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COLUNAS

Sexta-feira, 30/8/2002
Onze pontos sobre literatura
Alexandre Soares Silva
+ de 9200 Acessos
+ 9 Comentário(s)

1) O leitor ideal é um detetive. Um detetive cerebral e excêntrico, como Poirot ou Nero Wolfe. Não há crime, nem há criminoso; mas há o que o escritor russo Vladimir Nabokov chamou de “mistério das estruturas literárias”. Na sua poltrona, o leitor de gênio lê e relê o romance em busca de pequenos detalhes - como a bússola no teto da cabine de Ahab em Moby Dick, ou a exata localização do quarto de Skimpole em Casa Sombria. É um ato heróico como uma aventura de Sherlock Holmes; e se esse leitor é também um crítico, ele mesmo registra suas aventuras para a posteridade – Sherlock Holmes e Watson numa pessoa só.

2) Depois de Jorge Luis Borges, todo escritor argentino parece idiota.

3) Durante milênios sempre se achou que a literatura devia ser sobre coisas interessantes: uma espada mágica, uma guerra, uma viagem, um monstro. Por algum motivo isso nunca chegou ao Brasil; nossos escritores recuariam horrorizados se vissem uma coisa interessante; preferem a banalidade interessantemente contada. Um Coração Simples, de Flaubert, é o modelo não-alcançado de toda a literatura brasileira. E no entanto a literatura em prosa de língua portuguesa começou com um livro sobre o objeto mais interessante de todos os tempos: A Demanda do Santo Graal. Se esse livro tivesse sido o nosso modelo, seríamos épicos, ao invés de sermos mesquinhos. Seríamos de meter medo.

4) O crítico americano Harold Bloom ganhou notoriedade pela teoria da Angústia da Influência; dizendo que cada escritor tem que se meter numa batalha de morte contra seus predecessores. Assim Fernando Pessoa teve que lutar, no seu íntimo, contra o espectro barbado de Walt Whitman. Mas já no século I d.c. o grande e misterioso Longino escreveu isto, no Tratado do Sublime:

“...outro caminho leva ao sublime. Que caminho? Como é ele? A imitação e inveja dos grandes prosadores e poetas do passado. (...) Essa prática não constitui furto; é como um decalque de belos sinetes, de moldados, ou de obras manuais. Parece-me que Platão não faria abrolhar tão belas flores entre pontos doutrinários da filosofia, nem acompanharia amiúde a Homero nas selvas da poesia e das expressões, senão, por Zeus! para, de corpo e alma, disputar com ele a primazia, como um competidor jovem em frente de um lutador já de muito admirado; talvez emulasse com demasiado ardor e, por assim dizer, de lança em riste, não, porém, sem proveito; na expressão de Hesíodo, “boa para a humanidade é tal disputa”. Belo, na verdade, e merecedor de coroa de glória é esse combate em que mesmo em ser derrotado pelas gerações anteriores não deixa de haver glória.”

Essa tradução horrível do Professor Jaime Bruna não deixa ver o quanto Longino é mais inteligível e inteligente do que Harold Bloom. Não se sabe muito sobre Longino, cujo tratado às vezes aparece assinado por “Anônimo”, e às vezes por “Dionísio”; mas foi evidentemente um homem de gosto e um crítico de gênio.

5) Depois de ler Jane Austen, durante dias todos os outros autores e até mesmo todas as outras pessoas que você conhece parecem grosseiros como cartolas de futebol. Você se pega olhando seus conhecidos com estranhamento e pensando: “Não é um cavalheiro”.

6) Críticos sempre riem de H.P. Lovecraft, o escritor americano de horror - riem do estilo dele. Riem de coisas como “as estrelas brilhavam sinistramente”. Perguntam como é que uma estrela que brilha sinistramente brilha de modo diferente das outras. Em suma, que o advérbio aí está a mais. Mas não está: o advérbio nos faz sentir que as estrelas brilham sinistramente. Eu consigo imaginar uma estrela brilhando sinistramente – você não?

7) O preconceito contra adjetivos e advérbios vai ser considerado um modismo do século vinte, como a angústia e a incomunicabilidade humana.

8) Robert Louis Stevenson tem gosto de vinho; Colette de champanhe; Chesterton de cerveja.

9) Agatha Christie criou um país, a Agathaland. Quem esteve lá não esquece.

10) O realismo só sobrevive, só foi capaz de criar os melhores romances de todos, porque nunca foi puro – algo nele pede pelo fantástico. Assim o sórdido Zola (o Neville D’Almeida das letras) foi responsável pela segunda fase, fantástica e decadentista, do seu ex-discípulo Huysmans; sua sordidez foi tanta que enojou Huysmans e o fez criar Là-bas e À Rebours. Assim também Flaubert se cansou do realismo e escreveu Salambô e As Tentações de Santo Antão; Eça de Queiroz se cansou do realismo e criou O Mandarim. Mesmo Tolstói, o maior realista de todos, tem que escapar para o fantástico na sequência do pesadelo em Ana Karênin.

Nem os realistas aguentam o realismo; só não sei como os materialistas aguentam o materialismo. Como a sequência do pesadelo em Ana Karênin, Deus deveria ser incluído na nossa visão de mundo por uma simples questão de gosto.

11) Da imortalidade de certos personagens:

"Mas não pode haver túmulo para Sherlock Holmes ou Watson... Não viverão eles para sempre em Baker Street? Não estão eles lá neste instante mesmo, enquanto escrevo?... Lá fora, os coches sacolejam sob a chuva, e Moriarty planeja seu último plano diabólico. Dentro, as chamas na lareira, e Holmes e Watson aproveitam seu merecido descanso... Desse modo eles ainda vivem para todos que os amam: numa câmara romântica do coração: num país nostálgico da mente: onde sempre é 1895" (Vincent Starrett, no livro The Private Life of Sherlock Holmes -1933) .

(But there can be no grave for Sherlock Holmes or Watson . . . Shall they not always live in Baker Street? Are they not there this instant, as one writes? . . . Outside, the hansoms rattle through the rain, and Moriarty plans his latest devilry. Within, the sea-coal flames upon the hearth, and Holmes and Watson take their well-won ease . . . So they live still for all that love them well: in a romantic chamber of the heart: in a nostalgic country of the mind: where it is always 1895.)


Alexandre Soares Silva
São Paulo, 30/8/2002

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
30/8/2002
13h45min
Alexandre, como sempre você está de parabéns pelo seu texto. Concordo especialmente com dois pontos: 1 - depois de Borges, todo escritor argentino parece idiota (Eu acrescentaria: depois de Borges, todo realismo fantástico parece idiotice); 2 a literatura brasileira é feita sobre o desinteressante. Machado de Assis escreve apenas sobre o desinteressante. Mas há boas excessões. Euclides da Cunha escreveu sobre um assunto muito interessante em Sertões. Outra honrosa excessão é Monteiro Lobato. Quem já leu Urupês sabe o que é um livro escrito sobre coisas interessantes. Lobato tirava sarro do desinteressantismo da literatura brasileira (que ele chamava de contos psicológicos) usando para isso uma cozinheira que ele considerava uma crítica literária melhor do que qualquer crítico de jornais.
[Leia outros Comentários de Gian Danton]
30/8/2002
19h15min
Parabéns, Alexandre! Você nos deixou na saudade na última semana, rapaz! Mas a coluna de hoje valeu por duas semanas. O tópico mais sintético foi paradoxalmente o mais abrangente: Borges sufocou uma geração. Além de concordar com o Gian (sobre o realismo fantástico) queria acrescentar que não foi só na Argentina que Borges projetou sua imensa sombra. Todo escritor latino americano tem que fazer uma reverência a Borges antes de pensar em colocar a primeira letra no papel. Não li Borges tanto quanto deveria e por isso posso estar falando bobagem. Mas o que li (e reli) foi suficiente para me causar a seguinte inquietação: Borges existiu? Funes é bem mais palpável que Borges! Borges não seria um personagem que escapou de um livro de Borges? Borges me parece tão imenso que chego a supor que para enxergá-lo é preciso estar no espaço sideral. Até chegar lá continuarei na dúvida: Borges existiu?
[Leia outros Comentários de Rogério Prado]
31/8/2002
3.
21h47min
Grande!! Grande!! Boa Alexandre!!! O trecho a seguir de sua matéria é uma das coisas mais espetaculares que já vi escritas. É simplesmente antológico: "Nem os realistas aguentam o realismo; só não sei como os materialistas aguentam o materialismo. Como a sequência do pesadelo em Ana Karênin, Deus deveria ser incluído na nossa visão de mundo por uma simples questão de "bom" gosto. Desculpe-me por acrescentar o "bom" ao trecho. É só uma travessura minha. Alexandre, isso é uma das manifestações mais inteligentes que já vi até hoje. E olha que já tenho 55 anos e bastante experiência. Parabéns.
[Leia outros Comentários de Haroldo Amaral]
1/9/2002
02h18min
Como conciliar o número de obras magníficas escritas ao longo de séculos, (atenção + respeito) por cada uma delas e uma só vida?
[Leia outros Comentários de Ricardo]
2/9/2002
01h32min
Ora, a vocês todos, como sempre, muitíssimo obrigado pelas palavras e pela visita. Suas perguntas são irrespondíveis. Concordo com o Gian - especialmente no que diz respeito a Monteiro Lobato. O Sítio do Picapau Amarelo, por exemplo, é uma espécie de Reserva Natural de Coisas Interessantes, onde nunca se viveu um momento de banalidade ou chatice (sossego sim, às vezes). Agora, a pergunta do Rogério, se Borges existiu - conhece aquela teoria maluca de que aquele velhinho que todos vimos era só um ator (um ator, não um autor), e que a obra de Borges foi escrita por Umberto Eco? Não acredito, é claro - mas vá saber. Quanto ao Haroldo, fico tentado a deixar aquele "bom" onde ele deixou - fica melhor, não fica? O que acham? Tenho que saber, me respondam, me respondam. E a pergunta irrespondível do Ricardo de Mattos - não se responde - não sei - é impossível. Mas há quem não sinta essa necessidade de ler tudo. Flaubert disse, numa carta para a amante: "Como seríamos sábios se conhecêssemos bem somente cinco ou seis livros". É uma possibilidade, não é? (mas não para mim; e acho que nem para Flaubert). Um abraço - Alexandre.
[Leia outros Comentários de Alexandre]
6/9/2002
21h17min
Alexandre, você nos trouxe mais um texto delicioso, que já começa bem, mencionando meu querido detetive Nero Wolfe (ele e seu altivo assistente Goodwin são personagens pra lá de tridimensionais) e vai ficando melhor a cada linha. Concordo que o realismo literário nunca seja puro, a menos que você chame de obras literárias os compêndios de medicina. Mesmo a Medicina Legal não é 100% realista. O mundo não é realista, nem precisa de realismo literário puro, a meu ver. Alexandre, concordo que essa mania de desprezar adjetivos (aquilo que chamam de "cortar o desnecessário") é puro modismo, e muito imbecil! "Um pano roto e malcheiroso, com pontas esfiapadas" não é o mesmo que "um pano", simplesmente. Cortar adjetivos é cortar nuanças, seria como obrigar um pintor a usar apenas cores básicas, nunca tons intermediários. Sem adjetivos não haveria Marcel Proust, não acha? Essa guerra contra adjetivos sempre me revoltou. Isso é coisa de quem nunca leu pra valer! Abração, parabéns por mais esse texto inteligente e saboroso. Abraços!
[Leia outros Comentários de Dennis]
9/9/2002
00h18min
Dennis, sim, sem adjetivos não haveria Proust, nem Balzac, nem Dickens (Dickens usava adjetivos muito bem), nem Henry James, nem noventa por cento da literatura do mundo. E sua comparação com cores e nuances, os adjetivos dando as nuances aos substantivos - queria ter criado essa imagem. Cheguei tarde, cheguei tarde...- Nota: para quem não conhece, passem pelo Caderno Mágico do Dennis (http://cadernomagico.blogspot.com) e leiam tudo que puderem. Daí releiam. E releiam. E coloquem nos favoritos.
[Leia outros Comentários de Alexandre]
12/9/2002
8.
03h09min
você esqueceu do Vlad no quesito adjetivos e advérbios estranhos (ah, eu e minhas obsessões).
[Leia outros Comentários de Juliana]
12/9/2002
17h20min
Ah, é claro, Nabokov, Juliana. Não esqueci, só não o mencionei porque senão as pessoas iam começar a dizer que estou obcecado. Mas sim, veja o início de "King, Queen, Knave", taduzido do russo pelo próprio Mais Nobre Caçador de Borboletas em pessoa, e seu filho Dmitri: "The huge black clock hand is still at rest but is on the point of making its once-a-minute gesture; that resilient jolt will set a whole world in motion. The clock face will slowly turn away, full of despair, contempt, and boredom, as one by one the iron pillars will start walking past, bearing away the vault of the station like bland atlantes..." - Um abraço - Alexandre.
[Leia outros Comentários de Alexandre]
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