COLUNAS
Quarta-feira,
8/5/2002
Sylvia
Rennata Airoldi
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Desde o seu início, Teatro sempre foi convenção. Estabeleceu-se um jogo entre palco e platéia que vem se desenvolvendo dentro das regras (ou não), no decorrer do espetáculo. Durante o mesmo, um outro universo é sugerido: uma nova realidade que será (ou não) aceita pela audiência. O sucesso de cada sessão depende desse jogo, que deve ser jogado sem preconceitos ou sem distanciamento, até o fim. (Até o momento em que se apagam as luzes e os aplausos ecoam pelo espaço...)
"Sylvia" é uma peça que propõe um jogo muito estreito entre os atores e os espectadores. Isso porque mexe com o imaginário, que nós adultos muitas vezes nos recusamos a admitir como "realidade". A dificuldade talvez esteja em tratar o universo ficcional de maneira tão absurda e tão real, ao mesmo tempo. Confuso? Existem coisas que são mais difíceis de se explicar do que de se vivenciar. Quem de nós não teve problemas, crises intensas, que acabaram nos distanciando do mundo, propondo novas relações, fugas, amizades inusitadas?
A peça conta a história de um casal, que está junto há vinte e dois anos: Gil e Cátia. Gil está numa fase difícil de sua vida; um momento de poucas aspirações profissionais, poucas coisas a serem conquistadas, ou seja: uma crise de meia idade, uma andropausa. Por outro lado, sua esposa Cátia está num excelente momento profissional; também feliz por ter os filhos adultos e independentes. Nesse contexto é que surge "Sylvia". Apesar do nome de gente, Sylvia é uma cadela; encontrada por Gil numa praça. Encantado, ele não contém seus impulsos e a leva para casa.
Aqui começa a parte inteligente dessa comédia. Digo isso porque pensar numa atriz consagrada (como Louise Cardoso) comemorando 25 anos de carreira fazendo um personagem inusitado como esse (uma cadela) pode parecer, a princípio, patético ou até mesmo ridículo. Engana-se quem pensa isso ao ler a sinopse da peça nos encartes e jornais. Na verdade, é um trabalho minucioso, e muito detalhista, a transposição cênica dessa cadela-mulher ou mulher-cadela (depende do ponto de vista).
O olhar de Gil, sobre seu animal, acaba humanizando-o - a ponto de, muitas vezes, não notarmos a porção "cachorro" contida em Sylvia. Ela é a companheira que ele precisa para superar sua crise e uma nova motivação que, com toda a lealdade e ingenuidade canina, passa a ser os "olhos" e os "sentidos" de seu novo dono. Por outro lado, de maneira sutil, há sempre uma postura, um caminhar, uma reação inesperada em Sylvia, que revela o animal propriamente dito, o cachorro real que está em cena. A dedicação de Gil por sua "nova companheira" é cada vez mais perturbadora, principalmente na visão de sua esposa, que não compreende o porquê de tantos mimos e cuidados com um cachorro que ela não queria nem de presente.
Dessa forma, estabelece-se um triângulo amoroso: Gil, Sylvia e Cátia. O que determina as relações estabelecidas entre eles são os diferentes "olhares" dedicados ao animal. Enquanto Gil enxerga praticamente uma mulher em Sylvia, Cátia enxerga uma simples cadela, que está atrapalhando seus planos conjugais futuros. Na cabeça de Cátia, é preciso livrar-se de Sylvia... Nesse ínterim, há também outros personagens que "pontuam as cenas", trazendo novos "olhares" sobre o animal e sobre a sua relação com o ser humano.
Embora a tendência seja imaginar o contrário, os personagens "Sylvia" (Louise Cardoso), Gil (André Valli) e Cátia (Guida Vianna) entram em cena com uma interpretação bem naturalista. Tudo isso porque a cachorra é um reflexo do "olhar que seu dono" sobre ela. Assim, fica caracterizada essa brincadeira de gêneros. Como contraponto, Marcelo Saback, o quarto ator dessa trama, interpreta personagens oriundos do nosso meio social: um dono de um cachorro; uma amiga de Cátia; um terapeuta sem sexo definido. Todos bem caricaturados em cena. De construção cômica e trejeitos arquetípicos, eles levam o público facilmente ao riso. Aliás, como disse o próprio ator: seus personagens são "vermelhos" num universo que está bem "cinzento", devido à crise de Gil.
Apesar de "Sylvia" ser um espetáculo "off-broadway", a adaptação de Flávio Marinho não deixa resquícios do texto americano; pelo contrário. Graças à direção de Aderbal Ferreira, aceitamos com tranqüilidade com a confusão homem-animal, e terminamos refletindo sobre a nossa própria dificuldade em lidar com momentos difíceis através das fugas. Para completar, o cenário (de Gringo Gardia) e os figurinos (de Flávio Namatame) dão unidade, reforçando o aspecto de "jogo" e as brincadeiras com o imaginário do público.
Claro que há muito mais entre Cátia, Gil e Sylvia do que esta coluna pode desvendar. Porém, o que posso afirmar é que a crise de Gil é determinante para de encarar, de uma nova maneira, sua vida e suas relações. Assim, qualquer um que se habilite a embarcar nessa "comédia romântica", siga sem preconceito, sem medo de deixar o imaginário vir à tona. Vale ressaltar, ainda, o ato de coragem desses atores consagrados pela mídia, ao proporcionarem uma experiência que vai além do "naturalismo televisivo" da sala com cadeiras, do teatro "careta" que não arrisca, que não propõe nenhuma mudança de comportamento, que não deixa o espectador pensar, refletir e se transformar. Todos nós já nos deparamos (ou vamos nos deparar) com alguma "Sylvia" na vida; independente de sua forma física, um "ser" que - aparentemente inanimado - será, para nós, uma referência, um conforto, uma realidade.
"Sylvia" - de A .R. Gurney, adp. Flávio Marinho
Teatro Cultura Artística - Sala Rubens Sverner
R. Nestor Pestana, 196 / Fone : 3256-3616
Sex. e Sáb. 21 h e Dom. 18h
Rennata Airoldi
São Paulo,
8/5/2002
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