“Que filme triste”, disse meu amigo ao sair da sessão de Iris (Reino Unido, 2001, dirigido por Richard Eyre). É a primeira coisa que as pessoas dizem quanto o título é mencionado: “ouvi dizer que é muito triste”. De fato, Iris é um dos filmes mais... tristes que vi nos últimos tempos. De deixar a platéia quieta e sorumbática. De chorar sem parar, lágrimas rolando à revelia. O que chama a atenção, além do fato de esse efeito melancólico ter virado o principal distintivo do filme, é o tom desconcertado com o qual as pessoas se referem a ele. A “tristeza” virou motivo para não ver e não gostar.
Pois eu gostei, sim. Mas o que me incomoda não é o fato de tanta gente não ter gostado – é essa lacônica aversão à tristeza. A maioria das pessoas parece partilhar uma impressão consensual de que a tristeza é um defeito auto-evidente, cuja conotação negativa dispensa explicações. Como, ao que parece, eu não participo do consenso, muito me intriga o silêncio que se segue à declaração: “é muito triste”. E daí? Por que não dizer “não gostei”, diretamente? Por que não dar mais pistas, outros motivos? Ninguém tentou ao menos me convencer de que a tristeza é razão suficiente para a reprovação.
Fragilidade
Mas o caso é que falar em tristeza é como falar em doença – como se fosse uma anomalia, contagiosa ainda por cima, algo patológico, prejudicial, evitável, talvez. A idéia da tristeza é tão perturbadora que um filme como Iris, que faz dela sua tônica dominante e recusa a redenção fácil de um final feliz, soa quase ofensivo. O problema é que a tristeza de Iris está ligada ao que o filme tem de mais verdadeiro e significativo – a vulnerabilidade de sua protagonista, e, por extensão, a nossa também; a impotência das faculdades humanas, da ciência, da força de vontade, do amor. Não admira que o filme tenha sido recebido com frieza aqui nos Estados Unidos, a terra das narrativas de heroísmo e triunfo individual.
O tema do filme é Iris Murdoch, escritora e filósofa britânica interpretada por Kate Winslet (na juventude) e por Judi Dench. A trama descreve a irreversível deterioração de sua personalidade e de seu intelecto pelo mal de Alzheimer. Centrada na fase final da vida de Iris, a história é pontuada por inúmeras cenas de sua juventude, contrastando seu talento, brilhantismo e vitalidade com a fragilidade e devastação causadas pela doença. A obra foi criticada justamente por dar tanta importância à progressão do mal, usando o vibrante passado apenas como termo de comparação, cujo efeito é destacar mais ainda a tragédia final. O roteiro quase não toca na meia-idade de Iris, nos mais de trinta anos de produtividade e contentamento como uma das mais importantes autoras de seu país, objeto do amor quase incondicional de seu marido, o escritor John Bayley.
Seus detratores acusam o filme de explorar morbidamente a doença de Iris e de não fazer jus à sua contribuição literária e intelectual. Mas o filme, ainda que não seja um curso completo e aprofundado sobre sua obra (e por que um filme deveria ser um tratado acadêmico?), declara veementemente sua admiração pela escritora, e tem o mérito adicional de dar renovada publicidade a seu nome. O desejo de ver retratado apenas o brilho de sua existência – que, no mais, está acessível a todos, em seus inúmeros livros publicados – nega o fato de que a dor, o sofrimento e o sentimento de injustiça também fazem parte dessa existência.
Sem açúcar
Talvez essa tristeza toda tenha sido mesmo a intenção do cineasta, que não imprimiu em seu filme nem mesmo a promessa de redenção. Em outras palavras, ainda que o final da vida de Iris não possa ser mudado, o diretor poderia ter escolhido representá-lo de outra maneira. Poderia ter dado ao filme um desfecho mais açucarado, dando à platéia a sensação de que a vida e o talento de Iris seriam compensação suficiente por seu sofrimento posterior; ou suavizando o efeito devastador do mal de Alzheimer. Mas o final do filme é uma lição de parcimônia e sutileza dramáticas, sem alívio estético, sem melodrama e sem monumentalidade. Não há clímax ou resolução: é como se o filme se desvanecesse, desbotasse, se distanciasse, assim como a mente e o caráter de Iris vão sumindo à medida que a doença progride.
Não se trata de fazer a apologia da tristeza. Seria tão inquietante quanto a sua negação obstinada. O elogio do sofrimento transforma o sentimento de dor em sensação e estabelece com ela uma relação de consumo sensual (o que há de fazer felizes muitos masoquistas); a tristeza vira objeto de fruição em si mesma, num círculo vicioso. A idealização da tristeza exagera suas dimensões, em vez de prestar atenção à sua presença real e específica. A tristeza, afinal, é parte da vida. Como a lei da gravidade, os acidentes, o sono, a fome. Não é questão de gostar ou não gostar, de elogiar ou reprovar, de negar ou cultivar. A questão, além de aceitar esses fatos, é lidar com eles: não só superá-los, mas tirar deles aprendizado, crescimento, maturação.
Iris é um filme incômodo porque ninguém pode se dizer livre da vulnerabilidade de sua personagem, ainda que nem todo mundo vá sofrer de Alzheimer. A obra não permite reasseguramentos do tipo “ainda bem que não sou eu” ou “é só um filme”. Aí está a sua genialidade: transcende a história de Iris e atinge uma dimensão mais profunda e universal, que fala a cada um de nós. Mostra como é pouco o nosso saber, e menor ainda o nosso poder, em relação àquilo que seria o nosso último domínio individual, a última reserva sob o nosso controle: nossa mente. Graças aos diálogos, que fazem uso da obra de Iris e dos dois livros dedicados a ela, escritos por Bayley, o filme toca em questões e inquietações com as quais todos podemos nos identificar. Além disso, as atuações de Winslet e Dench aproximam Iris do espectador, dando à personagem humanidade e verossimilhança quase tangíveis.
Estes nossos tempos eufóricos e extáticos, em que “tristeza” soa como ofensa e a promessa da felicidade vem em pílulas, em que o barulho e a fúria nos distraem cada vez mais de nós mesmos, precisam de filmes como Iris. Como lembrete, talvez; talvez como advertência. Iris é bom justamente porque é triste, justamente porque nos refresca a memória, nos faz reconhecer a tristeza e nos faz senti-la. A performance de Dench evoca vividamente como o mal de Alzheimer devora a memória e embota o sentimento. O que estamos sufocando, com essa recusa, cerrando os olhos, dizendo “é muito triste” como razão para não ver um filme? O que está nos escapando, enquanto escapamos no otimismo saturado de outras damas de celulóide? Não é Iris que tem os sentidos embotados...
Tristeza, alegria
É bom não estar sozinha na tristeza! Vejam o belo texto Bonjour, Tristesse, de minha colega de Digestivo Adriana Baggio.
Dani, adorei sua abordagem. Mesmo sem ter visto o filme, concordo com você. Acredito piamente que a gente deve viver a tristeza, assim como vivemos a alegria, com a mesma boa vontade. É um saco não poder estar triste, não poder curtir uma emoção legítima como outra qualquer. Acho que tristeza é como gripe: não tem muito o que fazer. É se cuidar durante aquele período e esperar passar. Quando a gente tenta se levantar antes do tempo, ela volta mais forte ainda.
Temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. Por se terem os homens revelado covardes nesse sentido, foi a vida prejudicada imensamente. As experiências a que se dá o nome de "aparecimentos", todo o pretenso mundo "sobrenatural", a morte, todas essas coisas tão próximas de nós têm sido tão excluídas da vida, por uma defensiva cotidiana, que os sentidos com os quais as poderíamos aferrar se atrofiaram. Nem falo de Deus. Mas a ânsia em face do inesclarecível não empobreceu apenas a existência do indivíduo, como também as relações de homem para homem, que, por assim dizer, foram retirados do leito de um rio de possibilidades infindas para ficarem num ermo lugar da praia, fora dos acontecimentos. Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem num tão indizível monotonia em cada caso; é também o medo de algum acontecimento novo, incalculável, diante do qual não nos sentimos bastante fortes. Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência.
(Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta.)
Perfeito!!!! Também me preocupa muito as pessoas não saberem lidar com a tristeza, com a vulnerabilidade humana! Penso que vamos nos distanciando do que nos torna mais Humanos... e aí? o que resta?