COLUNAS
Sexta-feira,
26/4/2002
Índio quer apito, celular e conta nas Caymán
Alexandre Ramos
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Depois de mais uma Campanha da Fraternidade quase nos fazer esquecer que existe a Quaresma, e das recentes efemérides que colocam no mesmo pacote Tiradentes, índios e o Descobrimento, não tive como deixar de lembrar de um discurso(1) feito há dois anos, na missa dos Quinhentos Anos, por um sujeito chamado Jerry Adriani Santos de Jesus, vulgo Matalauê, ou Matalauê, vulgo Jerry Adriani Santos de Jesus, índio pataxó. Sobre esse bendito discurso tenho, até hoje, duas perguntinhas que, como diz o clichê, não querem calar.
Primeiro ele dizia que "...vocês, quando chegaram aqui, essa terra já era nossa". Vocês, quem? Se alguém ali presente esteve na esquadra do Cabral, deve ser imortal como aqueles personagens do filme Highlander.
Depois ele continuava, afirmando que os "povos nativos e donos desta terra vivem em harmonia com a natureza: tupi, xavante, tapuia, caiapó, pataxó e tantos outros".
Sobre a tal "harmonia com a natureza", Ricardo Arnt, conceituado jornalista da área científica, diz o seguinte: "Índios não são ecologistas. A antropologia conhece várias histórias indígenas de predação de recursos naturais e caça exterminadora. Só Kevin Costner acredita que índios não matam fêmeas grávidas. Graças a mal-entendidos como esses, o mito do bom selvagem, tão caro às populações urbanas nostálgicas de uma vida natural, entronizou-se: no espelho partido do homem calculável reflete-se o fantasma do índio memorável erigido em Homem Ecológico. O pequeno impacto demográfico das sociedades indígenas, suas tecnologias brandas e sua imersão em um território no qual a sobrevivência depende do ambiente ajudam a construir o mito".
Além disso, também não havia a menor harmonia entre as tribos citadas e mais umas tantas, que viviam tranqüilamente massacrando umas às outras, com direito a banquetes canibais, até a hora em que chegou o cruel invasor lusitano e acabou com a brincadeira(2). Ainda hoje, enterrar vivas crianças nascidas gêmeas ou em decorrência de adultério, bem como a expulsão da mãe adúltera da tribo, fazem parte da pacífica cultura indígena.
Tão pacífica, aliás, que não tem tido a menor dificuldade em adotar costumes bárbaros dos brancos, como seqüestro e extorsão. Os caiapós da aldeia Baú, no sul do Pará, têm se mostrado especialistas no assunto, dando preferência a dinheiro para o pagamento dos resgates, mas mostrando boa vontade ao aceitar gasolina, alimentos e ferramentas.
O curioso é que esse pessoal, que fala português fluentemente e ostenta todos os símbolos de consumo, é considerado ininputável pela lei brasileira. O cacique Raoni - aquele cara que carrega um cd do Sting no beiço - alega que os seqüestros são uma forma de luta pela demarcação das terras indígenas. Sinta-se o leitor completamente livre para acreditar nisso.
Não tem essa estória de "vocês que chegaram aqui". A imensa maioria da população brasileira é constituída justamente por brasileiros, gente que não é índia, nem africana, nem européia, mas nascida aqui de pais que nasceram aqui. Temos ainda um grande contingente de imigrantes de várias nacionalidades que, sabe-se lá por quais insondáveis mistérios, acreditaram um dia que poderiam ter algum futuro nesta terra, e vêm dando um duro danado para ajudar a construir um país que, afinal, é de todos nós.
O curioso é que, ao discurso do índio - que tem aliás, como qualquer um de nós, o seu jus sperniandi - as respostas estão abaixo de meia-boca. Do meio daquele baita complexo de culpa bem classe-média, aparentemente não há entre intelectuais, políticos, e religiosos, ninguém capaz de dizer: Mas que invasão, rapaz, e por acaso havia um país para ser invadido? Cadê a organização política e econômica, as cidades, a cultura nacional(3)? E como poderia, sem dedo de algum cara-pálida, se declarar proprietária de terras gente que até hoje é nômade?
Falando em invasão, vejamos o caso de Portugal. Bem antes de o país existir, a região foi ocupada (como aconteceu aqui) pelos romanos, e antes ainda pelos celtas. O país mesmo só foi surgir justamente durante as guerras da Reconquista, que expulsaram os muçulmanos da Península Ibérica. Mais tarde o país (aí sim) foi invadido por Napoleão, evento que deu origem ao processo que culminou na independência do Brasil.
É claro que as reivindicações dos índios são justíssimas, a começar pela demarcação das terras. O que não dá para aceitar é esse complexo de inferioridade que nos querem enfiar à força, que tem origem no exterior - especialmente nos EUA - e ao qual os nossos fabulosos libertadores se prestam a servir sem sequer remotamente se darem conta.
O governo brasileiro deve servir aos índios exatamente da mesma forma como aos demais cidadãos desse país, os quais, de modo algum, precisam se sentir culpados com esse papo chocho de "vocês, invasores".
E é lamentável que tantos bispos e padres - muitos de fato comprometidos com a justiça social que deriva de uma adesão séria ao Evangelho - volta e meia se envolvam em episódios demagógicos como esse.
Entre uma elite deslumbrada e uma classe média patética que só aceitam o que tem carimbo de proveniência estrangeira, e essa mistura indigesta de macumba, orações infalíveis para Santo Expedito e tchans rebolativos que querem nos fazer engolir como expressões legítimas da assim chamada "cultura popular", o que está mesmo nos fazendo falta é uma cultura brasileira de verdade, que possa nos dar uma identidade e acabar de vez com essa esquizofrenia, essa ciclotimia que nos exalta com o futebol da Seleção (atualmente nem isso) e em seguida nos deprime no vale-tudo da corrupção.
Será possível que nunca vamos poder olhar nos olhos, com tranqüilidade e firmeza, para o americano que vê em nossas camisas os nomes de universidades de seu país, que sequer imaginamos onde ficam, nem para um índio com nome de cantor da Jovem Guarda, que sem mais aquela nos chama de invasores?
Olha aí, Jerry: pega esse teu nome ridículo, teu tênis Nike e tua filmadora digital (vejam como as coisas andaram do gravador do Juruna pra cá) e vai reclamar da invasão em Lisboa. Aqui, não.
(1) O qual, mesmo com toda a minha fé na imensa capacidade do ser humano para o ridículo, não me pareceu de procedência 100% silvícola.
(2) Aliás, foi prática comum de várias tribos fazer alianças com portugueses e outros europeus contra as tribos inimigas.
(3) A não ser que se chame de nação, como lembra João Ubaldo Ribeiro, uma penca de "tribos inimigas entre si, vivendo num território na maior parte desabitado, e se considere alta cultura a ausência de escrita, contar até três e dominar uma tecnologia que, com boa vontade, pode ser classificada como neolítica". Evandro Faustino lembra ainda, com extrema oportunidade, que poderíamos denunciar "as influências maléficas sofridas pela cultura ocidental, como o hábito indígena de fumar. Haveria um tribunal que aceitasse um processo conta os índios e os missionários, pedindo uma indenização pelos males que o fumo brasileiro fez nos costumes, na cultura e na saúde dos europeus? Ou deveremos pelo menos exigir dos índios um pedido de perdão pela propagação da nicotina na Europa"?
Alexandre Ramos
Teresópolis,
26/4/2002
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