Às vezes me parece que o estado ideal da mente é o de uma comédia leve; que deveríamos meditar para atingir esse estado, como um monge zen medita para atingir o estado de iluminação. É um estado não só leve como um pouquinho zonzo. E vagamente espumante, como se bolhinhas de champanhe tivessem subido para o cérebro, e estivessem borbulhando lá, entre o cerebelo e o tampo do crânio. Se alguém subisse num banquinho, ouviria a sua cabeça chiar.
Essa não é uma escolha óbvia para um estado ideal da mente – alguém poderia preferir o de uma comédia mais pesada, algo como um permanente estado satírico da mente, que é um estado mais crítico, mais amargo, menos achampanhado e com mais tanino. Ainda por cima, o estado satírico dá o grande prazer da agressão – o prazer de sair pelas calçadas dando chutes em quem, por exemplo, fala alto, ou simplesmente é feio. Confesso que às vezes esse estado mental me tenta – que é o meu estado natural, até - mas ainda prefiro o estado mental das comédias leves.
(Coloquemos a diferença assim: na sátira você quer dar pancadas; na comédia leve você quer dançar.)
Há também quem prefira viver no estado mental de uma tragédia. Há muita gente assim andando nas ruas, presos mentalmente num filme triste, ou num filme sórdido; em Pixote, ou naqueles cinco minutos sublimes de um certo filme – o ápice do cinema brasileiro, por assim dizer - em que Lucélia Santos abraça um poste debaixo da chuva, gritando “Me come, negão! Me come, negão! ” para um bando de mecânicos sem camisa. Que alguém voluntariamente queira ficar preso nesse estado de espírito me parece incrível, mas há. E o que é característico nesse tipo de gente é que eles nunca acham que é só um estado mental, voluntariamente sintonizado. Eles acham que o universo é que é assim, objetivamente assim: um ferro-velho debaixo da chuva, em que Lucélia Santos é perpetuamente estuprada por gente feia. Da minha parte prefiro acreditar que o universo é assim: James Stewart acordando e vendo o rosto de Grace Kelly se aproximando dele, em Janela Indiscreta; Maurice Chevalier cantando Thank Heavens for Little Girls, num parque parisiense, em Gigi. Posso estar enganado, e acabar cercado por um bando de negões num ferro-velho (epa*). Mas pelo menos até esse momento eu não estava, mentalmente, no ferro-velho – estava em Cannes ou Biarritz com Grace Kelly. (Ela pediu pra dizer olá.)
A seguir escolhi três autores de comédias leves, dos quais talvez você não tenha ouvido falar, ou saiba pouco. Se esse é o caso, sorte sua – é como se você de repente descobrisse três portas dando para três jardins, onde antes não tinha visto porta nenhuma:
1) P.G.Wodehouse (1881-1975) – Mais conhecido como Plum , para os aficionados. Você já deve ter ouvido falar de Jeeves, o mordomo – pois foi Wodehouse (pronuncia-se Woodhouse) que o criou e o manteve vivo em 11 romances e 33 coleções de contos. Jeeves na verdade é o valet de chambre, e não o mordomo, do venerável Bertie Wooster, que é um cabeça-oca simpático que depende de Jeeves para tudo. Já Jeeves é um intelectual, que cita Keats e lê Spinoza na cama (tenho a teoria que ele é o verdadeiro pai de Hannibal Lecter, mas essa é outra história). No mundo de Wodehouse, coisas como trabalho, impostos, doenças e morte não existem, e o maior problema da vida é a iminência da chegada de uma tia furiosa, ou a dificuldade de praticar banjolele (misto de banjo e ukelele) sem ser expulso do edifício. Naturalmente, é sempre Jeeves que resolve os problemas do seu inofensivamente idiótico patrão.
O melhor de Wodehouse é o estilo . Foi muito admirado tecnicamente por Evelyn Waugh, que era outro mestre da língua e admirava muito pouca gente. Wodehouse faz rir com as gírias antigas, inventadas ou não, que Bertie diz, e a precisão da linguagem. Por isso não vale muito a pena lê-lo em tradução, se você encontrar uma. Se esforce, leia Wodehouse no original – ele foi um dos autores mais engraçados de todos os tempos, se não o mais. Pessoalmente era tímido, gentil, e um pouquinho chato. Escreveu noventa e tantos livros. Li oito: lendo num ritmo de uns cinco livros dele por ano, fico feliz de ainda ter uns dezesseis anos de leitura pela frente; e outros tantos de releitura. 2) Amy Sherman-Palladino – É a escritora e produtora da série Gilmore Girls. Mrs. Palladino, que é relativamente jovem, se orgulha de ser na verdade um “cômico judeu de 80 anos”; o diálogo que ela escreve é um dos melhores da tevê: inteligente, engraçado, e rápido como o diálogo de uma screwball comedy (tão rápidos e incessantes que os roteiros têm, em média, vinte páginas a mais do que os de outros shows de uma hora). Oh, a série em si é um tanto bobinha: mãe linda e filha adolescente são as melhores amigas uma da outra, e vivem numa cidadezinha bucólica nos EUA, Stars Hollow, em que o pior crime que é cometido é alguém ter vandalizado um boneco de neve, e onde ninguém é mau, no máximo um pouquinho chato. Na verdade desconfio que naquele universo o mal nem mesmo existe – só uma espécie de mau-humor engraçado. Quando desligo a tevê depois de ver Gilmore Girls, me pergunto por que a vida não pode ser assim.
Basicamente, a série é sobre o prazer que mãe e filha têm em zombarem juntas de todo mundo; e zombar a dois é tão melhor que zombar sozinho. E há Lauren Graham, a mãe da filha adolescente, que é uma dessas mulheres (que existem) que não são tão lindas assim caladas, mas que quando começam a falar ficam (oh, pelo menos para mim) inacreditavelmente maravilhosas. – Gilmore Girls- Warner Channel- Quintas às 20:00 e 1:00, reprises nos sábados às 17:00 e 23:00.
3) Georges Feydeau (1862-1921)– Foi um francês que escrevia peças cômicas, de vaudeville. Escreveu 39 delas; as mais famosas são la Dame de chez Maxim (1899), la Puce à l’oreille (1907) e Occupe-toi d’Amélie (1908). Levou uma vida longa e divertida e sifilítica **. Oh, é claro que ninguém leva Feydeau a sério hoje em dia, e por dois motivos: porque suas peças são engraçadas, e porque suas peças são bem-feitas. Críticos sérios preferem autores sombrios e desleixados. Estou pensando no irlandês Samuel Beckett ao dizer isso; suas peças têm lá alguma técnica, principalmente no ritmo dos diálogos, mas isso não é nada comparado ao ritmo preciso de Feydeau. Você tem que ter ritmo em comédia, ou ninguém ri – é simples assim. Mas Feydeau, ao contrário de Beckett, não construiu uma filosofia do desespero e da incomunicabilidade humana e de todas essas idiotices profundas; o mais próximo que ele tinha de uma visão de mundo era a noção francesa de que adultério é divertido. Pensando em Beckett e Feydeau, digo isto:
É um mistério
Aquele autor irlandês,
Tristonho e sério,
Que escrevia em francês:
Não escreveu “La Puce...”, mas “Godot”;
Foi Beckett - podendo ser Feydeau...
Mas as peças de Feydeau nunca deixam de ser representadas – especialmente “Uma Pulga Atrás da Orelha” (La Puce à l’oreille), La Dame de chez Maxim e L'Hotel du Libre Echange,
que virou um filme bastante engraçado com Alec Guiness e Gina Lollobrigida (em 1966, com o nome de Hotel Paradiso). Acho que ele merecia mais respeito, mas ao fim e ao cabo ele não é tão desprezado assim – já foi chamado de “o Bach do seu gênero” pelo crítico e tradutor Norman R. Shapiro, e de “o maior autor cômico desde Molière” pelo escritor Marcel Achard.
Direta ou indiretamente, influenciou vários autores de sitcoms; no mínimo indiretamente – ele e o autor cômico inglês Arthur Pinero influenciaram autores cômicos novaiorquinos, na maioria judeus, que migraram dos palcos para o rádio, do rádio para a tevê ( pense em Larry Gelbart, que fez justamente essa transição do rádio para a tevê, onde escreveu vários episódios de M.A.S.H.). Sitcoms, como sonetos parnasianos, como arquitetura gótica, e como as peças de Feydeau, são formas de arte inacreditavelmente exigentes; exigem longo aprendizado, grande talento, grande esforço. Não tenha dúvida que os escritores modernos de sitcoms estudam Feydeau como se ele fosse uma autoridade talmúdica; e da próxima vez que achar graça do que Jeniffer Aniston diz em Friends, ou do que Seinfeld diz em Seinfeld, perca dois segundos para dizer mentalmente Merci, Georges, que não custa nada.
Para concluir
Isso talvez seja uma boa definição para fé: acreditar que a vida não é uma peça de Nelson Rodrigues; que esteja mais perto de uma comédia leve. Se o pior acontecer, e finalmente você se encontrar cercado por mecânicos barrigudos num ferro-velho, há pelo menos esta consolação: que ao contrário do pessimista você não esteve sempre ali, debaixo daquela chuva, se preparando para o pior. Não há modo de se preparar para o pior; você e o pessimista vão passar pela mesma sórdida experiência juntos; mas o pessimista cresceu ali, nunca saiu dali, enquanto você cresceu num filme de Lubitsch ou num livro de P.G. Wodehouse.
Ou esta definição alternativa de Graça Divina: que a Graça é a chuva parando, a Lucélia Santos desabraçando o poste, sendo transportada do ferro-velho para uma mansão em Connecticut, se tornando Audrey Hepburn e sendo perseguida, agora, ao longo de um caminho de cascalho, por Cary Grant - que quer dar umas palmadinhas nela com uma raquete de pingue-pongue.
Continuando a metáfora
E sim, tenho certeza que, depois da morte, iremos para uma comédia de Lubitsch, perpetuamente projetada lá nas nuvens...
Não me alongo pois não quero estragar a leitura alheia. Mas que eu tenho certa desconfiança de quem leva a vida em uma comédia leve, isso eu tenho. Por fora "Seinfeld", por dentro Rodion Romanovich. Pode ser coisa de um velho jovem desconfiado, mas sei lá ...
Mas eu falei na comédia como um estado mental - por dentro - nada de Raskolnikov por dentro, portanto...Raskolnikov não vivia por dentro uma comédia leve francesa (nem por fora)- vivia por dentro uma tragédia nihilista alemã...Se fosse um pouquinho mais superficial, um pouquinho mais frívolo, não precisaria nem de machadadas, nem de lágrimas e redenção espalhafatosa. Não é? Mas vá tentar explicar isso para os russos...Um abraço- Alexandre.
Ah... Alexandre!Eu gostaria muito de poder viver nesse estado de "Comédia Leve", em que houvesse malícia, sim, mas com elegância; maldades, claro, mas com refinamento e inteligência... e no qual eu pudesse me enternecer com a visão de uma Audrey Hepburn comendo um prosaico sanduíche, mas vestindo Givenchy e, possivelmente, cheirando tão bem como uma rosa que acabou de desabrochar. Que beleza de mulher! Ah... nunquinha uma Lucélia Santos se transformaria em Audrey Hapburn, nem se a gente tomasse um porre de absinto (a proibida fada verde), meu amigo. Pois nem raspar as axilas essa "Isaura" raspa... O nosso Vaudeville brasileiro é apenas um entra e sai de palhaços rotos, com penicos na cabeça, você sabe, nada tem da espirituosidade de um Eugène Labiche ou de um Georges Feydeau. Alexandre, se você encontrar o caminho desse mundo perdido... ou melhor, a entrada desse mundo da "Comédia Leve", onde ainda circulem criaturas assemelhadas a uma Grace Kelly ou a uma Audrey Hapburn... avise-me, certo? Que delícia ler o seu texto, Alexandre! Eu me senti longe, muito longe das coisas feias, das coisas grosseiras, burras, do humorismo de arrotos e outras grosserias. Foi muito bom! O final do seu texto, então, ficou soberbo! Forte abraço!
Que maravilha ler um texto desses! Que delícia ver que nem todos pensam como, por exemplo, aqueles video-artistas ranzinzas do Itaú Cultural, com suas mórbidas odes à podridão e ao lixo urbano, ao caos da mente e aos estados de alucinação e loucura. Meu Deus, que graça pode haver em se resignar a uma vida caótica? Como pode alguém perseguir tal coisa como objetivo e gastar a vida inteira fazendo a apologia da sujeira e da marginalidade? Muita arte bonita já surgiu a partir dos estados mórbidos da mente humana, mas o custo é alto e, portanto, tem que valer a pena. No caso de Dostoyevski, valeu! Mas hoje em dia não temos Raskolnikov. Temos Lucélia Santos e os seus negões. E, sinceramente, acho que isso não faz valer nem o esforço de ligar a TV no Canal Brasil. Portanto, sinto uma felicidade (diria Manuel Bandeira) "inefável" ao ler esse artigo, ainda mais depois de voltar da banca, onde vi um especial da Caros Amigos sobre "literatura marginal". Ninguém quer ser marginal, nem mesmo os marginais. Mas esse povinho intelectual já está começando a convencer a todos de que é bom ser marginal, é "cult", é "unibancool", é lindo, enfim. E assim rasteja a humanidade, como disse o Sérgio Augusto. Em tempo, gostaria de sujerir um filme de Robert Altman. Chama-se "A fortuna de Cookie". Todos os personagens são deliciosamente ingênuos. Tão ingênuos que não conseguem não ser felizes! E, para melhorar, ainda tem a Liv Tyler no elenco. Que maravilha!
Olá, Dennis. Essa cena da Audrey Hepburn comendo sanduíche saiu de algum filme, ou você sonhou? Se sonhou, é um bom sonho...Agora, quanto ao caminho para esse mundo de comédias leves, o armário que leva a essa Narnia, encontrei, sim: chama-se "punch drunkness". Acho que foi Archie Moore, o campeão de boxe, que disse que cada vez que era nocauteado, sentia "amor pela humanidade"; e esse estado zonzo e feliz durava um minuto ou dois. Essa é a solução, portanto: levar umas pancadinhas na cabeça até ficar zonzo. Ou viver numa dieta exclusiva de filmes com figurinos de Cecil Beaton e Edith Head. Quando o que os outros (não eu) chamam de realidade aparecer na esquina (estou imaginando um monstro com cabeça de Hebe Camargo e corpo de Feiticeira), basta fazer o que os ocultistas chamam de ritual de banimento, e pronto. Tente, e depois me diga. Abraço, Alexandre.
Olá, Evandro. Essa história de literatura marginal...Infelizmente nunca é Villon, Wilde, Poe, Camilo, ou qualquer outro grande escritor que já tenha passado pelo que Tolstói chamava de "uma boa e fedida prisão"; são sempre uns rappers e uns vendedores de churros. Quem lê essa gente? Eu sei: diretores de cinema, publicitários. Essa gente sofre de Síndrome de Estocolmo por antecipação. Quanto a mim, prefiro Arsène Lupin, o Gentleman-Cambrioleur - mas acho que ele não se sentiria muito bem ao lado de rappers e traficantes de drogas...Oh, além de Lupin, Raffles, e O Gato, do filme Ladrão de Casaca. Um abraço- Alexandre.
Alexandre, a tal cena de Audrey Hepburn comendo sanduíche ao amanhecer (em uma calçada), vestida por Givenchy, não é sonho; é cena de um filme famoso, acho que de "Sabrina". Os amigos cinéfilos poderão dizer exatamente se é cena de "Sabrina" ou de outro filme. Mas certamente ela aparece assim mesmo; é uma cena fantástica, em preto e branco!
Quanto ao portal para a "Comédia Leve", se a chave for levar porradas eu desisto, não vou pagar esse preço, não! Arrume outra entradinha, mesmo que seja porta lateral! Abraço!
Se eu encontrar mesmo o caminho, abro uma janela quando ninguém estiver olhando e você entra, Dennis. Ou o método da dieta de filmes do tipo "Sabrina". O método das pancadas, para você, não- ele tira a maldade das pessoas (conforme o comentário de Norman Mailer de que "não há lutadores de boxe velhos que sejam maus"), e a sua maldade, Dennis (a sua maldade literária, bem entendido), como a do inglês Saki, me diverte muito. Quando eu disse, na mensagem 5, "tente e depois me diga", me referia (espero que você tenha entendido!) ao segundo método, o dos filmes...Nada de pancadas para você, e um abraço do Alexandre.