"A ambulância celeste arrastada por uma constelação de chagas/ aguarda o tinir da espada na gaiola./ Oh retirai seus ossos desse veículo banal,/ A manhã está voando com as asas de sua idade/ E uma centena de cegonhas pousa na mão direita do sol". Dylan Thomas.
Frederick Henry, o protagonista de "Adeus às armas", de Ernest Hemingway se esquiva do perfil de herói e está longe de ser um anti-herói. Não impressiona pela coragem na angustiante atmosfera da Primeira Grande Guerra; não irrita com nenhuma soberba; não incomoda com cinismo; não perturba com frases cunhadas a bala. Nada de gestos marcantes. Um simples motorista de ambulância que desacredita do amor.
Henry detesta a guerra com o mesmo impulso com que os padres evitam as mulheres. Rejeita contatos íntimos que avancem além do sexo. Satisfaz-se com prostitutas. Até encontrar abrigo no colo afável de uma enfermeira inglesa. Temendo qualquer envolvimento que lhe traga sofrimento maior que estar numa grande batalha, evita até a última gota de conhaque se apaixonar. Desse personagem menor Hemingway abre flancos para colocar sob holofotes Catherine Barkley, a mulher que tira o romance da banalidade de sentimentalismo inóspito à beira do front.
A bela Catherine é amável e hiperbólica. Age devagar à maneira dos felinos: mia delicadamente para atrair atenção, se enrosca na parte do corpo que estiver mais próxima e lambe asperamente as mãos. Impressiona o jeito submisso com que ela conduz a relação para deixar vergões no coração de Henry. Em pouco tempo ele teve que rasgar palavras ao vento que agrediam o amor nos tempos de guerra. Dessa paixão a conduzir a obra, desencontro, deserção, encontro e tragédia.
"Adeus às armas" é o segundo livro de Hemingway, o escritor norte-americano, nascido em Oak Park, Illinois, em 1899, que fez fama de sedutor, apaixonado por armas, batalhas de qualquer ordem e que se matou da forma grave que tanto admirava. Ao lado de William Faulkner, alterou a forma de escrever literatura. Nada de rebuscamentos barrocos ou parnasianos. O estilo passou a ser seco como uma rolha sem uso. O mais importante passou a ser a história, o enredo, as personagens, algumas tiradas. Ao feno rompantes estilísticos. Edmund Wilson achava o romance comovente. "Talvez nenhum outro livro tenha fixado tão bem a estranheza da vida militar para um americano durante a guerra".
Lançado em 1929 e considerado o melhor sobre a Primeira Grande Guerra, o livro traz a marca que Hemingway carregaria pelas outras obras - de maior quilate como, por exemplo, "O Velho e o Mar", "Por quem os sinos dobram" e "O sol também se levanta". Os diálogos entre Henry e o militar italiano Rinaldi, a tentativa de ajudar um soldado com hérnia de disco que não queria retornar à batalha, a descrição da explosão de uma granada que o feriu na perna e a deserção após a morte de seu tenente no campo de batalha, parecem ter sido forjadas pelos anjos da guarda do front - que abriam os peitos para abrigarem seus protegidos -, pelo realismo.
O escritor escreveu o que viu - também foi ferido em combate, em 1918: o texto é belíssimo e raros são aqueles que se valem das analogias certas. "Comi o meu último pedaço de queijo e bebi mais um gole de vinho. Ouvi de novo aquela tossida e depois chuh- chuh- chuh- chuh - e depois um clarão, como se fosse uma fornalha de alto-forno aberta, e um estrondo, e um branco que logo passou a vermelho e rolou como levado pelo vento. Procurei respirar, mas a respiração não me vinha e me senti arrancado de mim mesmo e distante, muito, muito distante, e todo o tempo um corpo solto ao vento. Saí de mim mesmo completamente e sabia que estava morto, mas que era um equívoco pensar que teria morrido de vez, completamente. Depois flutuei, e, em vez de sumir, senti que voltava a mim. Respirei e voltei a mim, de fato".
Não muito afeito ao bom-humor, mesmo assim Hemingway coloca Henry (reparem que o sobrenome do protagonista parece ser uma abreviação do seu próprio nome) numa situação engraçada, daquelas que quase valem a vida. Internado num hospital para se recuperar do ferimento na perna, pede ao porteiro que lhe traga um barbeiro. Na esperança de obter algumas informações sobre a guerra tenta dialogar com o profissional nascido na Itália. Cada pergunta é rebatida com uma resposta quase monossílaba em tom agressivo. Sem entender, Henry indaga que diabo havia de errado ao que o barbeiro, indignado, vocifera que não conversaria com o inimigo. "Cuidado! A navalha pode cortá-lo", ameaça o barbeiro que pensou estar executando seu serviço num soldado austríaco. Chamado para explicar se se tratava de um maluco, o porteiro caiu na gargalhada e contou a história para ele, que não achou a mínima graça em ter passado segundos sendo alvo tão fácil.
Catherine é uma mulher hiperbólica. Exagera no amor; na sinceridade de suas convicções; no desconforto por estar grávida. "Quer dizer que nada a aflige", pergunta Henry. "Só a idéia de nos separarem. Minha religião é você. - Está bem. Mas eu me caso com você no dia em que você quiser. - Querido, não fale como se precisasse me devolver a condição de moça honesta. Sou uma mulher honesta. Não me envergonho de algo que só me dá felicidade e orgulho".
Estrangeira num ambiente inóspito, Catherine amava com a irresponsabilidade que a guerra exigia. Qualquer ponto de partida era somente um ponto de partida. Todos estavam sujeitos às interrupções de um gole de vinho, de uma mordida no queijo ou de um beijo apaixonado. Qualquer prazer era extraído a fogo de um segundo de felicidade espremido num canto da alma. O terror das explosões, os ferimentos, as mortes se tornavam fatos corriqueiros de um dia que poderia não descerrar. "Não me toque", murmurou Catherine para Henry logo após um parto complicado que a levaria à morte. "Pobre querido. Toque-me o quanto quiser", completou ela com um sorriso. A despedida da esposa e do filho não é comovente. É morbidamente densa, sem pieguismo. "Era como se eu estivesse me despedindo de uma estátua", refletiu ao sair do hospital.
"Adeus às armas" é o romance da desilusão: a história de um casal que descobre com os estilhaços das granadas que nenhuma paixão de guerra resta impune sob um campo de batalha.
Senhor Garschagen (gosto deste sobrenome. Não é meio judeu?, nada contra por favor, inclusive gosto dos rituais religiosos dos judeus). Bem, fiquei muito satisfeito com sua última correspondência. Mas o fundamental é que estou tomando conhecimento da sua literatura, e como estamos gostando (estamos porque os amigos estão lendo e gostando, e discutindo, o jornalista Bruno Garschagen - e como tem artigos por todos os lados, leio o blog, o digestivo e outros). O que me encanta é sua ironia e humor - fundamentais na boa literatura). Sou professor de história e geografia - porque não havia opção as fiz, mas na realidade meu gosto é literatura, jornalismo, filosofia. Do que mais gosto? Os clássicos, li D. Quixote, Crime e cstigo e tantos outros. Marguerite Yourcenar li tudo, é muito elegante (literatura elegante, bem formada - temas nobres e bem desenvolvidos como "Memorias de Adriano", Thomas Mann, li - 2 vezes A Montanha Mágica - acredita?