Jamais confunda Niagara Falls com Niagara-on-the-lake. Apesar das duas pequenas cidades canadenses estarem na beira do rio Niagara, a vinte minutos de distância uma da outra, a diferença dos seus estilos é praticamente a mesma que existe entre os acidentes geográficos que acompanham os seus nomes.
Niagara Falls é barulhenta e extravagante como as suas cataratas. Apesar da monstruosidade da queda, contemplá-la por mais de dez minutos é um exagero incompreensível, mas que, com a cuidadosa infra-estrutura disponível - barcos, pontes, observatórios etc. -, vira uma atividade obrigatória. E, depois de cinco horas encantado - ou, talvez, enganado - com as infinitas possibilidades da natureza, o turista desavisado se diverte com as outras ratoeiras: suas ruas estão infestadas de restaurantes temáticos e cassinos cafonas. As borboletas dos seus parques são, como todas as borboletas, uma gracinha, e os jardins da cidade são mesmo coloridos e bem cuidados - mas os casais de noivos que desfilam por eles, saindo de limosines e posando para fotos, estragam quase tudo. Acredite: as Cataratas do Iguaçu, aqui ao lado, são mais simpáticas e ainda mais impressionantes. O que sobra é poluído ônibus lotados e pessoas agitadas, dispostas, como sempre, a enfrentar filas quilométricas e a pagar preços exagerados com um sorriso constante - estamos todos de ferias, afinal.
Estão, quero dizer. Eu não. Não nessas férias. Há programas melhores e mais agradáveis, que nem sempre são divulgados, no Brasil, como mereceriam - e como são, de fato, pelo resto do mundo. Para quem passa um fim-de-semana em Niagara Falls, uma tarde de passeio por Niagara-on-the-lake é apenas um complemento opcional do pacote comum. Aproveitando a proximidade com as cataratas - e as curiosas belezas geográficas do caminho, que Winston Churchill classificou como "The prettiest Sunday afternoon drive in the world" - o turista convencional estica seu roteiro para conhecer, em mais ou menos três horas, a antiga capital canadense, que ainda conserva, concentrados na rua principal, prédios da época. O problema é que, para quem está interessado em algo mais do que comprar camisetas e chaveiros, esse é um desperdício incalculável. Niagara-on-the-lake merece, no mínimo, um fim-de-semana inteiro - com uma esticadinha de dez minutos, de repente, para conhecer as cataratas.
Um fim-de-semana talvez não. Apesar de ônibus serem proibidos de estacionar a menos de dez minutos de caminhada do centro de Niagara-on-the-lake, e do acesso por transporte público à cidade ser consideravelmente restrito, é impossível impedir com total eficiência a entrada de pessoas inconvenientes a lugares públicos. Nas tardes de verão de sábado e domingo, então, é verdade que um pouco da praga que infesta Niagara Falls se estende até Niagara-on-the-lake, e pode-se inclusive ver, de vez em quando, pombinhos conduzidos por carruagens com cavalos brancos e grupos de japoneses fotografando o chão. Melhor escolher, se for possível, alguns dias da semana mesmo, quando a turba sazonal desaparece. E aí você pode desfrutar, com a tranqüilidade de um lago límpido, uma cidadezinha que, em poucos quarteirões, oferece um dos programas mais sofisticados do mundo.
Nessa cidade de dez mil habitantes é apresentado, todo ano, de abril a novembro, há 40 anos, um festival de teatro que é, como o próprio nome denota, de uma qualidade extraordinária: o Bernard Shaw Festival. São encenadas, atualmente, mais de uma dezena de peças, uma parte escritas por Shaw e outras, com esforço para não cair muito o nível, escolhidas de outros autores da mesma geração. Estão agora em cartaz, entre outras, Ceasar and Cleopatra e Candida, de Shaw; Detective Story, de Sidney Kingsley, Hay Fever, de Noel Coward, The House of Bernarda Alba, de Frederico Garcia Lorca, e Chaplin, de Simon Bradbury.
O inglês Christopher Newton, que dirige o festival há 23 anos, manteve a tradição de escolher peças modernas, sem cair em modismos vulgares e tendências passageiras. Sua posição pode ter sido arriscada, mas o fato é que, durante os anos em que ele esteve no comando, o festival cresceu ininterruptamente, acumulando prêmios e dinheiro. 75% dos ingressos são vendidos, o que, comparando com a média dos teatros americanos, 35%, é animador. Além dos espetáculos diários, a programação inclui bate-papo com atores e diretores, visitas aos bastidores, brunch acompanhado por piano nos jardins do Festival Theatre, seminários com diretores, atividades para crianças, jantar de gala etc. As produções são regulares e competentes, e rendem ao festival, sempre quando é aberto, elogios nas mais famosas e exigentes publicações do mundo, do New York Times à New Yorker - o que exclui, naturalmente, revistas e jornais brasileiros (com a rara exceção, claro, deste Digestivo).
Não sei qual foi o critério nem a primeira colocada, mas
o site oficial da cidade, há algum tempo, anunciava que Niagara-on-the-lake foi eleita a segunda cidade mais bonita do mundo. Mesmo os visitantes apressados não discordariam. A rua principal, de uns dois quilômetros, começa em um cemitério aberto, ao lado direito, e, passando por lojas discretas e agradáveis restaurantes, desemboca no mais antigo campo de golfe da América do Norte . Os três teatros que recebem as peças - The Festival Theatre, The Court House e The Royal George Theatre - são, entre eles, diferentes, mas todos bonitos e confortáveis. The Festival Theatre, que é o principal, foi construído, em 1973, na entrada da cidade, no meio de um bosque. De dia, os intervalos das matinês são preenchidos por uma banda de jazz, que toca nos jardins - e, nas apresentações noturnas, do terraço aberto ouve-se o concerto de sapos e cigarras.
A conveniência de uma cidade pequena permite, depois, que todos voltem caminhando para os seus hotéis ou Bed & Breakfast. Está quase tudo fechado, às 23 horas, quando aproximadamente as apresentações da noite se encerram. Mas quem compartilha do único verdadeiro amor de Shaw - a comida - pode experimentar, antes, seus pratos favoritos, disponíveis em cardápios de vários restaurantes da cidade. Excelentes, por sinal - os restaurantes, digo, e não as combinações vegetarianas que Shaw apreciava.
Foi quando estrearam uma peça sua em Nova York, se não me engano, que os espectadores, preocupados em não perder o último trem para fora de Manhattan, pediram à produção que a apresentação fosse encurtada. Então o diretor escreveu para Shaw, explicando a situação e solicitando uma solução. Ao que Shaw simplesmente respondeu: "Que mudem o horário do trem". E a sua obra permaneceu intacta. Não é o caso, porém, do público nem da organização do Bernard Shaw Festival: por mais exigente que fosse, provavelmente inclusive Shaw - se tivesse visitado Niagara-on-the-lake - aprovaria a viagem.
Caro Eduardo,
Para um país que não possui nem um prato típico, nada melhor do que homenagear, uns dos grandes escritores da lingua ingleses.
Apesar de ser um páis sem rosto, os canadenses tem bom gosto.
Fala Eduardo!
Muito bom o seu texto (como sempre!). Vc só não falou da aventura que foi a corrida para tentarmos ir de barco para Niagara on the Lake e ao chegarmos atrasados no pier ver o barco se afastando lentamente...e a nossa cara de m...
Um abração
Eduardo,
devo concordar com o último comentário - como sempre, seus textos estão impecáveis tanto na escrita (não encontro - obviamente - erros de português), quanto no conteúdo. Quem sabe em breve eu visite essa cidade? Parabéns. Abração
Chico