Como seu personagem Zelig, Woody Allen sempre gostou de se fingir de outra pessoa, assumindo personalidades cinematográficas de outros diretores, ao mesmo tempo como homenagem, paráfrase e experimentação. De pastiche de documentário (Um Assaltante Bem Trapalhão) a arroubos fellinianos (A Rosa Púrpura do Cairo), sem deixar de lado flertes com o expressionismo alemão (Shadows and Fog) e com os musicais (Everyone Says I Love You), ele passou por muitas estéticas. Mas o diretor que mais vezes Allen tentou emular foi sem dúvida Ingmar Bergman. Filmes como A Midsummer Night's Sex Comedy ou Interiors são paráfrases diretas do cineasta sueco. Mas seu filme mais próximo do universo bergmaniano é sem dúvida Setembro (September, EUA, 1987).
Tudo se passa durante um fim-de-semana numa casa de campo em Vermont, e a ação é sempre claustrofóbica, impedida de sair ao ar livre ou mesmo de vislumbrar uma janela aberta. Lane (Mia Farrow) é uma mulher que ainda luta contra os fantasmas da pré-adolescência: aos quatorze anos, assassinou a tiros o amante da mãe. E é justamente essa mãe, Diane (Elaine Stritch), atriz aposentada com planos de botar sua vida em livro, que aparece para pisotear as últimas e raquíticas flores do jardinzinho interior de Lane. As diferenças entre as duas não poderiam ser maiores. Enquanto Lane é um prodígio de introversão e culpa, sua mãe necessita desesperadamente de uma platéia para cada um de seus gestos e pensamentos, como se sem o testemunho do público sua vida não existisse.
Circulando em volta desta dupla central e antagônica, temos uma coleção de coadjuvantes que parecem saídos do poema de Drummond. Howard (Denholm Elliott) é o vizinho-professor-de-francês-em-fim-de-carreira apaixonado por Lane, que por sua vez se apaixonou pelo inquilino-publicitário-que-quer-ser-escritor Peter (Sam Waterston), que tenta conquistar a amiga-casada-com-filhos-mas-romanticamente-frustrada Stephanie (Dianne Wiest), que retribui as atenções e aumenta a carga de tensão no ar. Fazendo par com Diane, temos seu namorado Lloyd (Jack Warden), um físico aposentado que traz o contraponto científico para as discussões psicológicas e só confirma a inutilidade de qualquer ação humana frente ao caos geral do universo.
Completamente feito em estúdio, numa brilhante combinação âmbar dos esforços do diretor de fotografia Carlo Di Palma e do diretor de arte Santo Loquasto, Setembro teve um percurso conturbado. Depois de terminadas as filmagens, Allen resolveu que poderia fazer melhor e simplesmente decidiu refilmar tudo. Alguns atores se recusaram e outros não puderam comparecer por já terem compromissos assumidos. Assim, Sam Waterston ganhou o papel que era de Sam Shepard, Elaine Stritch substituiu Maureen O'Sullivan, e Denholm Elliott passou a ser o vizinho que antes era interpretando por Charles Durning, deixando o papel de Lloyd para Jack Warden.
Ao contrário de muitos filmes de Woody Allen, aqui a miséria humana nunca chega a ser engraçada, nem mesmo através do sarcasmo ou do humor negro. Quando muito, podemos enxergar ironia em algumas situações, mas definitivamente Setembro não é um filme para sorrisos. Mesmo assim, paradoxalmente poderia ser considerado uma história otimista. Basicamente, Setembro é um filme sobre insegurança. Insegurança emocional, insegurança intelectual, insegurança existencial. E a conclusão, ultrapassados os conflitos apresentados, é que a única resposta é seguir em frente. Apesar do título, a ação se passa toda em agosto. Setembro é o que há de vir.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Nemo Nox é editor do blog Por um Punhado de Pixels e do site Burburinho, onde este texto foi originalmente publicado.