para que se veja com desconfiança essa “magnanimidade” sócio-política que a academia quer exibir, e suas possíveis motivações ocultas.
Mas tudo tem seu lado bom. Ainda que Crowe tenha mais uma vez encarnado um papel de forma impressionante (como havia feito em O Informante), seu comportamento cada vez mais repulsivo fora da tela teria tornado sua vitória não muito palatável. Washington é definitivamente um vencedor mais simpático (a “maldade” fica mesmo só no filme). E, de mais a mais, Crowe não chegou a surpreender – não elevou seus reconhecidos talentos dramáticos a níveis inéditos, nem em relação à própria carreira nem à de outros atores em papéis similares (pensem em Dustin Hoffman...).
Ah, a justiça, finalmente a justiça...
Se há um prêmio em que a justiça foi feita (além de Melhor Figurino, que foi para os inesquecíveis corselets de Moulin Rouge), foi o de Filme Estrangeiro. Curiosamente (ou não), é a categoria em que mais costumam aparecer os “filmes de arte”, produções mais líricas e menos comerciais que a maioria, temas delicados, uma certa experimentação formal... Isso talvez se explique, parcialmente, pelo fato de os norte-americanos não darem tanta importância à categoria quanto o resto do mundo (os estrangeiros). O tempo e a exposição dedicados a esses filmes e a seus realizadores e atores, tanto na cerimônia do Oscar (e sua transmissão) quanto na cobertura da imprensa em geral, são tímidos em comparação com as categorias, por assim dizer, principais. O Oscar de Filme Estrangeiro está a um (pequeno) passo dos prêmios técnicos (som, edição, montagem, etc.) – aqueles sobre os quais ninguém sabe muito, e cujos recipientes são igualmente desconhecidos e ignorados. Com a exceção de um ou outro blockbuster, como Amélie nesta temporada, e A Vida é Bela há alguns anos, pouca gente vê os concorrentes estrangeiros – muitos dos quais são exibidos por curto tempo em número restrito de salas.
Será essa desatenção irritante? Pode ser, mas é ela que permite a liberdade e ousadia na escolha de indicados e premiados. E nada mais reconfortante que ver o azarão No Man’s Land derrotar o favorito Amélie, contrariando o caso de amor que o público norte-americano vem mantendo com o filme francês e afirmando o humor negro, corrosivo e pessimista do filme bósnio em lugar do otimismo refrescante de Amélie. Dito tudo isso, e olhando em retrospecto, é de renovar a admiração imensa pelo fato de Fernanda Montenegro ter sido indicada como melhor atriz num filme estrangeiro falado em português. Como eu disse no início, nem tudo está perdido nesse estranho rito pagão... nem tudo, fora o senso “fashion” de Gwyneth Paltrow.
Absorvendo sua opinião não discordo de nenhuma virgula, como não se espera profundidade, seria esse o motivo de o filme vanilla sky não ter sido relacionado em nenhuma categoria pois achei interessante a forma com que o filme se desenrola, queria saber sua opinião a respeito de tal filme.
Vinicius Brown...
Daniela, só para dizer que enfim fui fer Gosford Park e adorei. Realmente, Helen Mirren e Maggie Smith fazem valer o filme, particularmente a última, interpretando aquele tipo de nobre decadente que não tem mais dinheiro para pagar os criados e para quem a vulgaridade é crime pior do que um assassinato com veneno e facadas...