Essa questão eu me coloquei quando entrevistei recentemente Gustavo Dahl, presidente indicado à Ancine (Agência de Desenvolvimento do Cinema). A Ancine surgiu com a MP do Cinema, editada em setembro do ano passado, e é a nova legislação que regulará o mercado brasileiro de cinema - desde a exibição nos cinemas até sua exibição na TV aberta. Além da Ancine, a referida medida criou um novo tributo - a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento do Cinema) -, que faz com que as distribuidoras de filmes e programadoras de televisão fechada estrangeiras em atuação no país destinem 11% de seus lucros remetidos ao exterior à co-produção de qualquer obra audiovisual nacional. Caso ela se utilize do art. 3o da Lei do Audiovisual - quando se pode usar 70% do IR para produzir aqui - estaria isenta do tributo. Em relação às programadoras de fora, exige-se o investimento de 3% da mesma remessa para se isentar dos 11%.
Não quero aqui discutir esse tributo - justíssimo em seus objetivos, que é taxar a exploração do mercado interno nacional pelos grandes filmes de Hollywood. Não se pode simplesmente exibir Homem-Aranha nos cinemas, faturar R$ 40 milhões com ele e nada desse montante ficar aqui dentro. A taxa é justa e necessária, como já se faz em outros países como Argentina e França (10,9% da arrecadação de qualquer filme exibido no mercado francês vai para um fundo que financiará futuras produções) e que estão experimentando um boom cinematográfico. O que colocarei é a posição da Ancine - na pessoa do sr. Gustavo Dahl - e qual o tipo de cinema que buscam para o Brasil.
Dahl me disse que a Ancine pretenderá criar mecanismos que gerem a auto-sustentabilidade do setor audiovisual nacional. Uma política industrial, disse ele, aos moldes do modelo americano, acrescentaria eu. Mas que tipo de política é essa que nos fará ser auto-suficientes e que faça o filme brasileiro ser visto por seu povo? Reproduzo abaixo uma das respostas/opiniões de Gustavo Dahl, quando questionado sobre os filmes de baixo orçamento e a atuação da Ancine nesse sentido:
"Uma vez que se propõe a criar no Brasil uma política industrial, é preciso ter em mente a questão da competitividade. Já existe, pelo Ministério da Cultura, uma atuação no segmento de filmes de baixo orçamento. A própria Lei do Audiovisual, em cinco anos de vigência plena, lançou 55 novos cineastas. A questão do filme de baixo orçamento e dos novos talentos, portanto, já está sendo tratada. O segmento de produção que está carente de apoio é justamente aquele que se dirige ao grande público. Atualmente, os filmes feitos para o grande público são feitos quase que exclusivamente pela televisão. Mas até se chegar aos recursos para poder efetivamente investir, há um longo caminho a ser trilhado".
O que parece surgir do discurso do presidente da Ancine é que haverá uma postura de incentivar as produções para público amplo. Atualmente, público amplo é sinônimo de Xuxa e de Renato Aragão, com alguns esgares de produções com forma e conteúdo originalmente televisivo (O Auto da Compadecida, A Partilha, Caramuru - A Invenção do Brasil). Não dá para se pensar em cinema brasileiro na atualidade sem ver que há uma enorme gama de diretores autorais, que buscam em seus filmes não os instrumentos que aliciam o público adolescente freqüentador maior dos cinemas, mas sim uma proposta diferente e de diálogo com certas questões que os interessam pessoalmente e, por que não?, nacionalmente. Poderíamos criticá-los, como muitos fazem na imprensa, por gastar dinheiro público e fazer filmes para si próprios, mas, excluindo-os, estaríamos minando uma forma espontânea de se fazer cinema e, até certo ponto, de se fazer arte. O filme de baixo orçamento, de temática restrita e não banal, estaria, com a pretensa atuação da Ancine, fadado a ser o filme exceção, aquele que brotaria de repente numa sala, sendo alvo de olhares maliciosos e de desprezo ostensivo. Seu espaço seria ainda mais diminuto, e sua função (pelo menos a social), extinguida.
Com essa política em ação, talvez o dinheiro arrecadado fosse destinado a poucos e já conhecidos cineastas, muitos deles remanescentes da antiga Embrafilme (como Gustavo Dahl, que já foi seu presidente). Corre-se o risco do nepotismo imperar mais uma vez, num ramo crescente e de produção no país.
Não se quer criar um drama sobre o cinema brasileiro. Uma indústria de cinema no Brasil, além de ser importante culturalmente, estaria ajudando a criar empregos e a absorver mão-de-obra (Luis Carlos Barreto fala em 80 mil empregos para uma média de 250 filmes anuais). Claro que a grande questão estaria naquilo que, em princípio, motivou nossos homens de cinema a arrumar briga com os grandes distribuidores americanos: defender a cultura e o produto audiovisual nacional de um povo. Se este é o detonador da MP do Cinema, criar uma indústria poderia levar a concessões mercadológicas, a retorno financeiro com pretensão de cinema, e isso nos igualaria a Hollywood, pelo menos na intenção, já que tecnicamente não será possível. Claro que se quer ganhar dinheiro com cinema no Brasil, mas o caminho poderia ser um tanto quanto diferente, menos pretensioso em seus fins (criar uma indústria) e mais voltado a gerir formas de se democratizar a produção e, principalmente, a exibição. A maior parte dos filmes nacionais são exibidos apenas em SP, RJ e algumas poucas capitais estaduais. Com 92% de cidades sem salas de cinema, como criar uma verdadeira indústria? Além de tudo isso, é inegável que ainda haja preconceito em relação ao filme brasileiro. Uma atuação buscando diluir esse sentimento seria de grande valia ao crescimento da participação do filme brasileiro. Cito um exemplo: no Shopping Pátio Higienópolis, ano passado se exibiu Domésticas, O Filme, de Fernando Meireles. No cartaz do filme à mostra na entrada do cinema coloram um papel com os escritos "Filme Nacional". Um aviso àqueles que caíssem, por falta de opção, numa sessão do tal "filme nacional", muito bom por sinal.
Escrevo tudo isso para chegar aqui e perguntar: é isso que queremos para o cinema brasileiro?
A discussão sobre cinema no Brasil é tão antiga, mas tão antiga, que já morreram Mário Peixoto, Alberto Cavalcante, morreram a Vera Cruz, a Atlântida, as revistas de cinema, os velhos cinemas de praça do país e ainda não sabemos onde chegar. Será que somos tão incompetentes, imaturos, ou ignorantes mesmo, a ponto de não conseguirmos elucidar uma questão tão necessária? Sim, somos. Tudo isso e muito mais. Venho acompanhando a discussão sobre a ANCINE, desde as propostas de sua criação - coisa de uns dois ou três anos atrás. Venho acompanhando algumas poucas discussões nos bastidores, travadas entre cineastas de longa data e aspirantes. O que se percebe é um misto de angústia adolescente e de disparates egocêntricos. De um lado, advoga-se a causa do cinemão, da criação de uma indústria, mas voltada para o grande público, quando as bases que aí temos, os tais "fundamentos", estão explícitos neste artigo. Como se a arrecadação de um tributo fosse satisfazer a necessidade histórica de profissionalização de uma imensa cadeia produtiva. De outro, os chatos de sempre - não chatos porque reclamam, mas porque são chatos mesmo - quebram com qualquer iniciativa que pretenda dar viabilidade à indústria - em qualquer acepção que a palavra possa tomar -, uma vez que inseridos em um mercado audiovisual, terão que caminhar com as próprias pernas, sem o ancoradouro seguro das benesses concedidas pelo Estado. Mas antes de qualquer mal-entendido, é preciso dizer uma coisa: não são só estes que querem evitar a todo custo a retirada do seio estatal. Também muitos dos velhos cineastas aguardam a varinha de condão salvar as suas idéias e transformá-las em grandes obras de longo alcance, como mísseis culturais. O que resta são os parcos cinemas pelo território brasileiro, inundados de porcarias made in qualquer lugar, seja Brasil, EUA ou mesmo França, a meca da pseudo-intelectualidade. Uma certeza podemos ter. E é uma certeza que pode nos auxiliar a pensar em saídas. Há espaços para todos os gostos, para todas as produções. O que precisamos ocupa uma boa lista: boas escolas de cinema, técnicas e críticas; que o Estado deixe de atrapalhar a produção (já seria uma grande ajuda); que se criem verdadeiros produtores no país, com conhecimento sobre o mercado, sobre a indústria; e demais mecanismos que permitam a auto-suficiência. Sem ela, não há como se pensar sequer em médio prazo.