Desde o quinhentismo, ou desde as primeiras manifestações artísticas (literárias?) na colônia, que o Brasil está pelo menos 50 anos atrasado no que quer que faça a classe artística local. Diogo Mainardi, em seu Contra o Brasil, ironiza o suicídio e a tísica dos nossos poetas românticos, décadas depois do chamado spleen que deflagrou o movimento. Boa parte da crítica (não só a parcela prafrentex das instalações, da arte eletrônica e das intervenções em vídeo) afirma que, em matéria de competição, só podemos participar, no ombro-a-ombro, quando a peleja envolve manifestações recentes da expressão humana, do modernismo pra cá, em suportes como televisão, rádio e internet, por exemplo. (Outros acreditam que nem nisso podemos arriscar qualquer passo.)
A relativa juventude do continente americano naturalmente limitaria o alcance de suas iniciativas, no que diz respeito aos grandes empreendimentos do espírito (as tais "catedrais", aludidas por Otto Maria Carpeaux). De fato, a imprensa norte-americana (Gutenberg inaugurou seu invento e, graças a ele, Vespúcio fez circular as cartas que imporiam seu nome ao continente) é uma das mais desenvolvidas no mundo, fazendo frente à inglesa, à francesa, à alemã e a qualquer outra em todo tempo e lugar. O mesmo não se pode dizer da literatura norte-americana, soterrada pela menção de Kafka, Mann e Proust, juntos ou em separado, e sem qualquer perspectiva de melhora, apesar de todo o esplendor material estadunidense, como charmosamente nos convence George Steiner (em Nenhuma Paixão Desperdiçada).
O Brasil não fugiria a essa sina, podendo, no entanto, se afirmar, no museu de grandes novidades. Na música popular, logo de início, onde se colocaria em pé de igualdade com o que se faz em Cuba e na América do Norte (ambas as nações abastecidas pelo manancial que vem da África). Na televisão, que não é propriamente um orgulho nacional, mas que volta e meia é chamada à cena para proclamar que temos, em nosso seio, a quarta maior rede mundial de tevê (a mesma que se estrepou ao estender seus tentáculos até a Itália de Berlusconi). E na publicidade (para ficar em apenas três exemplos), que, apesar dos publicitários, produziu agências premiadas anualmente no circuito mundial (embora, às vezes, tome chamadas de sujeitos como Oliviero Toscani). Enfim, ainda que não possamos rivalizar na pintura com Picasso, na poesia com Eliot e na música com Stravisnki, fazemos até que bonito nesses nossos arroubos de nação jovem.
Ainda assim, o Brasil deu um tremendo passo pra trás, com toda essa história da numeração de fonogramas e com toda essa discussão que agora se inicia sobre o direito do autor. Fez lembrar as vanguardas que aqui ecoam tardiamente, muito embora o mercado local seja globalizado (nos problemas) e a indústria brasileira da música também se veja às voltas com a pirataria que hoje grassa sem precedentes. Ou seja: estampar números nas capas dos CDs, ou obrigar compositores e artistas a assiná-los um a um, é o mesmo que cobrar pedágio por onde não passa mais ninguém, pedir que se pague pelos trechos esburacados, sustentar o matagal e os sapos coaxando brejeiros. Com a internet (MP3s, Napsters e similares), e com a explosão dos chamados genéricos (a R$ 5 em qualquer camelô), as vias de escoamento deixaram de ser as tradicionais há muito tempo: já se fala em 60% da "prensagem" nas mãos dos chinas e do mercado negro. Por que então vir com esse projeto fora do tempo?
Espanta que um dos soldados em campanha tenha proclamado sua independência recente (das majors), em altos brados, aproveitando a logística das bancas de jornal para justamente escoar seu produto, graças a uma brecha que permitiu encartá-lo como publicação impressa. Pois é; mas como no Brasil não existe nada mais conservador que um progressista no poder (e nada mais progressista que um conservador no poder), esse mesmo desbravador sucumbiu aos clamores de Brasília e empenhou-se pela modernização de um sistema já obsoleto no mundo inteiro, esquecendo-se dos ideais de um selo fundado por ele, sob a auspiciosa alcunha de "universo paralelo". Não que a venda em meio a jornais e revistas tenha se consolidado como uma alternativa (até por causa de iniciativas subseqüentes das quais não se teve notícia), mas o exercício de pensar uma saída é sempre mais válido do que o atual retrocesso ao qual se assiste.
Talvez seja uma tática, um reflexo condicionado, uma estratégia para a sobrevivência, esse negócio de fechar os olhos para o tempo presente. Afinal, o futuro não parece muito radioso, num País onde, além da música que está nas paradas, se adquire desde a última versão do software até aquele longa-metragem do qual não se conhece nem o trailer, pelos mesmos cinco reais, por telefone ou na avenida que já foi símbolo da portentosa civilização do café, a Paulista. Fora que a copiagem indoor, feita a partir de computadores pessoais (que nem precisam ser de último tipo), através de gravadores de CD (e, daqui a pouco, de DVD), já é prática corriqueira, em que alguém da turma compra e os todos demais providenciam sua réplica, digitalmente idêntica, com a facilidade de quem envia um e-mail. Isso tudo sem entrar no mérito da (discussão cansativa sobre) distribuição e aquisição de faixas via internet.
Tudo bem, ninguém encontrou ainda uma solução - nem nos mercados mais avançados - para essa problemática (o dinheiro das gravadoras vai, cada vez mais, se esvaindo, apesar dos crescentes gastos com mecanismos anti-duplicação, anti-reprodução, anti-cópia). O erro dos nossos agitadores da MPB, portanto, talvez não esteja nas intenções (salvar o criador da rapinagem da indústria é um assunto relevante e sempre em pauta). Lamenta-se, isso sim, que o século XXI não tenha chegado para os legisladores brasileiros, que ficam ainda excitadíssimos com todos os aspectos burocráticos da coisa, quando a geração X ou Y - que efetivamente dita os padrões de consumo - não foi absolutamente contemplada em toda a discussão a respeito. Se quisermos sair da defasagem histórica, no debate de idéias, devemos atentar não só para as bravatas dos quarentões e dos cinqüentões de sempre, mas sim para o que pensam os artífices dessa nova música.
Sabe, Julio Daio, o seu artigo, além de pertinente, lembrou-me de um fato que se deu com o Drummond(iria fazer 100 anos em outubro de 2002). Lá pelos anos 80, o poeta escrevia crônicas no JB. Uma delas foi memorável e dizia bem o que o brasileiro pensa de direitos autorais. Drummond recebeu um pagamento da rádio estatal da Suécia porque um de seus poemas foi traduzido e entrou no ar gélido da Suécia. Drummond não acreditava porque os suecos eram tão honestos, já que ele jamais poderia supor que um dia(na verdade o poema foi declamado à noite)um poema seu fosse ecoar em país tão longínquo."Como não sei sueco -disse a certa altura- nem sequer poderia reconhecer o meu poema. Mas lá estava, em cima de sua mesa, o cheque que tanto intrigava. Direito autoral é questão de consciência e de honestidade, não adianta numerar, é preciso que o pagador tenha vergonha na casa! Alberto Beuttenmuller.
Júlio, acho perfeitamente válido o espírito do seu texto a respeito de direito autoral, dizendo a pura verdade: direito autoral é uma questão de honestidade (talvez, nem mesmo de cultura).
Contudo, é um assunto bem complexo. Por um lado, precisamos levar em conta aquele direito autoral que tem como objetivo ressarcir os investimetos e gastos feitos para se chegar a uma criação efetivamente boa e útil. Evidentemente, isso se aplica mais ao mundo das criações tecnológicas, mas tem aspectos de mérito bem mais legítimos do que nas criações meramente psicológicas ou espitituais ou subjetivas, ou ainda, com qualquer nome que se queira dar. E o maior mérito está ligado a um esforço objetivo bem maior, envolvendo períodos de tempo bem maiores, investimentos e gastos concretos.
Por outro lado, devemos pensar nas criações que resultam mais do "talento" do que da "competência", e neste caso, não podemos fechar os olhos para o fato de que, via de regra, não há gastos nem investimentos e, geralmente, não envolve períodos de tempo muito longos.
Muito bem. Neste caso das criações que saem do talento, a preocupação não se dá em relação a gastos, investimentos, esforços objetivos, nem nada. O que se procura corrigir é simplesmente o fato de que terceiros não devem lucrar com algo que tenha sido pelo talento do autor.
Paradoxalmente, no primeiro caso das criações tecnológicas, resultantes portanto mais da "competência" do que do talento, que inequivocamente tem mais mérito objetivo, a própria lei estabelece um limite bem curto de tempo durante o qual ocorre o "ressarcimento" (royalties). Quando muito, se não estou enganado, uns 5 anos. Já no segundo caso, o do talento, a lei prevê 60 anos de "ganhos" que nada têm a ver com ressarcimento.
Enfim, na comparação entre "competência" e "talento", aparecem três agravantes beneficiando o "talento": (1) Exige menos tudo (2) Protege por 60 anos!!! (3) Demonstra preocupação em que os outros não usufruam, que é quase "mesquinha", embora legítima até certos limites.
Então, Júlio, Direito Autoral é um assunto muito complexo e, em geral, muito mal interpretado, ou seja, sempre com muitoas propósitos de premiar muito mais uma "idéia" do que um "arregaçar mangas", que envolve despesa, investimento e período longo de trabalho objetivo e quase sempre exaustivo.
Não sei se ajudo em alguma coisa com este tipo de análise, mas minha intenção é boa.
Parabéns pela sua matéria.
Um quente abraço.
Haroldo Amaral
Alberto (#1): de fato, é uma questão de consciência. Por mais que se inventem sistemas, há sempre uma maneira de burlá-los. Haroldo (#2): não acho que o problema seja esse. Em outras profissões, idéias também são remuneradas. Vide a explosão das "consultorias", no reino da administração de empresas. De qualquer jeito, obrigado e abraços ao dois, Julio