Você, que está lendo este texto, provavelmente se acha uma pessoa culta. Deve ter um bom nível de conhecimentos gerais. Transita bem por assuntos considerados importantes, como literatura, música, política, artes. E o mais básico de tudo: domina perfeitamente o código no qual todo esse conteúdo foi elaborado, a língua portuguesa.
Em contrapartida, você, como pessoa culta, que lê bem, compreende a maioria dos textos, redige com clareza e até com algum talento, torce o nariz para o linguajar popular. Aquela forma tosca e grotesca que se houve nas ruas, nas feiras, nas conversas das empregadas domésticas, entre as pessoas que vivem na roça ou em regiões diferentes daquela onde você vive.
Os erros de concordância, a troca de letras, a má colocação da sílaba tônica, representam verdadeiras agressões ao seu ouvido. Ouvido que foi treinado desde cedo, na escola, a aceitar o português padrão e oficial, e a rejeitar a forma natural da linguagem coloquial. É graças a essa educação que você, hoje, pode usar a língua corretamente, permitindo seu acesso a círculos no qual o domínio da língua padrão é pré-requisito para ser aceito.
Junto com todos os benefícios que o domínio da língua traz, vem o preconceito. Alguns dos mais arraigados dizem respeito ao local do Brasil onde a língua é falada de maneira correta. Uns dizem que é no Maranhão. Outros dizem que é no Paraná. Quem mora no sul ridiculariza o sotaque nordestino. Quem é do nordeste rejeita o sotaque do sul. E assim, esquecendo das nossas origens e da maneira pela qual nossa cultura foi formada, vamos perpetuando mais um preconceito da enorme lista que já impregna nossa sociedade.
Esse tipo específico de preconceito, o lingüístico, tem conseqüências mais graves do que as risadas de escárnio ou as ridicularizações promovidas pelos estereótipos na TV. A partir do momento em que a sociedade desconsidera a pluralidade das maneiras de falar existentes no Brasil, o processo de exclusão social aumenta. Assim, além da pobreza, da cor, da sexualidade, da religião, a maneira de falar também acaba se tornando um fator de afastamento e intolerância.
E, por incrível que pareça, tudo começa na escola. Falar da falta de preparo dos professores já virou mais do que lugar-comum. Mas, infelizmente, o fato de voltarmos sempre ao mesmo ponto reforça a consciência de que grande parte das soluções para os problemas do nosso país passa pela educação. O professor é mal preparado desde os tempos de aluno. Ele vai ensinar o que aprendeu. E a gente não aprende que existem diversas maneiras de falar a mesma coisa em português, e que isso significa diferença, e não certo ou errado.
A criança que cresce tendo contato com a língua falada de maneira mais coloquial chega na escola e é obrigada a desaprender tudo. Além do esforço em ter que correr atrás das crianças que já dominam a língua dita correta, o aluno ainda sofre o preconceito por ser diferente, por estar fora das normas. E qual seria a solução? Esquecer a língua portuguesa formal e adotar o falar coloquial? É claro que não. O que a escola precisa fazer quanto ao ensino do português é reconhecer as diferenças, explicar por que essas diferenças ocorrem e facilitar o acesso das crianças ao domínio da língua padrão, para evitar essa modalidade de exclusão.
O academicismo é muito criticado por estar em uma torre de marfim, à qual apenas poucos iniciados têm acesso. E é nessa torre que a gente acaba tendo consciência de algumas coisas extremamente importantes, que deveriam ser divulgadas para todo mundo, e desde cedo. Os "erros" da linguagem coloquial são um exemplo. A gente não fala como escreve. Mas para algumas pessoas, essa distância entre fala e escrita é maior ainda. Ao invés de tentar descobrir porque isso acontece, preferimos virar a cara e criticar. E quando isso acontece na escola, é terrível.
Quem se preocupou em ir um pouquinho mais longe descobriu que as diferenças entre língua padrão e não-padrão, na verdade, repetem alterações que aconteceram na evolução das línguas. A troca do "L" pelo "R", como em "pobrema", por exemplo, está presente nas transformações sofridas pelo latim, e que deram origem ao português. A palavra "igreja" é, em latim, "eclesia"; em francês, é "église"; em espanhol, é "iglesia". Se a gente considera um sinal de matutice a troca dessas duas letras, então é sinal de os falantes da língua portuguesa são todos uns matutos, enquanto que nossos colegas franceses e espanhóis conseguiram manter a "pureza" do latim.
Os exemplos de diferenças entre língua popular e erudita que também aparecem na transformação do latim para o português são inúmeros. As causas são basicamente fisiológicas. A lei do menor esforço, pela qual todos nós somos afetados, também age na hora da fala. Assim, sons parecidos, ou realizados em posições muito próximas dentro da boca, acabam sofrendo assimilações ou transformações, que dão origem a diferentes maneiras de pronunciar a mesma palavra. A educação formal ensinada na escola barra esse tipo de transformação. Mas quem não tem acesso a essa educação, acaba perpetuando as mudanças fonéticas.
Na prática, o que a escola legitima é um cruel sistema de exclusão. Para entrar na escola, é preciso dominar a língua padrão. Mas para dominar a língua padrão, é preciso ir à escola. Quem não consegue superar essa dificuldade acaba sem o domínio do português padrão, e a exclusão se perpetua. Para evitar que isso aconteça, é preciso que a escola e a sociedade aceitem a existência de uma forma não-padrão de linguagem. A partir desta aceitação será possível mostrar à criança a diferença entre o que ela fala e escreve. Veja bem, a palavra chave é diferença, e não "certo" e "errado". É incoerente dizer que a forma escrita "muinto" é errada, se as pessoas falam assim. É mais justo e efetivo explicar que para essa forma falada, a forma escrita é "muito". Só dessa maneira a criança passará a perceber, e poderá conviver pacificamente, com duas formas distintas: uma coloquial, falada, e outra formal, escrita, que vai lhe permitir o acesso à cidadania.
Do mesmo jeito que, devagar, a gente vai aprendendo a aceitar diferenças na cor da pele, na sexualidade e na fé, precisamos enxergar de outra maneira as variações na linguagem usada entre pessoas de diferentes idades, origens, graus de escolaridade. Caso contrário, sutilmente, de forma silenciosa e invisível, a exclusão lingüística vai puxar para trás todo o progresso que a gente tem conseguido em termos de liberdade de expressão, de conquista de direitos, de acesso à cidadania. Não é o caso de abandonar o português formal. É compreender a existência de uma outra forma de falar, e de facilitar o acesso ao domínio da linguagem padrão, para que mais gente seja capaz de entender e refletir sobre as entrelinhas dos acontecimentos.
Adriana ,
Brilhante o texto !!Trabalho em uma escola onde não os professores , mas os pais , precisariam e muito ler o seu texto pois , muitas vezes entendem tudo atrapalhado e "dão com a língua nos dentes" que a escola está ensinando que falar "errado" é certo ...
Obrigada, Maria Dolores! Fiquei muito feliz com sua mensagem. Esse assunto é novo para mim, e acho que deveria ser mais divulgado. Você, como professora, talvez já faça esse trabalho. Que bom que o texto está no caminho certo! Um abraço.
"Tá fechando sete tempo /
qui mia vida é camiá /
pulas istradas do mundo /
dia e noite sem pará /
Já visitei os sete rêno /
adonde eu tia qui cantá /
sete didal de veneno /
traguei sem pestanejá /
mais duras penas só eu veno /
ôtro cristão prá suportá /
sô irirmão do sufrimento /
de pauta vea c'a dô /
ajuntei no isquicimento /
o qui o baldono guardô /
meus meste a istrada e o vento".... /
(verso do cantador e poeta ELOMAR) /
Versos como esse foram teses de Doutorado pela Univesidade da Bahia na cadeira de LETRAS.
Provando que a linguagem popular, deve ser encarada como pesquisa da própria cultura, assim como a música e as manifestações culturais em geral.
Esse preconceito que ainda existe, nos ocultos principios da sociedade brasileira, reforça ainda mais as barreiras de aproximação social entre aqueles da cultura culta e a cultura popular.
Exemplos como a da Universidade da Bahia deveria ser seguido como uma evolução em nossas descobertas culturais e análises de nossa indentidade cultual.
Abraços,
Felipe Boclin
Obrigada pelos comentários, Felipe e Antonio. A língua popular, como é falada sem a "contaminação" da escola, é com certeza um patrimônio cultural tão importante quantos os monumentos, as obras de arte, as manifestações folclóricas. Através do estudo desta linguagem é possível perceber a evolução histórica e cultural de um povo. Quem tem feito um trabalho relevante nesse sentido são os pesquisadores sobre as variações lingüísticas presentes no nosso país. Esse trabalho começou a ser feito em cada estado, e agora passa a ser realizado em nível nacional. É uma tentativa de mapear língua em todo o Brasil mostrando as peculiaridades de cada região. Esse tipo de estudo apresenta uma nova faceta da cultura nacional. É impressionante verificar a diversidade léxica, mórfica, fonética e semântica presente em uma mesma língua. Da "pureza" da língua falada nos lugares mais ermos do país, que ainda conserva o estilo dos colonizadores, até a miscigenação provocada pela imigração européia no sul, a língua falada no Brasil é um patrimônio vivo, que merece ser estudado, compreendido e preservado.
Adriana
Já q sua tese está tão aprovada (eu mesmo concordo muito)vamos dar uma chance à linguagem de "escol".
Nas escolas tem-se mesmo q estudar uma lingua própria, de escola, de escol.
Não se vai a escola para se aprender o q se aprende em casa ou não rua, lá o aprendizado é mesmo exclusivo.
O cidadão tem todo o direito de louvar e cultuar seus regionalismos, mas não em detrimento de um exclusivismo de escol, que serve para textos como esses nossos aqui.
Como seria possível se discutir esse assunto na internet com cada um falando sua própria lingua regional. Sem "excluirmos" os regionalismos a precisão iria "pro brejo".
Esse seu assunto, ele mesmo, é exclusivo e de escol.
Se pensarmos a sociedade como a soma de cultura, pilítica e economia (L.Sampaio), veremos que o problema em pauta (desvalorizar uma linguagem) é apenas político. A lingua culta (em si) é inocente.
Parece-me que você não se opos a nada disso, mas mesmo assim achei bom insistir nesse ponto.
O "ouro" nativo da lingua culta vela a "bruta mina" dos regionalismos populares. Parece-me qie é exatamente isso que você tenta fazer com o teste, certo?
Pedro, fico feliz que você tenha percebido o que eu quis dizer, ou seja, exatamente o que você repetiu no seu comentário. Não sou contra o ensino da língua padrão na escola, muito pelo contrário. Sou a favor de que mais gente tenha acesso a ela, para que mais pessoas inteligentes e esclarecidas como você possam fazer comentários tão ricos. Assim como não sou contra o capitalismo, gostaria é que todo mundo tivesse as mesmas condições de se sair bem nesse tipo de sistema. Ainda reforçando o que eu disse, e que você fez questão de insistir, a língua em si é ingênua. O problema é a maneira pela qual ela é utilizada como instrumento de exclusão.
Sugiro fortemente q leias A Fisofia da Cultura de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio (ed àgora da Ilha).
O livro é extremamente exclusivo, difícil mesmo, mas o Leonardo Boff faz um brlo elogio para ele. Eu tenho tentado penetrar aquela floresta lógica, com dificuldade mas com prazer.
É UM LIVRO EXCLUSIVO. É UM LIVRO DE ESCOL.