Primeiro ato: 13 de dezembro de 1968. O Ato Institucional número 5 é decretado em Brasília. Naquela noite, no bar e restaurante Veloso, à rua Montenegro, é lançado o livro de cartum 10 em Humor, uma coletânea com os melhores humoristas da época, incluindo Henfil, Claudius, Fortuna, Leon Eliachar. Enquanto isso, em Copacabana, Alfredo Jacinto Melo vai comprar uma Cibalena na rua Almirante Gonçalves quando se depara com um festejo em frente à farmácia. É a inauguração de um bar, chamado Bip Bip, onomatopéia bem sessentista, talvez do desenho animado da Warner Bros., talvez do módulo espacial Sputnik. Boca livre? É comigo, entra para tomar umas batidas: estava completamente duro. Dali, meio sem saber como pagar, toma um táxi para Bangu. Tinha que tentar esconder por lá alguns amigos de movimentos de esquerda, ocultar provas que pudessem denunciá-los.
"O que me ocorre quando penso no Bip Bip é que, de todos os donos de botequim que conheço, Alfredo é o mais parecido com um freguês. Mas isso é tão óbvio que, certamente, Alfredo está cansado de ouvir observações desse tipo. Não há a menor dúvida de que ele criou uma das obras primas da boemia carioca." (Sérgio Cabral)
Segundo ato: Por volta de vinte anos depois. Jamil Feres, dono da loja na qual o Bip Bip está instalado, joga uma conversa mole para cima do Alfredo, tentando convencê-lo a comprá-la. O ponto já era de Alfredo há quatro anos; trabalhava na parte de câmbio em uma firma de assessoria técnica sobre importação e resolvera usar um dinheirinho guardado. Não queria lucro, comprara o bar para poder beber de graça, atividade à qual se dedicara fielmente nos últimos anos, contratando até um gerente para não ter que trabalhar. Jamil insistia: "ajuda eu, Alfredo, preciso comprar uma carrinha para minha filho..." Alfredo retruca: "Vem cá, eu te pago xis em dinheiro e dois milhão em Old Eight." Jamil fecha o acordo sem titubear; nos próximos meses irá freqüentar o bar como mais um freguês, só que, ao invés de pagar, anota a quantidade de doses de seu uisquinho em um caderno. Quando completa dois milhões, o bar está pago. Alfredo gosta tanto das suas piadas que lhe oferece mais um milhão em doses, só pela sua companhia. Jamil não aceita, irritando profundamente Alfredo.
"O Bip Bip é, sem dúvida, o melhor dos piores botequins do mundo" (Altair Baffa)
Terceiro ato: Elton Medeiros comandava uma roda eclética demais para ser chamada apenas de samba na calçada do Bip Bip, isso antes da prefeitura ter proibido roda de samba na calçada. Não que hoje, por causa da proibição, não haja mais roda de samba; ela fica totalmente do lado de dentro, nos minúsculos 18m2 do bar, mas não era nem isso o que eu queria dizer. Eu ia falar é que, já no comecinho dos anos 90, o Elton cultivava o saudável hábito de, nas tardes de sábado, puxar uma descontraída roda de samba na calçada do Bip Bip, bem naquele esquema de roda mesmo: alguém levava um violão, "lembra essa?" e tal, as horas passando ao sabor da música. Pois foi numa roda dessas do Elton que Miriam Gama, cuja mãe fora cantora lírica, começou a levar uma série de canções francesas, daquelas bem antigas e bonitas, Luciene Boyer, Paul Durand e lá vai fumaça. Eis que um mendigo que dormia na marquise ao lado - mas um mendigo bem mendigo mesmo - acorda com a cantoria, e muito educadamente pede licença para entrar na roda. Canta, junto com Miriam, com boa voz e pronúncia perfeita canções francesas. Por horas a fio, encantando a quantos por ali passassem. Nunca mais foi visto.
"O Bip Bip é a melhor mentira que todos querem cultivar" (Didu Nogueira)
Quarto ato: A notícia das rodas de samba começa a se espalhar pela imprensa, gerando uma série de reportagens chapa branca, meio pelo turístico, sobre o Bip Bip. Além do samba, contribui para o folclore do bar o fato que lá, os fregueses anotam, eles mesmos, o que consumiram num caderninho, acertando com o Alfredinho no final (mais ou menos no mesmo sistema do Jamil). Durante os fins de semana, ou o próprio Alfredo anota, utilizando seu sistema de notação bem peculiar: "careca lá do fundo", "Dinamarca", "gordão", etc., ou alguma cliente mais antiga acaba dando uma força como garçonete. Não que haja muita coisa para servir, praticamente é só cerveja gelada, sobretudo depois que o Alfredo tirou o pequeno balcão que ficava no fundo. Quando ainda havia um balcão, provavelmente por conta de uma reportagem daquelas, apareceu por lá um casal bem jovem, talvez namorados, deslumbrados com a galeria de fotos e caricaturas nas paredes: Nelson Cavaquinho, Walter Alfaiate, Aldir Blanc, João Nogueira... Foi o rapaz quem falou:
- Tem algum tira-gosto?
- Queijo ou azeitona - respondeu o Alfredinho, no seu modo afungentar-clientes-novos.
Uma troca de olhares foi o suficiente para os dois se decidirem:
- Queijo, então.
Alfredinho retrucou como um chicote:
- Puta que pariu! Só para me dar trabalho de cortar!
"O Bip Bip é um bar impossível. Pela lógica, não podia existir. E, não bastasse, o Alfredinho ainda ganha o prêmio de segundo melhor garçom do Rio." (Henrique Cazes)
[Nota: o prêmio a que Henrique se refere não é força de expressão; existe mesmo e é organizado pela prefeitura anualmente, quando urnas são colocadas na porta de diversos botequins da cidade para que os eleitores votem em categoria como melhor botequim, melhor petisco, melhor chopp, melhor garçom. Apesar dos fregueses darem quase sempre conta do recado, Alfredo já foi medalhado como melhor garçom mais de uma vez.]
Quinto ato, com pano rápido: esse eu vi, ninguém me contou. E até já contei essa história por aqui, vai lá ler. Mas depois, volta.
"O Bip Bip é o único bar que conheço sem fins lucrativos" (Jaguar)
Sexto ato: Alfredo encontra-se com Aquiles Rique Reis, do MPB-4, no camarim do Teatro Rival após um show. Queria saber mais do projeto "Se essa rua fosse minha", cuja camiseta Aquiles usara durante a divulgação do show no programa Sem Censura, meninos de rua: "Aquiles, eu tou querendo trabalhar e botar o Bip à disposição dessa garotada". Chamou Cristina Buarque, outra fundadora das rodas de samba, Aquiles mostrou uns vídeos, Alfredo entendeu e encontrou seu espaço. Foi ao McDonald's a quatro quadras do Bip Bip, arrumou caixas de engraxate, botou meia dúzia de meninos engraxando com caixas do McDonald's, e patrocinou caixas para mais uns tantos. Ainda hoje vários fregueses contribuem com uma quantia mensal para o "Se essa rua...", que mantém trinta crianças estudando numa casa em Vila Isabel, e todo mês de setembro, sai uma Kombi do Clube Maxwell levando os cinco quilos de alimentos não perecíveis cobrados de ingresso a cada participante da roda de samba com feijoada que comemora o aniversário do Alfredinho.
"A vida depois do Bip Bip não é mais a mesma. É para holandês ver e aprender. Que a melhor música do Rio é ao ar livre e é grátis. Que se escuta pendurado numa lixeira da Comlurb, ou deitado no capô de um carro. Que, todavia, se faz amigos num bar. Que vida se festeja. Que bondade ainda é coisa de grande cidade." (Ineke Holtwijk)
Sétimo ato, e final: Na época em que havia uma guerra declarada entre o Bip Bip e seus vizinhos, com direito a abaixo-assinados, fiscais, ovos e papel higiênico molhado, uma meia dúzia de cinco PMs chegou no bar, cobrando satisfações. Conversa vai, conversa vem, aquela diplomacia do limite da legalidade e o Alfredo praticamente implorando para que alguns fregueses, loucos para dar palpite, não se metessem. Um dos fardados fechou questão, enfim:
- Tudo bem, mas vamos ter que prender a churrasqueira.
Foi a senha para algum moleque gritar, lá do fundo:
- Churrasqueira! Teje presa!
[Comentário final: a despeito do elevado grau de absurdo, o Bip Bip realmente existe, como pode ser comprovado a partir da página 47 do livro Confesso que Bebi, do Jaguar (Record, 2001), no capítulo que tem o mesmo nome do bar; através dos Guias Rio Botequim de 98, 99 ou 2000, dos links inseridos neste texto ou pelo livroBip Bip, Um Bar a Serviço da Alegria, de Francisco Genu, Luís Pimentel e Marceu Vieira (edição independente, 2000), de onde muitas informações deste artigo foram retiradas, à venda apenas no próprio local.]
Rafael,
Isto não é coisa que se faça...me deixou com uma enorme saudades do Rio. Uma saudades de um Rio que não conheço (sou paulista), mas que minha intuição me diz que existe, todas as vezes que desço no Santos Dumont. De um Rio que obviamente está lá...Resistindo em algum bar (será no Bip Bip?), independente da insistencia da midia em dizer que ele acabou...Um Rio que é o por-de-sol mais lindo do mundo e a música mais gostosa, misturada e louca que já escutei...Um Rio que ainda espero conhecer e que, contraditóriamente, torço para que fique meio em segredo, a salvo, intacto. Beijos, Ana.
PS: Vc tinha razão: Não é necessária nenhuma concentração para conhecer o Rio...Acho até que atrapalha...*s*