A humanidade nunca soube lidar muito bem com o acaso. A inconstância das chuvas na época do plantio, um eclipse solar ou o nascimento de uma criança coberta por um pelico são exemplos de manifestações naturais mal recebidas, porque incomuns, por fugirem do ciclo natural e eterno de todas as coisas. Desde os tempos primordiais registra-se a existência de sacerdotes, adivinhos, oráculos, astrólogos, todo o tipo de gente que, de maneira mais ou menos científica, mais ou menos espetacular, se propunha a ler e traduzir para seus conterrâneos a linha do destino, através da disposição de astros no firmamento, das entranhas de um bode ou dos... acontecimentos extraordinários.
É nas tentativas de interpretar, compreender ou, ao menos, assimilar esses acontecimentos que muito da História se escreveu, evoluindo de oferendas de víveres aos deuses às listas de F.A.Q. dos softwares. O advento dos tempos modernos bagunçou o coreto, criando interferências onde a lei de explicação dos fenômenos já não era genérica. Escritores como Paul Auster, Kafka e Ionesco exploraram em seus escritos as interferências do acaso no cotidiano, a lógica do absurdo, chegando ao limite último da fantasia, quando não é mais possível separar verossimilhança de verdade. O que nos leva ao Laerte.
Ou, para os menos íntimos, Laerte Coutinho. O criador dos Piratas do Tietê. O autor das tiras em quadrinhos do Condomínio. Da Gata & Gato, do Fagundes, o puxa-saco, do Síndico, do Zelador, do Don Luigi. O Laertón de Los 3 Amigos, junto com Angel Villa, Glauquito e Adón, porque todo trio que se preza tem sempre um quarto elemento, o fator Dartagnan. O que faz o Overman. Laerte, gente: o que fazia histórias em dupla com o Glauco, na revista Geraldão; o que desenhava para a Chiclete com Banana. Um que foi premiado em todas as edições do troféu HQ Mix. Tá bom, vou apelar: Laerte, aquele que era redator da TV Colosso...
Nesse começo de ano o Laerte lançou não um: dois álbuns com compilações de seu trabalho, raridades sem preço em um país que demora décadas para colocar lombada e papel couché em histórias que tiveram que se submeter ao jugo do papel jornal para chegar mensalmente ao leitor, com as originalíssimas visões do autor para os inesperados sucedâneos do acaso.
O primeiro, Histórias Repentinas, foi editado pela Devir, importadora e distribuidora de gibis paulistana, desde o começo incentivando a Hq nacional; o segundo, Deus 2 - a Graça Continua, com seleção das tiras diárias centradas nesse personagem que ficou tão divertido sob a pena do Laerte.
Histórias Repentinas é o melhor dos dois lançamentos por vários motivos: encerra histórias longas, onde o artista pode demonstrar mais vigor, ousadia e criatividade no desenvolvimento de suas idéias (ao contrário da urgência da tira); compila contos da época em que Laerte ainda produzia trabalhos mais longos, algo que não acontece há 10 anos (com honrosas exceções para o site Cybercomix, como A Vida, a Morte e outros Detalhes ou As Aventuras Rocambolescas de Dionísio Galalau, essas, no entanto, para serem lidas na tela do computador); reúne uma seleta dos trabalhos que não envolviam personagens fixos, ou seja: algumas de suas melhores páginas.
Como no mundo dos super-heróis, nada é muito seguro ou muito estável no universo das Histórias Repentinas. Porque se tratam de coisas especiais que acontecem a pessoas comuns: um belo dia você acorda e... não, nada disso de se transformar numa barata - você descobre que estão nascendo penas no seu braço; penas que, aos poucos, vão te permitir voar, como na Hq "Penas". Em "Crise", um alto funcionário a caminho de uma palestra, assediado por repórteres, se toca que está sem calças - estranhamente, ninguém nota esse pequeno detalhe. O inesperado está de tocaia em cada esquina, como o caçador que procura um leão num bar em "O Dia da Caça", e nada parece muito razoável, ainda que seja tudo seja coerente dentro de seu prório sistema. Ao contrário de Kafka, Ionesco e até Auster, a tônica, o gênero em que essas histórias se enquadram é o humor, linguagem universal e fator determinante escolhidos por Laerte para desenvolvê-las: "Ela tem que provocar a reação humorístico-cabeçuda que lhe cabe, sendo que nem sempre isso significa arrancar gargalhadas." Como se percebe, nem sempre o que há é um pastelão estilo irmãos Marx; outrossim, é o uso do humor como instrumento de reflexão e até de qualidade: "Tenho um critério que faz com que só fique satisfeito se a compreensão pelo leitor está dúbia. De certa forma, jogo com coisas que poderiam ser óbvias, mas não são." Sacou?
Se há uma crítica a se fazer de Histórias Repentinas, é a escolha do conteúdo, porque o álbum repete três hstórias das que já tinha ganho edição de luxo em Piratas do Tietê e Outras Barbaridades (ed. Ensaio, 1994). Que uma delas seja "A Insustentável Leveza do Ser" é razoável, já que muita gente a considera a melhor história do Laerte e uma das melhores em quadrinhos da década de 80, mas é inaceitável que se queime chances raras assim.
Deus 2 - a Graça Continua é a segunda compilação das tiras diárias que Laerte produz centradas em... Deus. Aqui, antes de mais nada, o que se deve notar é a extrema ousadia em entrar no terreno do sagrado com seu humor: por muito menos do que isso Angeli e Adão Iturrusgarai sofreram com cartas de leitores, ombudsmen, editores e todos as discussões sobre censura, liberdade de imprensa e até onde se pode fazer humor que pipocam nessas horas. Na 2ª Bienal Internacional de Quadrinhos, em 1993, uma mesa redonda com Ziraldo, Wolinski e Chico Caruso (duas influências assumidas e um contemporâneo de Laerte) durou umas 3 horas para não chegar à conclusão nenhuma se o humor deveria ter limites. Dois anos depois, na Bienal do Livro, Laerte afirmaria que a pergunta é estúpida, porque não haveria sentido na noção de limites quando se fala em humor. Essa é a impressão que fica quando se pensa em uma tira humorística cujo personagem central é Deus, uma das grandes forças atuantes na equação do acaso.
Mas que ninguém pense que o Laerte partiu para a ironia absurda de um Crumb, ou para o ceticismo não-arreda-pé de um Millôr; sua linha é mais suave, divertida, quase poética, talvez por isso mesmo angariando adeptos mesmo entre os religiosos - Frei Betto é quem fez a introdução da primeira coletânea (Deus segundo Laerte), cujas palavras merecem a citação: "O que Laerte faz é um santo humor. Livra-nos daquela imagem de um Deus carrancudo, mal humorado, provedor do inferno, para nos aproximar da imagem evangélica que Jesus nos passa: Deus é amor, mais íntimo a nós do nós a nós mesmos, como dizia Santo Agostinho. Portanto, se brincamos com tudo o que nos é íntimo, porque excluir Deus de nosso bom humor e carinho?"
Assim, O Deus segundo Laerte é democrático, deixa que Seus moldes de barro escolham qual sexo e acessórios adicionais preferem; aceita o conselho de uma samabaia ao fazer o Sol nascer no leste e se pôr no oeste; é divertido: usa o imenso genoma apenas para despistar, porque sabe que o segredo está no barro, e tira uma horinha para uma pelada com os anjos entre dois momentos na criação do mundo. Se vale de Sua onipotência mais para comer um churrasco grego na rua do que para ajudar uma escola de samba a subir para o primeiro grupo - afinal, sabe que não basta ajudar a empurrar o carro alegórico, os outros têm que tratar de rebolar. Não suporta o barulhinho da broca do dentista e sabe que ano que é ano só começa lá para Março. Dá um pulo na praia mas nem ali consegue evitar de ouvir Seu Santo Nome em vão, quando passa aquela pequena de canga roxa...
Os melhores momentos de Deus 2 se passam, como nos filmes médios, com coadjuvantes: Gabriel Talk Show é o programa de entrevistas do anjo que não consegue evitar que o Diabo lhe engane nas respostas; São Pedro, um gozador celeste; Expedito, quase uma espécie de super-herói dos santos, sempre atarantado com as causas urgentes, e, claro, a antítese, o Diabo, que protagoniza uma dos momentos mais engraçados, quando empresta uma fantasia vermelha de si mesmo para Deus ir pular o carnaval disfarçado, enquanto ele mesmo vai de camisolão e terceiro olho... Embora confinado ao espaço-tempo de quatro quadros e destinado à forrar o chão de aposentos que serão pintados amanhã, as tiras de jornal de Laerte, que ganham uma sobrevida com a impressào desses álbuns, são uma conjugação exemplar dos dois elementos mais poderosos que a humanidade utilizou para lidar com as invenções do acaso: o humor e a religião.
Olá, Rafael
Sou leitor do Laerte há muito tempo e fiquei contente em ler a coluna de hoje. O Laerte é uma fera mesmo. Enquanto lia esse texto fui me lembrando de diversas tirinhas. Por exemplo:
Gato: Mas por que eu preciso saber onde fica o ponto "G"?
Gata: Prá saber o que fazer na hora "H".
Gato: E o que eu tenho que fazer na hora "H"?
Gata: Botar os pingos nos "I"s.
E o Fagundes digladiando com o seu mais feroz concorrente, um sujeito chamado Alceu Dispor, e o Síndico dizendo que jamais enconstaria o dedo numa criança para depois colocar o pé para que um menininho tropeçasse na escada, e o General dizendo "o importante não é vencer, mas humilhar o derrotado". O Laerte é uma usina de criação, um humorista fino, um cara que tem "sacadas geniais" no mesmo nível de um Aparício Torelli.
Abraço e parabéns pelo texto.
Rogério: nas tiras do "Condomínio", Laerte conseguiu repetir um feito de alguns poucos humoristas, criar piadas que passaram para o domínio público. Mas se você acha ele fera, devia ler os quadrinhos do Luiz Gê, de quem o Laerte tira suas piadas (veja a entrevista ao CyberComix...)
Obrigado pela dica, Rafael.
Já tinha ouvido falar no Luiz Gê, mas nunca fui atrás de ver o que o cara tem a dizer. Vou passar por lá e dar uma conferida. Se tiver desenho dele, melhor ainda.
abraço
Rafael,
Gosto muito de ler o Digestivo, mas vez por outra, por uma razão ou outra, me "afasto" daqui...
Sempre que retorno, depois de visitar os Digestivos do Júlio, vou ler sua coluna. Hoje foi um destes meus dias de "retorno". E renovei o prazer de ler o que vc escreve. Sempre elegante, inteligente sem afetação e, acho que esta é uma das suas principais virtudes, instigante. Já perdi a conta das coisas que resolvi conhecer melhor depois de ler uma coluna sua. É um prazer estar de volta e "encontrar" você. Beijos,
Ana.