A guerra está por trás de tudo quanto é divertido neste mundo. Jogos, por exemplo - xadrez, pingue-pongue, futebol, buraco - são obviamente formas ritualizadas, estilizadas, de guerra. A ciência é uma guerra contra a burrice; a medicina contra a doença; a arte contra o clichê. Toda história é a história de uma guerra, que passa a receber o nome de Conflito - o protagonista em conflito consigo mesmo, com outra pessoa, ou com o mundo. Sexo, também, é obviamente uma forma de guerra: há arranhões, mordidas e olhares furiosos; há uma invasão, um bombardeio e uma retirada. Há até um certo Prisioneiro de Guerra - que, às vezes, é devolvido depois de nove meses, que foram passados assobiando A Ponte do Rio Kwai no útero.
Tudo isso pra dizer que existe uma guerra sendo travada desde o início dos tempos. Ela mesma é muito divertida: é a Guerra contra a Chatice. Um dos fatos mais peculiares dessa guerra é que as pessoas que estão do outro lado, lutando pela Chatice, nunca admitem que é por isso mesmo que estão lutando. O objetivo, segundo eles, é sempre outro - e eles sempre estão dispostos a nos explicar, da maneira mais pausada, sóbria e chata do mundo, que motivos são esses. Não se engane: eles estão lutando pela Chatice mesmo.
Mas mencione o nome de Edward Lear no ouvido deles, e se eles souberem alguma coisa, tremerão - porque Lear foi, sem nem mesmo dar por isso, um dos grandes soldados nessa guerra .
190 Anos de Charme
Existem algumas disputas em que vemos as duas partes discutindo, e achamos que uma das partes está errada, e a outra certa; mas as duas nos parecem tão chatas que simplesmente não nos importamos. Se a parte que nos parece certa vencer o debate, embaraçadamente nos levantamos para cumprimentá-lo; mas no meio do aperto de mão não contemos o bocejo. Pior, a própria causa que ele defende é chata, por mais correta que nos pareça; o assunto todo é chato, e o próprio mundo mental em que os dois debatedores existem é chato. E esse é o mundo em que os adultos sérios, de terno cinza e rosto amassado, vivem perpetuamente: discutindo com voz pastosa assuntos como Propriedade Privada X Socialismo. Até acho que a propriedade privada é melhor do que o controle estatal. Mas que assunto chato!
Este ano em que escrevo fazem 190 anos que nasceu um inglês que também pensava assim. O nome dele é Edward Lear; e, como ele mesmo escreveu, how pleasant to know Mr. Lear. Ele também escreveu, num diário: "Vejo a vida como sendo basicamente trágica e fútil, e a única coisa importante é fazer piadinhas". Ele fez piadinhas: na forma de versos e na forma de desenhos. Se houvesse uma guerra entre cem mil Edward Lears, lutando com tortas e conchas e varetas, e cem mil Homens Sérios, lutando com gás mostarda e fuzis, eu lutaria do lado do fazedor de piadinhas - até a morte. Seria um prazer se eu pelo menos conseguisse matar um ou dois debatedores de programas de negócios e economia, antes de morrer.
Lear, note, nasceu em 1812- o mesmo ano em que Charles Dickens . Ambos tiveram pais que foram parar na cadeia por dívidas; a família dos dois conheceu a prosperidade seguida da pobreza. Mas veja aqui a diferença de temperamentos: Dickens fez disso uma obsessão com pobreza e três mil páginas de choramingos; Lear quase nunca falava do assunto, e quando o fazia, era com piadinhas no estilo nonsense. Penso, por exemplo, no poema The Courtship of the Yonghy-Bonghy-Bò, em que o protagonista da história vive na floresta com "duas cadeiras velhas, e meia vela - uma jarra velha sem alça", e mais nada; ou numa carta que ele escreveu para seu amigo Fortescue, pedindo a ele que intercedesse junto ao novo rei da Grécia para que Lear fosse empossado como "Alto Lorde da Besteira e Produtor de Bobagens, com permissão de usar um chapéu de burro (ou mitra), mais três libras anuais de manteiga e um porquinho - e também um burrinho para me carregar". Com todo o talento que tinha, e inclusive com todo o senso de humor, Dickens fazia parte do outro exército: era eminentemente um homem sério, que tomava café da manhã com o primeiro-ministro e gostava de falar de finanças. Lear, durante um período, foi o professor de desenho da grotescamente séria Rainha Vitória; mas vivia cometendo gafes na frente dela e realmente preferia a companhia de crianças. Na casa do Conde de Derby, onde viveu durante um certo tempo desenhando a coleção de pássaros do dono da casa, Lear almoçava com os criados. As crianças da casa terminavam o almoço mais cedo e iam correndo para o andar de baixo, para a companhia de Lear, que fazia desenhos e rimas para elas - tudo aquilo que mais tarde seria publicado com o nome de Book of Nonsense.
Lear foi gordinho, e terminou gordo; fez centenas de caricaturas de si mesmo como uma bola nariguda. Era gentil - discretamente, quase assexuadamente, homossexual - foi rejeitado pelos dois ou três amantes que teve - e ganhou a vida, precariamente, pintando paisagens italianas, gregas, francesas. Suas rimas e desenhos nonsense (absurdistas) eram uma distração, uma brincadeira; mas é por essas brincadeiras que é lembrado. No momento não consigo pensar em nenhum outro escritor que consiga passar tanto charme para uma folha de papel. Charme é a palavra-chave aqui; e acho que Lear - gordo, barbudo, narigudo - era uma espécie de Audrey Hepburn das letras.
Limeriques são poemas curtos, de cinco linhas, num esquema de rimas aabba. Foi Lear quem popularizou os limeriques; e, como notou a crítica Jackie Wullschläger, os de Lear são geralmente sobre pessoas excêntricas tendo algum problema com a sociedade. José Paulo Paes traduziu este, cujo original vem logo abaixo:
"Havia uma moça cujo olho
tinha o tamanho de um repolho
Quando ela o arregalava,
todo mundo se espantava.
E dizia: 'Nossa, que trambolho!'
There was a Young Lady whose eyes
were unique as to colour and size;
When she opened them wide, people all turned aside,
And started away in surprise."
Limeriques são quase sempre cômicos. Lear, como eu disse, popularizou a forma; depois dele Tennyson, Kipling e W.S.Gilbert escreveram limeriques; mas de modo geral, quando se pensa em limeriques, se pensa em poemas cômicos obscenos. Até Isaac Asimov, o escritor russo-americano de ficção-científica, escreveu dois livros muito divertidos de limeriques obscenos junto com o poeta John Ciardi; e, se você rever Batman Returns, vai reparar que o Alfred diz ter pensado num limerique ao ver a Mulher Gato. E, num episódio de Friends, o chefe de Jennifer Aniston, pra provar que é muderninho e prafrentex, pede a ela que recite um limerique. Mas os limeriques de Lear não são obscenos, só absurdos - neles o que geralmente é muito comprido é o nariz. Há centenas de narizes na poesia de Lear: narizes tão compridos que têm que ser carregados pelos criados; narizes nos quais todos os pássaros do ar se empoleiram ao mesmo tempo; e até mesmo narizes luminosos, como no tragicômico, melancólico The Dong with a Luminous Nose.
Lear escreveu livros de geografia absurda, botânica absurda, abecedários absurdos e até mesmo receitas absurdas - uma delas terminava com o conselho: "Sirva num prato limpo e jogue tudo pela janela o mais depressa possível". Mas para mim o melhor são os poemas um pouco mais compridos: The Duck and the Kangaroo, ou The Owl and the Pussycat, onde a coruja e o gatinho se casam, e -
They dined on mince, and slices of quince,
Which they ate with a runcible spoon;
And hand in hand, on the edge of the sand,
They danced by the light of the moon...
Runcible: essa palavra vai ser um tanto difícil de achar no dicionário, mas Lear não a criou: uma runcible spoon é uma colher dupla, com concavidades em ambas as pontas, de tamanhos diferentes. Boswell menciona que ele e Samuel Johnson usavam runcible spoons quando em viagem. Mas parece uma palavra inventada por Lear, e a verdade é que Lear vivia inventando palavras, ou mudando a ortografia delas: "omejutly" no lugar de "immediately", ou "mewtshool" no lugar de "mutual", por exemplo.
Num texto em que tentava defender Lear e outros humoristas vitorianos, George Orwell disse que o humorista tem uma função séria: acabar com a dignidade das coisas e das pessoas que se dão muita importância. "Uma torta na cara de um bispo", disse Orwell, "é mais engraçado que uma torta na cara de um pároco". Isso pode bem ser, e Lear nunca esteve interessado na dignidade de ninguém. Mas Orwell vai longe demais reclamando de alguns humoristas ingleses (A.A. Milne, P.G. Wodehouse), porque eles não pareciam levar a sério essa missão de zombar da dignidade dos outros. Bom, mas nem Lear levava isso a sério - se levasse, já não poderíamos dizer que ele não estava interessado na dignidade de ninguém - ele estaria interessado na dignidade dele mesmo. Não, Lear não se levava a sério, nem achava que tinha uma missão - e foi assim que, sem perceber, em guardanapos e pedaços de papel, ele lutou a guerra contra tudo o que é chato e sério no mundo.
Quando morreu (já velhinho, alguns meses depois de seu famoso gato Foss), Lear, segundo minhas fontes, foi para o Paraíso. (Os Anjos, como se sabe, adoram a poesia dele, e odeiam a de Byron.) Chegando lá, lhe foi dado tudo o que ele mesmo havia pedido ainda em vida, numa carta. Devo dizer antes que, como todas as pessoas sensatas, Lear adorava a privacidade e detestava barulho. O que ele pediu na carta (e, tenho certeza, recebeu) foi só isto:
"Quando eu for para o Céu, se eu for mesmo - e estiver cercado por milhares de bem-educados anjos - direi cortesmente, "Por favor, me deixem só: - não tenho dúvida que vocês são todos encantadores, mas eu não quero conhecê-los; - me deixem ter um parque e uma vista bonita do mar e dos montes, montanha e rio, vale e planície, com uma infinidade de plantas tropicais: - uns poucos querubins bem-comportados pra cozinhar e manter o lugar em ordem - e - depois de eu ter me estabelecido bem - digamos, depois de um ou dois milhões de anos - uma mulher angelical. Mas sobretudo nada de galinhas! Não, nenhuma! Eu até abro mão de ovos e frangos assados para sempre".
Por este motivo...
Por este motivo, terminada a discussão Propriedade Privada X Socialismo, tendo vencido o lado da Propriedade Privada, não me peçam que aperte a mão do cadáver de Roberto Campos, nem que dance animadamente jogando para cima os ossos pulverizados de Adam Smith. Nessa discussão, eu não estava realmente nem de um lado, nem do outro. Eu estava do lado de Edward Lear.
Livros sobre Lear
Em português: Sem Cabeça nem Pé, Ed. Ática, 1996 - Tradução de José Paulo Paes
Alexandre, seu danado! Eu nunca mais vou poder olhar a barriga de uma mulher grávida sem soltar uma gargalhada! Você é um menino muito mau... Mais um texto brilhante. Parabéns, você venceu mais uma batalha contra a chatice. Quisera ser como você... Beijos da Sue
Rapaz! Fiquei com uma vergonha imensa de ser o grande chato ranzinza que sou.
Parabéns, Alexandre. E obrigado por me apresentar o barrigudo e narigudo Lear.
Nunca tenha receio de se tornar um chato, Alexandre. Não há perigo algum disso vir a acontecer. Malvados nunca são chatos, você não deixará de ser malvado, logo...
Eu não conhecia Edward Lear, Alexandre, só o outro Lear, o rei da Bretanha, que pode ser classificado como chato.
Seu texto está excelente (inteligente, interessante, divertido, muitíssimo bem escrito) foi prazerosa a leitura de cada linha. Mais tivesse...
Só fiquei com um autoquestionamento em aberto, cricrilando aqui: serei eu um chato? Depois eu penso nisso. Agora quero reler sua coluna... Abraço do Dennis
De nada, Rogério. Mas me deixe qualificar os adjetivos que você usou para si mesmo: grande, frequentemente; ranzinza, às vezes; chato, nunca. E Dennis: você mesmo responde a sua pergunta, já que você sabe muito bem que é malvado. A prova contra você está disponível ao público: está em http://cadernomagico.blogspot.com , nos posts dos dias 4 e 7 de Junho. Abraços a todos, menos para o Paulo Maluf - Alexandre.
Ah, meu general,quantas vezes ri e me enterneci e gargalhei com seus textos... como são leves e saborosos, como um suflê... Os meus às vezes me pesam como uma feijoada completa. Gostaria de sua serenidade (já disseram por aqui que não possuo tal coisa), de sua graça, de sua leveza. Mas acho que vou ter de continuar sendo "the old battlewagon"... Beijo da Sue.
Sue, digo de você o que o Duque de Wellington disse dos próprios soldados: "I don't know what they do to the enemy, but they put the fear of God into me"...;>) Beijos- Alexandre.
Este último texto, não só em seu conteúdo, mas também em sua forma, ataca a CHATICE de forma impiedosa. A fluidez dele é tanta que olhamos enfezados para a barra de rolagem, por ela estar chegando ao final. Como se virássemos uma página e descobríssemos que o texto está acabando. Quisera eu encontrar mais textos assim pela frente.
Se todos fossem reunidos em livro, será um daqueles volumes que eu leio num só dia.
Acho que Mario Quintana tinha também a mesma vocação de Lear. Seus poemas são tão singelos que certa vez um militar que compareceu a um lançamento de um livro seu disse-lhe: "Gostei muito de seus poeminhas". Então, Quintana respondeu: "Muito obrigado por sua opiniãozinha". Outra demonstração - esta mais radical e sisuda - de desapreço pela mania humana de levar as coisas muito a sério é o filme "Barry Lyndon", de Kubrick. Estou chocado até hoje com a habilidade do diretor em mostrar os limites que pode atingir a paranóia humana. Parabéns pelo texto, Alexandre. Gostei do "Assunción", no comentário 4! Cara amiga Sue, não te aches pesada, pois tu és leve como uma pluma e teus argumentos são certeiros como um punhal! Saudações, Evandro.
Querido Evandro, obrigada pelas palavras. Eu espero poder um dia morrer como morreu Cyrano de Bergerac, no maravilhoso livro de Edmond Ronstand, dizendo (tenho a versão em inglês): "Yes, all my laurels you have riven away / And all my roses; yet, in spite of you,/ There is one crown I bear away with me. / And to-night, when I enter before God, / My salute shall sweep all the stars away / from the Blue threshold! One thing without stain,/ Unspotted from the world, in spite of doom / Mine own! - / And that is... / My white plume...". Traduzindo grosso modo, para aqueles que não falam inglês: "Sim, todos os meu louros foram tomados por vós / E todas as minhas rosas; no entanto, apesar de vós, / Há uma coroa que levo comigo, / E hoje à noite, quando me puser diante de Deus / Minha saudação espantará todas as estrelas / Do umbral azul! A única coisa sem mácula / Sem as manchas do mundo, apesar de minha sina / Toda minha! - / E esta coisa é... / Minha pluma branca..." Beijos da Sue
Ricardo, excelente idéia; vou mandar a sua mensagem para uma editora, pra eles deixarem de ser bestas...(Estou me cansando dos emoticons, então imagine aqui um ponto-e-vírgula, um sinal de maior e uma letra D). Mas como vão as leituras oblomovistas, Ricardo? E o aniversário de Goncharov, que está se aproximando? Acho que também vou comemorar lendo o dia inteiro na cama, e dando um descanso para a varanda. E grazie tanti pela mensagem simpática...Um abraço- Alexandre.
"Barry Lyndon" é uma obra-prima! Vi o filme alguns dias atrás e acabei achando melhor que 2001 e A Laranja Mecânica, e pelo menos tão bom quanto Lolita./ Obrigado pelos parabéns, Evandro. E você não poderia estar mais certo sobre a Assunção "Battlewagon" Sue e suas habilidades marciais...
É isso Alexandre, a vida sem a arte, sem o Humor, fica muito chata e previsível. Seu texto além de inteligente, instiga uma outra visão sobre os relacionamentos mundanos e serve como um alerta para todos que têem a sorte de conhecer sua Digestiva Coluna.