Já ouvi muitas lorotas sobre a Internet. Mas confesso que a maior de todas é a tal da "produção coletiva do conhecimento". Imagine um pensador medíocre escrevendo um livro em que haja, digamos, 10% de idéias razoáveis, sendo todo o resto composto de bobagens. Agora imagine mil desses pensadores, todos eles mandando os seus textos para a web, onde se tornarão hipertexto (ah, como é lindo o significado tecnocêntrico-progressista e deslumbrado desta palavra).
Agora imagine um outro pensador medíocre que, deslumbrado com as possibilidades hiper ultra mega penta alfa giga maravilhosas dessa nova mídia milagrosa, resolva bricolar todos esses mil textos, formando uma massa informe de devaneios, cheia de links que levam a links que levam a links que levam à loucura qualquer cérebro sadio. Pois aqui temos a nova onda do momento, segundo os intelectuais francesinhos da hora e seus respectivos porta-vozes de além-mar: a narrativa hipertextual coletivamente construída (uma espécie de Ilíada de trás pra frente), que vai "modificar o estatuto" das artes, da literatura e - pasmem - das ciências.
Segundo nossos profetas digitais pós-moderninhos e relativistas, o conhecimento está mudando estruturalmente (na forma, é claro, pois o conteúdo eles nunca discutem). Vai se tornar fragmentário (ops!) e hipermidiático (idem!). Ah, e tomem cuidado, pois vem aí a problemática imagética (êpa!) e a reconfiguração do espaço urbano (essa é a minha preferida!).
Juntamente com a produção coletiva do conhecimento, vem a dissolução da autoria. A pergunta que os francesinhos adoram fazer é a seguinte. Se os textos são coletivos, formados pela colagem de dezenas de textos, como seria possível saber quem é o autor? Bem, o autor seria um monstro disforme, não fosse pela absurda homogeneidade de estilo e ideologia que configura nosso atual meio acadêmico. Traduzindo em palavras simples: todo mundo pensa tão igual dentro de nossas universidades, que se colamos os textos de várias teses e monografias, parecem todos do mesmo autor. Mas isso não é surpreendente. Apenas prova que as universidades já estão mais do que preparadas para a chegada do tal pensamento coletivo. Seria de admirar se não estivessem, pois são elas mesmas que o anunciam como um messias anuncia a chegada de uma nova era.
Já sei o que alguns vão dizer: "mas o conhecimento humano não foi sempre uma obra coletiva?". Claro que sim! E claro que não. Aristóteles leu Platão e mais algumas dúzias de pensadores. Mas depois - ou durante! - reuniu tudo em sua cabeça e chegou a conclusões. Aristóteles pensou enquanto lia livros, e depois de lê-los, assim como todos nós fazemos. Não existe um pensador coletivo. Cada pessoa pensa com sua cabeça e chega a conclusões que, ainda que sejam aparentemente iguais às de muitas outras pessoas, não o são, a rigor, pois o caminho que leva um indivíduo a uma determinada conclusão sobre algum assunto é dele, e somente dele. Se eu acho que o seu José é feio, a cadeia de raciocínios e comparações que me levaram a tirar essa conclusão não pode coincidir com a de outra pessoa. Muitos podem achar absurda uma afirmação como essa, mas um simples fato já a comprova. O local onde acontece uma cadeia de raciocínios feitos por mim é a minha "cabeça". Enquanto que o local onde ocorre uma outra cadeia realizada, digamos, por Pedro, é a cabeça de Pedro, e não a minha. Portanto, para que a cadeia fosse igual, ponto a ponto, seria necessário que eu fosse igual a Pedro, ou seja, que eu tivesse, acumuladas em minha mente, as mesmas experiências e vivências de Pedro. Como se pode ver, admitir isso seria loucura.
O que eu quero dizer com tudo isso? Quero dizer que o pensamento é algo que existe porque o ser humano existe. E seres humanos não são entes abstratos e coletivos, mas pessoas de carne e osso dotadas de cérebros. Tudo isso parece ridículo. O que acontece é que tem muita gente por aí dizendo que o futuro do pensamento é coletivo. As comunidades intelectuais é que construirão filosofias, e não cada um dos indivíduos. Cada um abordaria um determinado problema, dentro de sua restrita especialidade acadêmica, e ninguém teria a capacidade de entender o todo, pois o todo é o conjunto naturalmente formado pelas várias partes isoladas, pelas várias especialidades em colaboração umas com as outras, mas incapazes de se auto-transcenderem, se tomadas individualmente.
A mentalidade coletivista hoje é um problema de grande importância e que está sendo ignorado no Brasil. O sonho do coletivismo está por trás de muitas teorias que circulam por aí. E esse sonho transforma figuras de linguagem em conceitos pseudo-rigorosos. Isso acontece com a expressão "pensamento coletivo". O que antes servia para designar a cooperacão entre os indivíduos na busca do conhecimento, hoje se transformou em um conceito interpretado ao pé-da-letra. Que existe um pensamento coletivo, no sentido figurado, todos nós sabemos, pois sabemos que existem escolas que reunem pensadores, os quais participam de debates e trocam conhecimento, escrevem livros e desenvolvem idéias em comum. Mas quando alguém se refere a pensamento coletivo como um conceito, então a coisa se complica. Pois uma escola não pensa. Uma escola não escreve livros. E hoje muitos estudiosos já estão começando a se referir a teorias de forma impessoal, desligando-as de seus autores, por acreditarem que elas são criações coletivas.
E para além do festival de devaneios sobre tecnologia (no sentido abrangente da palavra), ou seja, para além da reflexão sobre a forma do connhecimento, está o conteúdo, algo extremamente fora de moda hoje em dia. Pergunte a um professor de comunicação o que ele acha do fato de que nenhum aluno do curso de jornalismo lê Dante, Homero, Plutarco ou qualquer obra literária mais rica que os livros de Paulo Coelho e os artigos de política da Folha de S. Paulo. O professor provavelmente lamentará a má qualidade do ensino no Brasil, mas continuará usando todo o tempo de suas aulas para discutir "leads", "manchetes" e "bigodes". Ou então para refletir sobre como será o jornalismo na era do hipertexto. E pode até ser que ele diga que é preconceito considerar os livros de Paulo Coelho inferiores aos de Plutarco.
O ensino universitário atual não se preocupa com a inteligência humana, no sentido humanista do termo. A grande maioria dos nossos acadêmicos não estão absolutamente interessados no enorme legado de conhecimento que a civilização ocidental nos deixou. E com isso não estou querendo dizer que a universidade virou centro de preparação técnica para o mercado de trabalho, crítica que é a mais comum por aí. Este é um problema secundário e conjuntural, embora importante. O principal problema é que as disciplinas pragmáticas e utilitaristas tomaram conta dos cursos da área de humanas. Os alunos deixam de ler, para adentrar discussões intermináveis sobre as formas da escrita e do discurso (jornalístico, filosófico, sociológico, seja lá o que for). E depois vão fazer mestrado porque não sabem escrever senão no jargão acadêmico. E se um dia lerem Plutarco, será com finalidade semiótica, de encontrar em suas linhas os ícones, índices e símbolos de Peirce e não de tirar algum aprendizado para a vida sobre o caráter dos governantes e das pessoas que fazem a história.
Entrar em uma discussão acadêmica sobre o hipertexto ou o pensamento coletivo é entrar em um labirinto de devaneios em torno da forma do texto e do pensar. É uma discussão técnica. Nada além disso.
Acontece que os alunos que saem das faculdades não leram praticamente nada. Portanto, as novas técnicas - principalmente jornalísticas e artísticas - inventadas nas universidades e proclamadas como inevitáveis adventos do curso natural da história serão usadas por pessoas ignorantes. Justamente porque essas pessoas perderam e perdem todo o seu tempo discutindo técnicas.
Com isso voltamos ao exemplo do início do texto. O futuro do hipertexto sem autoria, formado pela fusão de vários textos, é algo sombrio. É um futuro em que vários indivíduos ignorantes e superficiais darão sua pequena contribuição na construção de um, digamos, "hiperlivro". E outro indivíduo ignorante e superficial reunirá todos os fragmentos em um único texto e acreditará que o texto ficou bom, ou seja, melhor do que a soma de suas partes.
Ninguém saberá como eram as cantatas de Bach, mas elas aparecerão no resultado final de um hipertexto escrito por alguma comunidade de um milhão de indivíduos, no interior da qual havia um que conhecia a obra do músico. E, como o pensamento é coletivo, o que importa é a comunidade. E a comunidade nesse caso - e para todos os efeitos - sabe quem é Bach!
Parece que o nobre autor deste texto se sente um privilegiado na arte de escrever... Discordo de praticamente tudo que escreveu acima, caro colega. O que acontece atualmente é que tem muita gente jovem e com a cabeça totalmente aberta e ligada no que acontece no mundo. É claro que continuaremos a ler muita bobagem, mas o poder da palavra, este sim, não é mais posse de pessoas como você, que pensa que a vastidão do mundo só chega até o seu umbigo. E tenho DITO e pare de escrever bobagem!
Prezado Evandro, na coluna de ontem o professor Butler Shaffer (da Southwestern University of Law) tece comentários a propósito da polaridade indivíduo X coletividade que praticamente complementam os pontos que você está salientou em "Hipermediocridade". Segundo Shaffer, "great music and other artistic expressions, inventions and discoveries, and other creative acts and ideas, have always come from individuals". Veja só, já somos três...!
Bem, Toni, isso me deixa feliz. Mesmo sabendo que só nós três ainda não vamos conseguir fazer frente a toda essa rapaziada de cabeça aberta e ligada no mundo! Mas é um começo. Aliás, no Lewrockwell.com o nosso colega aí acima vai encontrar muitos outros artigos de gente que só escreve bobagem.
"E a música vinha chegando, agora mais distinta, até que numa curva do rio apareceu aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e flâmulas. Vinham dentro os quatorze membros da academia (contando U-Tong) e todos em coro mandavam aos ares o velho hino:
'Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!'
A bela Kinnara (antigo Kalafangko) tinha os olhos esbugalhados de assombro. Não podia entender como é que quatorze varões reunidos em academia eram a claridade do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalafangko, consultado por ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode obsequiar uma das mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta fechada, e, para maior segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China." (Machado de Assis, "As Academias de Sião".)
É porque ele tem "a cabeça aberta e ligada no que acontece no mundo" - mundo sendo o seu próprio umbigo (é comum aos "umbiguistas" usar um "argumento" deste tipo logo de início) e as sensações fisiológicas abaixo dele.