COLUNAS
Terça-feira,
4/6/2002
O limite de um artista
Lucas Rodrigues Pires
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O mais interessante em Onde a Terra Acaba é que, quando você vai pensar sobre o filme, acaba por imaginar algo sobre outro filme. Impossível discernir Onde a Terra Acaba de Limite. O documentário de Sérgio Machado traz a semente deste e de seu autor, Mário Peixoto.
Sérgio Machado entrou em contato com a obra de Mário Peixoto ainda na faculdade. Queria fazer mestrado sobre Limite. Sua vida mudou quando um média-metragem (Troca de Cabeça) por ele dirigido chegou às mãos de Jorge Amado. O escritor gostara da obra e dissera que o ajudaria. Alguns meses depois, Machado recebia ligação de Walter Salles para marcar um encontro. Idas e vindas, cruzaram-se numa das edições da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Final da história: o mestrado foi esquecido e Sérgio Machado iniciou uma parceria com o diretor de Central do Brasil e sua produtora, a Videofilmes, pelos quais se inteirou do Arquivo Mário Peixoto e concebeu Onde a Terra Acaba. O mestrado sobre Limite se transformaria num documentário sobre Mário Peixoto.
Limite
Uma das frases que abre Onde a Terra Acaba pode ser encarado como o cerne de Limite e de toda a trajetória de Mário Peixoto. "A realidade para mim não tem consistência. A imaginação sim, substitui tudo e convence - aliás, é só o que existe para mim. Vivo dela porque é o que verdadeiramente me faz vibrar". Tirado de um romance do autor (O Inútil de Cada Um), introduz o espectador nessa rede de metáforas e inversões formais que se tornou o pensamento peixotiano. Literatura em forma de filme, arte sensorial pela visual, o âmago de Limite envolve o tempo e sua fugacidade. A realidade é crua e cruel; o tempo a consome rapidamente e sem misericórdia. Daí a imaginação substitui-la; domável, pode ser moldada a nosso gosto e prazer, sem interferência externa e mesmo inatingível pelo poderoso e incansável tempo. Assim como Lavoura Arcaica esbarra na inevitabilidade do escoamento do tempo, Limite e Mário Peixoto, sem palavras e apenas com imagens, explicitam a necessidade do homem de saber conviver com seu tempo. Escreveu Raduan Nassar em Lavoura Arcaica: "O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora inconsumível, o tempo é nosso melhor alimento. Sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza. Não tem começo não tem fim. Rico não é o homem que coleciona e se pesa num amontoado de moedas. Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo". Peixoto, já em 1930, levantava essa questão do tempo trazendo três náufragos e suas histórias particulares. Com muito mais pessimismo e não diretamente tratando do tempo em si. Saulo Pereira de Mello, o grande especialista em Limite, lembra da importância das tomadas longas para caracterizar a limitação do homem e sua profunda solidão frente ao imponderável tempo - outra temática do filme. "...tudo é inútil, ele nos diz: fugir da prisão, costurar, andar; fazer compras, gerir um lar, ter uma mulher, amar. Caminhamos apenas, eternamente - e para o barco, o vento sempre nos sussurrando que tudo é inútil e que não fugiremos à 'moagem do tempo'" (in Mário Peixoto: Escritos sobre Limite, pág. 167)
Limite tornou-se marco da cinematografia nacional. Nunca um filme foi tão falado e reverenciado, mas pouco visto como ele. Mário Peixoto finalizou-o com recursos próprios em janeiro de 1931, com a primeira exibição realizada em 17 de maio. É uma obra do cinema mudo, os atores não têm voz, apenas a música de fundo, retirado de peças clássicas, a embalar os ouvidos.
(Sérgio Machado em foto de Baru Matos.)
Para a elaboração de Onde a Terra Acaba, o documentário, Machado precisou fazer uma extensa pesquisa sobre vida e obra do cineasta durante dois anos. O roteiro está montado sobre trechos de diários, entrevistas, romances e cartas redigidas pelo próprio Mário. Querendo ou não, o que Machado fez foi uma homenagem a um cineasta que só conseguiu terminar uma única obra, tendo seus projetos subsequentes fracassados em diferentes aspectos. Alia-se a isso uma nova visão sobre o que viveu Mário Peixoto. O diretor deixa claro que quis contribuir para a compreensão do ser humano Mário Peixoto. Ninguém pode querer em pouco mais de uma hora decifrar a vida de um homem, ainda mais um tão enigmático quanto o autor de Limite. Machado, como admirador e apaixonado pelo filme, contribuiu com a visão de um fã. "Fiz o filme como um apaixonado por Limite. "Não acredito que faria melhor com a tal neutralidade que muitos cobram de um diretor", confessou em entrevista ao Digestivo. "Onde a Terra Acaba pode ser encarado como uma homenagem e um acerto de contas para com a obra de Mário. Ele não fez apenas Limite, tem uma produção literária muito extensa, especialmente de poemas".
Onde a Terra Acaba também seria o nome do filme que Mário Peixoto escrevera para a musa Carmem Santos. Quando das filmagens de Limite, Carmem procurou Mário e afirmou querer trabalhar num projeto em conjunto. Queria que ele escrevesse uma história e a dirigisse. Mário aceitou, mas pediu à atriz que fizesse uma ponta em Limite. Ela aceitou e ainda emprestou seu laboratório para que o filme fosse finalizado. No mesmo dia Mário escreveu um esboço para apresentar a ela. Com o título de Sonolência, os produtores acabaram por trocá-lo para Onde a Terra Acaba, por ser mais comercial que aquele.
Antes mesmo de estrear Limite, a mesma equipe que o realizara (Mário Peixoto, Edgar Brazil - o fotógrafo; Brutus Pedreira - produtor e ator) partira para a Marambaia a fim de iniciar as filmagens dessa nova empreitada. Passadas semanas, Carmem Santos e Mário Peixoto se desentenderam em razão de constantes ausências da atriz, decorrentes de problemas particulares. Isso acabou por precipitar e arruinar a idéia do filme, que ficou inacabado e, no ano seguinte, a mesma Carmem aproveitaria a publicidade dada a ele para filmá-lo com outro diretor (além de fracasso total - tendo ficado apenas três dias em cartaz -, o rolo se perdeu num incêndio na década de 40). Mário se abateu e nunca mais filmou, apesar de tentativas futuras em parceria com Pedro Lima, como em 1937 com Maré Baixa.
Metalinguagem em tema e forma
Onde a Terra Acaba constitui-se num exercício metalingüístico. São 75 minutos, 85% com imagens de arquivo (vídeo e fotografia) em preto e branco, narração de Matheus Nachtergaele, que assume o papel do próprio Mário, em primeira pessoa, em alguns trechos (o período que esteve na Inglaterra é narrado pelas palavras de um diário que Mário escrevera na época), e música circular e atemporal de Antônio Pinto. Ingredientes para algo monótono, mas o que acaba sendo é uma obra lírica de extremo cuidado, poético como Mário Peixoto e lírico como Limite. Machado teve total preocupação de criar uma obra a partir de outra pré-existente. Para tanto, incorporou a proposta de Limite para filmar suas próprias cenas. As nuvens em nítido movimento que abrem e fecham o filme ou as ondas que chegam à praia e se desintegram como bolhas de sabão remetem o espectador que já tenha contemplado Limite a todo o universo deste. Tudo no mais nítido preto e branco, apenas os depoimentos atuais (Cacá Diegues, Walter Salles, Nelson Pereira dos Santos, os caseiros do Sítio do Morcego etc) receberam coloração.
A estrutura de Onde a Terra Acaba se apóia no didatismo e no tempo cronológico. Parte de uma minibiografia do autor, inicia-se de fato com a temporada londrina de Mário, em 1929, o ápice com as filmagens de Limite, o fracasso de Onde a Terra Acaba e, finalmente, o autor recluso no Sítio do Morcego, artista magoado e incompreendido, pássaro ferido em pleno vôo que se retira para evitar um mal maior.
Um Orson Welles tropical?
Talvez Onde a Terra Acaba tenha marcado a vida de Mário Peixoto tal qual It's All True marcou a carreira cinematográfica de Orson Welles. O gênio precoce do cinema americano, enviado ao Brasil e ao México pelo governo americano para realizar um documentário que exprimisse a boa vizinhança entre as Américas, ficou marcado como irresponsável e pródigo, incapaz de administrar um projeto cinematográfico. Depois desse episódio, em que deixou inacabado por pressão dos produtores, mas com belas imagens do carnaval carioca e de jangadeiros do Ceará (há em vídeo o filme inacabado), Welles não conseguiu autonomia para filmar e escassamente finalizou suas idéias. Claro que não se pode dizer que Welles seja mesmo esse "moleque" como muitos críticos o pintam. Apesar de reconhecido seu talento, esse outro lado de Orson "Kane" Welles permanece a perseguir sua obra. Mário Peixoto é o realizador de Limite, considerado o mais importante filme do cinema brasileiro, assim como Orson Welles o é de Cidadão Kane, o mais influente filme do cinema mundial.
Outra semelhança entre trajetórias tão opostas decorre do fato de Welles ter realizado Cidadão Kane com dois parceiros: o diretor de fotografia Gregg Toland e o roteirista Herman Mankiewicz. Muitos estudiosos creditam a genialidade de Cidadão Kane a estes dois colaboradores. Mankiewicz nos toques sobre a vida de Hearst - personagem real em que se baseia a trajetória de Charles Foster Kane; Toland na excepcional e inovadora câmera, que buscou ângulos inusitados além de criar a impressão de grandiosidade com o achatamento do teto sobre o personagem.
Peixoto contou com a ajuda de Edgar Brazil para realizar Limite. Brazil era um fotógrafo nascido na Alemanha com carreira no Brasil. A dúvida sobre o quanto de fato Brazil fez em Limite recai também sobre a pouca idade de Mário, um jovem de apenas 21 anos (outra semelhança com Welles, que tinha 25 anos quando debutou no cinema; ambos fizeram obras definitivas logo na estréia). Claro que aqui a dúvida é bem menor, pois Mário idealizou o roteiro e pensou cada plano de seu filme. Ele mesmo afirmou que fez Limite como queria, e que tudo que buscou dizer estava lá.
Cogitaram que Welles, inconscientemente, não filmou mais nada com independência porque sabia não poder criar nada melhor que Cidadão Kane. O documentário de Sérgio Machado chega a levantar a mesma suspeita sobre Mário, citando que, na década de 70, com a possibilidade de filmar com Ruy Selzberg, ele teria exigido Roberto Carlos e Brigitte Bardot como protagonistas da história...
Enfim, são opiniões bem radicais, que colocam em xeque mesmo o talento de cada um deles. Querendo ou não, ambos os diretores fizeram o que tinham em mente e realizaram seus filmes, marcados definitivamente na história do cinema.
A justa medida das coisas
Onde a Terra Acaba busca levar ao público um pouco do que foi e fez Mário Peixoto. 70 anos depois de Limite, o filme continua mítico e reverenciado por cineastas brasileiros. O mais explícito é Walter Salles. Abril Despedaçado dialoga constantemente com o grande clássico do cinema mudo nacional, seja em ritmo, tomadas ou referências na história (o nome da família dos Breves vem do sobrenome do meio de Mário). Sérgio Machado confirmou essa intenção de Walter Salles para com Abril (Machado foi co-roteirista do filme) e também para Central do Brasil: "Nos festivais que participou com o Central do Brasil, antes das entrevistas o Waltinho pedia aos jornalistas que assistissem ao Limite. Aqueles que viam ficavam malucos com o filme e queriam saber mais sobre seu autor". Realmente, Abril Despedaçado busca esse paralelo e homenageia Peixoto, colocando em primeiro plano a questão do tempo de cada um - sua frivolidade e inconsistência.
Em certo momento de Lavoura Arcaica, Nassar diz que "só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas". Se o tempo foi implacável com Mário Peixoto, para com sua obra ele se mostra, enfim, justo. Quanto mais envelhece, aumenta o reconhecimento de Limite como obra de arte. Nas palavras de Nelson Pereira dos Santos, sobre Mário Peixoto e Limite: "um jovem talentoso com total liberdade de criação". É assim que se faz arte, com talento e liberdade. O resto é produto e não arte.
Lucas Rodrigues Pires
São Paulo,
4/6/2002
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