COLUNAS
Quarta-feira,
15/5/2002
Para além da coleção de receitas
Daniela Sandler
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Livro sobre comida não é só coleção de receitas. É um deleite deitar os olhos em textos que usam seus ingredientes para fazer mais do que listas e instruções. Nada contra estas, claro. Mas não são muito apetitosas como livro de cabeceira ou distração em dia de chuva. Na última vez em que levei um livro de receitas para a cama, acabei adormecendo com fome.
Por isso, sempre me animo com os títulos deste que é um nicho crescente no mercado de livros. Comercialismo à parte, o nicho é bem-vindo. Recentemente, li dois dos exemplares mais famosos por aqui – ainda sem lançamento no Brasil, embora já tenham sido resenhados em jornais brasileiros. Um dos títulos é Kitchen confidential, do chef Anthony Bourdain – quem já leu ou ouviu falar costuma identificá-lo como “aquele que explica por que não pedir peixe em restaurante na segunda-feira.” O outro é Comfort me with apples, da jornalista gastronômica Ruth Reichl.
Os dois livros são “romances de formação”. Em Kitchen confidential, Bourdain narra sua trajetória desde a pós-adolescência, quando foi trabalhar num restaurante apenas para pagar as próprias férias, até seu desenvolvimento profissional como chef de um dos restaurantes mais movimentados de Nova York. Comfort me with apples também começa no momento decisivo em que, quase por acaso, Ruth Reichl selou sua vocação de crítica gastronômica, aceitando um emprego numa revista para se manter enquanto a carreira literária não decolava, e descobrindo que sua carreira literária, afinal, estava na comida.
Literatura autocentrada
Não é à toa que os dois são autobiográficos. Muito da literatura sobre comida é baseada em memórias, experiências pessoais, viagens. Em The soul of a chef, por exemplo, Michael Ruhlman, observa e descreve a prática e as idéias de dois chefs norte-americanos: Michael Symon, do Lola Bistro, em Cleveland, e o célebre Thomas Keller, do restaurante French Laundry, considerado um dos melhores do país. Em O homem que comeu de tudo, Jeffrey Steingarten reúne crônicas sobre suas obsessões culinárias, experiências, amigos cozinheiros... E o livro mais recente de Bourdain, A cook’s tour, acompanha o chef em “aventuras” gastronômicas pelo mundo.
É de esperar que a literatura culinária seja autocentrada, ao menos em parte, já que a elaboração intelectual sobre a comida em geral vem depois da experiência pessoal de degustação. A vivência individual de um prato ou de um ingrediente é na maioria das vezes a fonte necessária das idéias, a base da inspiração e da informação. Críticas gastronômicas, por exemplo – a unidade mais “básica” da literatura do gênero –, são essencialmente relatos pessoais, memórias de uma visita a um restaurante, do que foi provado, como foi servido, do ambiente...
Claro, numa crítica de jornal, o foco é no recheio do relato – a reportagem, o objeto concreto. Nos livros – ou em colunas mais livres, como a de Nina Horta, na Folha de São Paulo – os autores colocam mais de suas impressões subjetivas, indo além da apreciação gastronômica e incluindo estados de espírito, anedotas, eventos de suas vidas.
Mas nem todo livro sobre comida precisa ser assim – há autores que abordam o tema com interesse mais filosófico ou histórico, tentanto talvez alcançar uma dimensão mais coletiva ou geral. Por exemplo, A cultura da comida, em que o historiador italiano Massimo Montanari narra os hábitos culinários europeus desde a Antiguidade, demorando-se especialmente na Idade Média. Montanari interpreta os modos de comer de acordo com sua significação social, cultural, econômica e até política, e destaca as implicações materiais e simbólicas desses hábitos, e como eles são afetados por eventos históricos ou naturais.
História do peixe
Mas as semelhanças entre Bourdain e Reichl param por aí. Bourdain faz o estilo garoto contando vantagem em bar; entremeia sua narração com gírias e várias “lições de moral” que repete inúmeras vezes, destilando sua “filosofia de trabalho”. Ainda que mostre sensibilidade e perspicácia na descrição dos tipos que povoam as cozinhas de restaurante (o mundo que habita), e ainda que a sua narrativa siga (mais ou menos) a cronologia de sua vida, a estrutura do livro é solta, quase caótica. Os eventos vão sendo servidos como um jantar profuso, mas não planejado. E, como num desses jantares, o resultado às vezes é delicioso – mas, muitas vezes, falta apuro e acabamento.
Sobram, no entanto, informações saborosas e histórias pitorescas. As tais denúncias dos “segredos inconfessáveis” do negócio, que muita gente achou que custariam a reputação de Bourdain entre seus colegas, por exemplo. No fim, a imprensa fez mais barulho sobre isso do que os colegas, que nem se importaram tanto – Bourdain ganhou mais prestígio, aliás, depois de publicar o livro. Ele mesmo disse que a “história do peixe” era um aspecto secundário do livro.
De fato, o livro é muito mais do que isso. Mais interessante é a caracterização do cotidiano e da carreira profissional dos cozinheiros. A obra vem a calhar, agora que a profissão está cada vez mais badalada, temperada pelo glamour que cerca os “chefes-celebridade” e difundida em cursos e faculdades que proliferam. Para quem sonha acordado em trocar um emprego árido num escritório pelo romance do avental, o livro não poupa advertências: a vida é dura, duríssima. Exige tempo, energia e dedicação quase totais, numa rotina massacrante e muito menos remunerada do que se imagina, impondo uma sobrecarga física e mental impressionante.
Se a falta de estrutura e a verborragia do autor não chegam a estragar o livro, há uma outra decepção: Bourdain é surpreendemente frustrante quando escreve sobre comida propriamente dita. Apesar de enumerar pratos, ingredientes, iguarias e preparos, o autor só consegue descrever a experiência de prová-los com expressões vagas e subjetivas como “delicioso” ou “maravilhoso” ou “melhor refeição da vida”. Não descreve formas nem cores, não caracteriza a textura ou consistência, não indica as sensações de paladar, os sabores, os aromas. O livro dá uma idéia muito vívida do que é ser cozinheiro, e ao chegar ao fim tem-se a impressão de ter percorrido o mundo das cozinhas profissionais junto com o autor; mas, paradoxalmente, não há cheiro de comida no ar, e a sensação final é de barriga vazia.
Se, por um lado, essa ausência do prato principal é desconcertante em se tratando de um chef, por outro ela reflete um pouco da própria agrura da profissão: passar quinze, dezessete horas diárias numa cozinha escaldante, trabalhando duro sobre tábuas de cortar, panelas ferventes e grelhas, e provando muito pouco das iguarias preparadas para servir no salão ao lado. De fato, em mais de uma ocasião, Bourdain escreve sobre as monótonas e humildes refeições servidas aos cozinheiros dos vários restaurantes onde trabalhou.
Filé de lesma
Ruth Reichl é o oposto. Claro, é crítica gastronômica por profissão – escreveu para o Los Angeles Times e o The New York Times, e hoje é editora de uma das melhores revistas culinárias norte-americanas, a Gourmet. Seu livro é generoso em detalhadas descrições de pratos, que capturam vivamente não só as suas propriedades físicas “objetivas” como também o gosto e as impressões de senso que a autora experimentou. Uma das qualidades de um crítico gastronômico é o seu poder de evocar essas sensações no leitor, e não são muitos os que conseguem – boa parte fica apenas na resenha técnica, julgando o ponto da carne ou o preparo do risoto.
Ainda que isso dê uma idéia teórica sobre a competência (ou não) de um restaurante, acaba soando como jargão, linguagem de experts em que devemos acreditar e que devemos seguir, sem saber direito o que significa. Mas alguns, como Reichl, conseguem dar ao leitor a idéia de por que e, mais importante, de como um prato é bom ou ruim. A beleza disso é que, além de entender a avaliação da crítica, o leitor aprende com seu texto a incorporar os critérios de avaliação e a julgar por si próprio.
Além disso, Reichl é uma escritora meticulosa. A seqüência de seu livro é cuidadosamente preparada e organizada, ainda que nem sempre aparente à primeira vista. Essa estrutura tem uma função: prepara o terreno e constrói uma crescente intensidade dramática, com direito a clímax e desenvolvimento de personagens, tecendo uma novela – e das boas – sob a trama das memórias da autora. Não admira que ela tenha pensado em ser romancista. O livro leva ao riso e ao choro, tem passagens emocionantes, faz o leitor se angustiar, enraivecer, vibrar e se surpreender junto com Ruth, a narradora/protagonista. Do mesmo modo como ela aproxima o leitor dos pratos que experimenta, ela convida seu público a seguir com ela em suas aventuras pessoais.
O texto de Reichl é polido, preciso e conciso – diferentemente de Bourdain. Seu ponto fraco está em alguns dos episódios que narra em crescendo, em que tenta reproduzir sua tensão emocional e o momento final de surpresa, alívio ou decepção com que cada um desses episódios termina. O problema é que Ruth capricha demais na construção da cena, usando os mesmos recursos com os quais evoca vivamente as comidas; mas a descrição é tão elaborada que acaba ficando aparente. Dá para adivinhar o final de cada uma dessas anedotas, especialmente depois de ler a primeira: a estratégia fica aparente nas outras.
Mas esse é um pecado menor numa obra excelente, gostosa de ler, sensível e significativa. Sim, significativa: pois, como Ruth sugere e demonstra, gastronomia não é simplesmente um acessório cosmético à necessidade biológica de comer. A importância da comida vai além de sua utilidade física para a nossa sobrevivência e toca em pontos fundamentais de nossa vivência emocional e intelectual.
Ela oferece passagens memoráveis, em que narra a experiência “mística” de um etéreo macarrão com limão; a aventura de desvendar comidas exóticas, como filé de lesma e salada de água-viva; e o conforto precioso e essencial de um camarão com curry feito em grupo para uma dezena de amigos. E, para completar, cada capítulo tem uma ou mais receitas que não só permitem ao leitor reproduzir (ou tentar) as comidas provadas por Ruth, como também – o que talvez seja mais importante – prolongam o prazer do próprio livro, permitindo reviver a experiência literária mesmo depois de virar a página.
Daniela Sandler
Rochester,
15/5/2002
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