COLUNAS
Segunda-feira,
23/4/2001
Um escritor na cidade Fantasma
Paulo Polzonoff Jr
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Há sete anos um dos mais importantes jornalistas culturais brasileiros chegou a Curitiba, sob uma avalanche de ovações. Naquele tempo ele era, de certo modo, a encarnação perfeita do marketing da cidade, que atraía para a Capital Ecológica mais do que turistas ocasionais, empresas interessadas nos incentivos fiscais e bóias-frias fugindo da decadência do campo. José Castello era a prova de que Curitiba poderia atrair também certa nata da inteligência brasileira, que para cá vinha respirar o ar puro dos parques urbanos.
Sete anos passados, o autor de O Poeta da Paixão, biografia de Vinícius de Moraes, resolve se aventurar pela ficção e sente já o peso da cidade que escolheu para viver. Ainda mais em se tratando de um livro, Fantasma, que faz severas críticas não só a Curitiba quanto a seu ídolo literário maior, Paulo Leminski. Hoje, os detratores não poupam esforços para considerar Castello como um estrangeiro para o qual as coisas condizentes com o Paraná não lhe dizem respeito. Outros afirmam que o livro de estréia de Castello não passa de uma tentativa frustada de um jornalista entrar no mercado editorial como ficcionista - a mesma ladainha leite-quente de sempre.
Fantasma foi escrito para integrar uma série de ensaios encomendado pela editora Record, que deveria tratar das maiores cidades brasileiras. O ensaio, no entanto, não agradou a Castello. "Ia ser um ensaio extremamente pessoal. Aos poucos percebi que não tinha o que falar. Enquanto isso, o personagem do arquiteto foi ganhando dimensão em minha cabeça. Falei com a editora e o que era para ser um ensaio acabou por virar um romance", explica.
O tom ensaístico, contudo, permanece neste Fantasma. Não faltam considerações sobre a cidade que Castello escolheu para viver, tampouco. Isto, contudo, não desagrada ao autor. Para José Castello, o tom ensaístico do romance permanece não só pelas considerações que faz a respeito da cidade. "O tom de ensaio se mantém primeiro porque o arquiteto faz várias considerações sobre o gesto maluco de ter destruído o livro sobre Curitiba, escrito anteriormente. Fantasma é, ainda, um livro sobre o fracasso, inclusive, do ensaio como gênero. Porque o ensaio é algo meio em aberto, que arrisca opiniões pessoais, deixa o autor cada vez mais livre para tecer considerações despretensiosas. Paradoxalmente o ensaio se esforça para ser lógico. Em Fantasma, o arquiteto faz um esforço para ser lógico - e eu uso isto como contraponto a Leminski -, o que o acabou aproximando ainda mais da cidade".
Um dos problemas de um jornalista dar uma "guinada literária" em sua carreira são as inegáveis considerações dos críticos ressentidos, que sempre o tratarão antes como repórter do que como literato. No caso de Castello, isto se complica ainda mais porque o autor dedicou anos de sua carreira a tecer comentários - às vezes nada lisonjeiros - a obras alheias. Esta vulnerabilidade, contudo, parece não incomodar José Castello. "Por escrever crítica - acho que não escrevo, mas dizem que escrevo, então está bom, escrevo -, estou sempre nesta posição de dar a outra face, afinal, fiquei meio vulnerável, teve muita gente que ficou ofendidíssima com o que escrevi - e devo ter escrito muita bobagem mesmo", ressalta, mostrando uma humildade nada típica dos intelectuais.
O que não é uma situação tão incomum assim na literatura brasileira. O próprio José Castello cita Silviano Santigo, crítico que volta e meia escreve romances e versos, e que é combatido por isso, como se sua atividade literária fosse algo menor, feita entre o almoço e o café da tarde, a título de distração. Outro exemplo seria o do compositor Chico Buarque, visto por nove entre dez críticos como um mero músico que se "atreveu" a escrever romances. "Para ser sincero, não estou preocupado com isso. Isto não vai afetar minha relação com o trabalho que faço e que pretendo fazer. Tenho idéias rascunhadas para mais duas narrativas grandes. Aos poucos, acho que as pessoas tendem a se acostumar com o José Castello romancista. É natural", afirma, seguro.
A pecha de biógrafo - José Castello escreveu sobre a vida de Vinícius de Moraes, Rubem Braga e do poeta João Cabral de Mello Neto - parece perseguir o agora romancista. Ainda mais porque o "grande" (muitas aspas, por favor) nome da literatura curitibana, o intocável Paulo Leminski, é um dos personagens de seu Fantasma. "Uma biografia do Leminski vai mesmo sair, mas não é um trabalho meu. Não estou preocupado se as pessoas estão esperando uma biografia do Leminski escrita pelo Castello. Fantasma, insisto, é um romance".
O grande mérito deste Fantasma parece ser mesmo o de cutucar a fama de cidade-paraíso que Curitiba carrega e que é divulgada aos quatro ventos inclusive pelos próprios curitibanos. Desde Dalton Trevisan alguém não ataca tão cruelmente a fama de cidade-modelo que Curitiba ganhou à força dos publicitários oficiais. Para surpresa geral, porém, Castello diz que não está havendo uma contra-reação - a não ser o silêncio com que tratou o livro a imprensa local. Pelo contrário, já que uma grande parcela da população atual da cidade é de "estrangeiros" (pessoas que para cá migraram nos últimos dez anos). "O estrangeiro, num primeiro momento, fica deslumbrado com Curitiba, por isso assume o lado curitiboca da cidade. Fica encantado. O marketing está infiltrado em tudo, e isto inebria. Nestes sete anos que estou aqui amadureci e a minha visão da cidade mudou. Entendi este vazio de que o Leminski falava. Hoje, mais do que no tempo dele, Curitiba tem um aspecto pós-moderno, artificial. Com o passar do tempo começa-se a entender que atrás desta fachada existe um vazio que persiste dentro da Curitiba pós-moderna. Curitiba está dentro do Brasil, é uma metrópole que sofre influência da periferia como todas as outras metrópoles brasileiras", disserta o escritor.
Por fazer muitas referências a elementos da cultura curitibana, Fantasma preocupa, porque pode afastar, de modo até inconsciente, o leitor do resto do Brasil. Isto é o que poderia se esperar, uma vez que outros escritores que escreveram sobre a "cidades das araucárias" foram quase que sumariamente ignorados no resto do País. Castello, contudo, se diz surpreso com a aceitação de Fantasma no restante do Brasil. "Os leitores ficam surpresos com o marketing curitibano Claro que há certas dificuldades, como a de visualisar certas coisas, como uma estação-tubo, mas se acaba entendendo que é uma coisa modernosa, não chega a atrapalhar a leitura do livro. Talvez a torne até mais interessante. Porque vai colar menos o real à realidade", especula.
Estilisticamente, pode-se dizer que Fantasma é um livro anacrônico. Anacrônico porque prolixo. Numa época em que a moda em literatura é a economia in extremis de recursos lexicais, José Castello usa e abusa das palavras e das considerações sobre absolutamente tudo. Isto se deve, em parte, à própria personalidade do narrador. "O arquiteto é um obsessivo, um analista, e seu raciocínio é labiríntico, o que o aproxima da cidade, que segue vários caminhos sem chegar a lugar algum", analisa Castello. Alguns amigos, que puderam ler Fantasma ainda nas provas, advertiram o autor para a prolixidade do narrador. "Me disseram que era um 'livro antigo'", desdenha. O objetivo de Fantasma, explica Castello, é mesmo este: ir contra os cânones do modernismo brasileiro. "Me cansei da ditadura do haicai, do modernismo absurdo que não permite a prolixidade. Na poesia, isto chegou às raias do absurdo. Vou contra isto", impõe-se para, em seguida, ser tachativo: "Mais do que com palavras, escreve-se com pensamentos, por isso me preocupo em pensar tanto no que escrevo". Uma raridade.
Em meio à intelligenstia curitibana, José Castello, apesar de estar aqui há tão pouco tempo, já criou algumas inimizades. Resenhas negativas de livros de escritores locais, por exemplo, geraram falsas polêmicas e caras feias. "Isto é provinciano, coisa própria de Curitiba. Tenho grandes amigos de que discordo em quase tudo. Isto dá tesão. Em Curitiba, pelo que estou entendendo, aqui prevalece o pensamento do "quem-não-está-comigo-está-contra-mim", ou seja, aqui todos os escritores têm de viver numa espécie de orgasmo intelectual contínuo".
Para dar um exemplo da boa-convivência intelectual, Castello cita o queridinho da literatura paranaense da hora: Valêncio Xavier. "Pensamos coisas completamente diferentes, mas isto não impede que tenhamos uma relação afetuosa. Isto é uma coisa no mínimo sensata. Não sou dono da verdade, quando digo uma coisa hoje posso mudar de opinião amanhã", reflete. "Odeio estas pessoas que criticam o Fernando Henrique, por exemplo - e eu tenho sérias restrições políticas ao FHC -, pelo que ele escreveu na década de 60 e faz hoje, quando presidente. Ele mudou, talvez para pior, mas o fato de mudar, em si, é positivo", continua.
Sobre o assunto da hora, o empobrecimento da crítica, José Castello tem uma visão bastante cética. Para ele, o fim do pensamento prolixo de um Otto Maria Carpeaux ou Gustavo Corção não tem a ver com um "emburrecimento em massa", como apontam os catastrofistas. "A crítica da época de Carpeaux não era profissional. Na década de 70, ela foi se profissionalizando. Depois surgiram os resenhistas e a crítica tornou-se algo ligado à Universidade, aquela coisa hermética, cifrada. Como contraponto, nos últimos anos surgiu a resenha, cuja responsabilidade foi dada a jornalistas. A crítica não acabou; se transformou. É verdade que a crítica praticada na imprensa se nivelou pela média, empobreceu junto com a imprensa de um modo geral, esta besteira de notícias compactas. A crítica foi perdendo qualidade. Não há mais espaço para reflexões".
Hoje, além da carreira de romancista, José Castello envereda pela crônica semanal, um gênero que vez ou outra é dado como morto. Para Castello, contudo, a crônica fascina justamente por ser um gênero que não é exatamente um gênero. "A crônica nasceu quando os jornais resolveram dar um espaço, um quadrado qualquer, para pessoas que supostamente sabiam escrever, escreverem sobre qualquer coisa. O legal da crônica é que é um espaço ligado à experimentação, mais do que em qualquer gênero", conclui.
Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro,
23/4/2001
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